SEU ANTÔNIO CANGURU
Dos trastes humanos, advindos das relembranças da minha meninice, ia-me esquecendo de um, o qual, de nenhuma maneira, poderia deixar de dispor entre os heróis populares que, aqui, nas minhas mal traçadas, eu tenho tentado delinear. Esse um, de nome Antônio, por antonomásia Antônio Canguru, talvez o mais arredio e obscuro personagem das peripécias, noites de cantoria, folguedos e tropeços do Camará.
Quando me dei ciência de gente, no sítio, já a família de Seu Canguru morava lá pelos lados mais elevados, aquilo que todos chamávamos de “Alto”. A casa-grande era entre dois outeiros, ladeada por um riacho que cortava no verão. No Alto, de malas e cuias, na verdade o nosso potiguar não residia ali, apenas arranchava o seu povo – mulher e récua de filhos –, na mais absoluta indigência. Filhas mocinhas, às pencas; outras chegando, em menor cambada, uns meninos machos.
Era franciscanamente pobre aquele pessoal chegado, não sei quando, à nossa serra. Mas declaro com segurança que eles eram das jurisdições da terra de Luís da Câmara Cascudo, o excelso folclorista brasileiro. Dos exíguos moradores do Camará, se me não meto os pés pelas mãos, era a única família a habitar uma casinha de palha. Nem de sapé era o barraco; eles se arranjavam mesmo era numa tapera de palha.
O fator especialíssimo, no entanto, que havia em Seu Antônio Canguru era que, segundo o próprio, pertencera ao grupo de Lampião. Lá, ainda nos campos do Rio Grande do Norte, ao que parece pelas bandas de Mossoró, meteu-se na jagunçada de Virgolino Ferreira da Silva, o temido bandoleiro que não alisava os couros de cabra safado, no conceito lá dele, Lampião, está bastante claro.
Bem, o Seu Canguru tinha nas cruzes uma história. E era homem controvertido. Só nunca lhe contei as cabeças de cabras da peste que ele mandou comer capim pela raiz. Mas não as computei porque nunca revelou as cifras redondas das baixas que fizera para seu ninguém, embora achasse graça amarelada, quando um enxerido lhe perguntasse se ele havia mandado muita gente ir-se desta vida para a melhor. O homem só se ria todo, mostrando uns dentões de légua e meia, aliás, bem poucos e somente, ainda, ali nos beiços de cima.
Força, caso fosse para o enfrentamento com alguém, na queda de braço, coitado dele, o ex-jagunço não tinha nenhuma. Qualquer menino magricela o derrubava pela cana. Contudo, de braços esticados, revelava-se uma maçaranduba. Minto não, de jeito algum: vi-o, uma feita, soerguer dois irmãos Pimentel, de uma vez só, cada um dos gajos a pisar na palma da mão de Seu Canguru. Os dois irmãos, fortes, parrudos, altos e bem nutridos, cada qual pesando bem oitenta quilos, apenas o seguravam pelos cabelos e o peste forçudo eleva-se, todo ereto, com os braços em noventa graus, em relação ao corpo. Forçudo, não, o diacho de camarada. Aquilo só podia ter pacto com o cão.
Por isso que distorço os parafusos do adagiário e costumo afirmar que atrás do bicho corre um pobre. Sobrinho de meu pai largou-se do sítio de herdeiros, foi ser feitor noutro de parente cheio de nove horas, ricaço e metido a sebo. Morava em casarão, ainda meio novo e de tijolos, no outeiro oposto ao de Seu Canguru. Resultado: com a saída do Dico, o casarão dele ficou vazio, aí ajeitaram para o gadinho de pessoal do potiguar, ex-jagunço de Lampião, ir para o bem-bom de uma verdadeira residência.
Lá um dia, não sei a que hora do tempo, balançando-se numa redinha, todo satisfeito da vida, um paredão interno da casa desabou e, zás!... Seu Canguru recebeu nos peitos toda a carga de tijolos. Levaram-no às pressas para Baturité, mas não houve Medicina que desse jeito. Seu Antônio Canguru, que em vida certamente embarcara cabras da peste para o outro mundo, quando ainda era cabra de Lampião, abotoou de vez as botas.
Ah, Seu Canguru, ex-jagunço de Lampião!... Homem tão pacífico, sempre manso, cordato, alegre, aparentemente feliz e tão respeitador. Um simples traste humano, com uma récua de filharada, que veio ter o seu termo de vida em longínquas águas serranas de território vizinho ao dele, o mesmo e glorioso torrão natal de Câmara Cascudo, o nosso folclorista maior.
Fort., 03/05/2010.