DIA DE MATAR CAPADO
Na casa do outro lado do rio os moradores saem da rotina, os homens não vão para a roça, as mulheres levantam mais cedo do que de costume, hoje é um dia especial pois hoje vão matar o capado, com isso a labuta do dia vai ser árdua. Os homens providenciam lenhas para a lida e folhas secas de bananeira para sapecar o bicho, as mulheres se preparam na varanda da casa, lavam a mesa, nada mais do que umas pranchas de tabua sobre dois cavaletes, é ali que vão destrinchar o animal e ficam na espera.
Alguns dos rapazes da casa juntamente com pai, se dirigem ao chiqueiro onde se encontra o capado. Seu Térto, o ancião da família aguarda no terreiro, a idade avançada, dizem que quase oitenta anos, já não permite a entrada e a pega do capado no compartimento de engorda. Ele carrega em suas mãos uma faca de cabo de osso e bem embainhada, tradicionalmente é ele o homem da família encarregado de sangrar o animal. Olhando para traz, percebe que a criançada, todos seus netos, está acompanhando curiosas para ver a cena da matança do capado e ele, homem precavido, ralha com elas:
_________ Onde pensam que vão? Chispem já daqui, ora onde já se viu!.
Sem contestar, as crianças retornam desenxabidos para casa, afinal de contas, esta foi a educação passada pelos pais, sempre obedecer aos mais velhos e vovô é o homem mais velho da casa e se não quer que os meninos presenciem a morte do capado, tem lá sua razões, afinal de contas, violência pode gerar violência e os meninos ainda não tem formação para presenciar tal ato e entender que tudo aquilo não é mais do que a lei da natureza, apesar das aparências, é o homem lutando pela sobrevivência.
O trabalho bruto da matança do Capado pertence aos homens até o momento em que entregam o animal morto, limpo aberto em duas bandas na bancada para as mulheres, cabendo a elas o trabalho de destrinchar o animal, o que era feito com muita maestria e carinho, a carne é tirada, o toucinho separado, cortado em pedaços, moído numa maquina própria para tal tarefa e depois é fritada numa grande forno de ferro sobreposto em alguns tijolos ali mesmo no terreiro, a gordura gerada é guardada em latas de metal para o uso no preparo alimentação do dia a dia. A carne, algumas delas são fritas juntamente com a carne de osso e guardada com a gordura, o que o povo da região chama de “carne de lata”. Outras mais especiais são abertas em mantas que são salgadas para a conservação e colocadas numa espécie de varal na varanda, onde ficam como que defumando e são as primeiras a serem consumidas na alimentação da família, aquelas que não prestam para as mantas, são moídas na maquina de moer carne para se fazer as lingüiças ou outros embutidos. Quanto ao couro do animal, geralmente se deixa uma pequena camada de gordura, é salgado e estendido um varal, a a exemplo das mantas ficam como num defumador e apos um pequeno período de tempo, depois de frito, torna-se em torresmo e o couro pururuca, uma delicia para acompanhar a alimentação do sertanejo ou como aperitivo de uma caipirinha. De tal forma, do capado tudo se aproveita, pois até mesmo aquelas partes que não servem para consumo humano, o reto, o umbigo, pulmão e tripas sem serventia, juntamente com a gorduras consideradas impróprias para o uso humano, segundo o ponto de vistas do sertanejo, são separadas, não recebem os mesmos cuidados de limpeza, mas geralmente após o trabalho da lida, são juntadas numa vasilha, devidamente salgadas e cozidas para não estragarem e reservadas como “gordura de sabão”, matéria prima para o preparo de sabão de decoada, muito usado na limpeza pesada.
As crianças tão curiosas também tinham uma tarefa especial neste dia, a elas caberiam levar pedaços de carne para os vizinhos, um costume e uma forma de partilhar entre os moradores da região este momento tão especial na vida do campo e que de certa forma era retribuído, pois quando os vizinhos matam o seu capado, também os enviam um naco de carne para cada um.
Os homens porem, após a realização do trabalho que lhe é cabido, tem o resto do dia de folga, assim o dono do capado, após o almoço, resolveu dar um pulo até a venda com a desculpa de comprar alguma coisa, porem o que mais queria era tomar uns goles da danada.
A venda não ficava distante de sua casa, foi a pé e por lá ficou não se sabe até que horas, pois depois de exagerar nas doses da cachaça, como de costume, perdeu a noção do tempo, foi embora cambaleando não se sabe a que horas, andou dormindo pelo mato e acabou chegando em casa altas horas da noite e com uma fome arretada. Receoso de que alguém da casa acordasse, o que na certa lhe renderia uma boa chamada de atenção, precavido, não acendeu lamparina para evitar tal transtorno, assim pelo escuro, foi as apalpadelas, procurando algo para comer até que achou uma vasilha sobre a mesa, bem protegida isto significava que ali estava algum produto do animal morto, sentiu que a lata, ainda estava quentinha, abriu a tampa devagar, tirou um naco de carne, comeu, na realidade estava um pouco dura mas depois pegou outro e mais outro, saciado da fome, mal limpou a mão e a boca nuns trapos sobre a mesa e foi dormir. Como ainda estava embriagado, como de costume nestes porres, foi dormir no sofá da sala para não incomodar a esposa.
No dia seguinte, logo pela manhã ouviu a esposa resmungar na cozinha:
_________ Malditos cachorros, guardei tão bem a “gordura de sabão” não é que o infeliz ainda veio mexer!
Só então o homem, ainda de ressaca, percebeu que havia comido “Gordura de Sabão” ao chegar de madrugada, mas o que fez, esta feito, esticou no sofá, cobriu a cabeça e continuou dormindo.