O VELÓRIO DE NHÔ BASÍLIO

O VELÓRIO DE NHÔ BASÍLIO

Lá está o caixão suspenso. Suas fímbrias roxas, bem roxas, pendem lúgubres pouco diferenciadas do pano lilás escuro que recobre a urna. Vez por outra, todo o conjunto balança, movido pelas crianças a brincar em sua volta, cujo pique, como o chamam, é justamente uma das rústicas cadeiras, a amparar o fiel depositário daquele que fora o maior folião do lugar: Nhô Basílio! Ao meio do pequeno quintal que precede a entrada do casebre, incapaz de conter o corpo do dono, os homens adultos não se dão conta da gritaria e dos constantes esbarrões das crianças; ao contrário, servem café com pães de leite enquanto palmeiam grossos nacos de fumo, enrolando-os a seguir. Pitam e conversam prazerosamente, à medida que algumas xícaras de aguardente são passadas desembaraçadamente, de mão em mão. As mulheres, por sua vez, se preocupam mais e mais em pintar as já afogueadas faces, carregadas pelos arrebiques escarlates, acompanhando os homens com vantagem no “zunzum”. A certos intervalos a latomia --- como se diz por aqui --- acalma-se, e algumas beatas de caras bem vermelhas iniciam uma endecha no que são acompanhadas pelas demais. A lamúria ganha corpo, entoada por vozes sumamente desafinadas, ensejando risotas de alguns presentes menos compenetrados com a ocasião. Os homens quase não cantam, embora suas feições mostrem-se alegres e dispostas. As crianças continuam correndo, entretanto, sem os gritos habituais.

Ao quadro misto de indiferença e alegria, está o defunto balançando pela ação das crianças, preso em sua macabra visão: as feições muito brancas evidenciam o arroxeado em volta dos olhos, desnudando os lábios carnudos e entreabertos pelo inchaço, por onde se vê os dentes pretos e separados; a camisa de algodão quadriculada e justa aperta-lhe os punhos cruzados sobre o ventre, da mesma forma com que o pescoço é cingido, ensejando uma sensação deveras desconfortável ao observador. Embora a alta madrugada conspire contra, há um bafo de calor horrível; a noite é escura e algumas lamparinas espalhadas por lugares estratégicos, alumiam a contento o ambiente; nenhuma lufada de vento interfere nas chamas; estas, queimam tranqüilas, eretas, envoltas pelo mormaço dominante, aparentando envolver também pequena parte dos presentes que ainda teimam em manter-se de olhos abertos. Os adormecidos pelo álcool, há muito se encontram esparramados pelos cantos do terreiro; não há, no momento, sinal dos meninos.

Poucos são os que velam com ardor!

A manhã aproxima-se abrandando o calor. Sente-se, inclusive, correr uma brisa mansa reanimando os mais dispostos, tanto que, alguns, já ousam reclamar um café quente, enquanto outros buscam canecos d’água, fazendo sua higiene matinal, provocando um pequeno rebuliço na cozinha.

A feição do morto, levada pelo calor da noite, modificara bastante: não se vê mais os dentes pretos, tendo os lábios agora cerrados por força do inchaço avançado; o rosto é uma bola só, rendido inteiramente por hematomas. Em conseqüência, a camisa do defunto, mais pressionada ainda, provoca sensações de gastura no observador, incomodando-o sobremaneira.

Duas velas de maços pequenos ardem na cabeceira prestes a se extinguirem. Uma moça corre a substituí-las. É Berenice, filha do falecido.

No terreiro, as criações movimentam-se inquietas, alertadas pelo galinho da casa que acabara de anunciar os primeiros raios da manhã. Estão eles, os animais, a incomodar os bêbados dormindo ao léu.

Ao cabo de pouco tempo, surge um novo movimento pelo quintal. Os bêbados protestam com firmeza, pois, pela segunda vez os desalojam. Dessa vez, um carro de bois acercando-se da casa.

Prorrompem-se os choros. Mãos cuidadosas acariciam o rosto e as mãos entrelaçadas do morto, enquanto a tampa do caixão não é cerrada. Dão-se dolorosas despedidas. As últimas e mais sofridas.

O carro de bois manobra gemente; os olhos de Berenice o acompanham. Com muito respeito e cuidado, a pesada urna é depositada em seu rústico assoalho e os bois partem.

Berenice jamais esquecerá o carro de bois.