Coração de Pedra ou Coração Apedrejado?


Era apenas um adolescente. Loiro, se não fossem os açoites da vida, até bem apessoado. Atendia pela alcunha de Alemão. Alemão era mais uma criança sem teto, sem escola, sem respaldo da família, perdido na dolorosa vida das ruas. Sem carinho, com fome, sem cobertor! Era lavador de carros e seu ponto ficava bem em frente à minha loja de móveis e decoração. Vivia das poucas lavagens que conseguia e de pequenos furtos. Vivia drogado, fugindo da dura realidade que o cercava. Muitas vezes entrava na minha loja à procura de um pedaço de pão. Pão e café que nunca lhes eram negados, sempre devorados com avidez. Sempre drogado sentava-se nas poltronas mais luxuosas e lá ficava contando suas estórias de um pai rico, de quem falava às vezes com orgulho, outras com revolta. (Nunca soube se suas estórias eram verdadeiras ou fantasias da sua mente doente). Chamava a mim e a minha gerente de tia. Quando chegava algum cliente, com carinho e muito jeito, pedíamos que ele se fosse. Às vezes relutava, mas sempre acabava obedecendo. Aquele garoto que nas suas primeiras idas à loja nos causou tanto medo causava também medo aos nossos clientes que ficavam apavorados e incomodados com sua presença. Tentamos por mais de uma vez dar um rumo à sua vida, tentamos descobrir se esse pai existia, mas tudo em vão. O vício da droga e a falta de estrutura eram mais fortes que qualquer esforço.
Numa linda e amena tarde de verão, céu azul anil, brisa leve, pássaros executando sua sinfonia diária no pé de acácia próximo a entrada da loja, chega Alemão com um embrulho de jornal que colocou sobre minha mesa de trabalho.
_ “Tia, trouxe um presente para você”. Desembrulhou o presente e qual não foi minha surpresa quando me deparei com uma imensa pedra. Sinceramente tive medo. Ele segurou a pedra, acariciou-a e me disse:
_ “Tia, este é o meu coração e quero dá-lo de presente a você. Tome-o, é seu”. E passou a pedra (coração) para minhas mãos. Agradeci e guardei a pedra com carinho. Vi naquele gesto a sensibilidade que ainda restava naquele coração tão machucado pela vida. Esta foi à última vez que vi Alemão. Desapareceu para sempre. Chegamos a procurá-lo nas ruas mais próximas, perguntamos por ele a outros lavadores de carro, mas nunca mais o vimos, desapareceu como o sol desaparece no horizonte, levando consigo até sua sombra. Creio que tenha morrido por uma overdose ou quiçá foi morto.
Deste episódio ficou para mim uma dura lição. Que todos, todos mesmo, até o pior dos bandidos têm coração. Na grande maioria das vezes o descaso de nossos governantes, a falta de escolas, a falta de estruturas de nossos presídios sempre com super lotação (que gera revolta ao invés de reintegrar os detentos à sociedade), a fome, a miséria, a falta de respeito e dignidade ao ser humano, faz com que esses corações se transformem em corações de pedra, como tão bem, através de um gesto, nos mostrou Alemão. Viver do lixo do luxo só pode endurecer os corações.
Alemão, meu amigo, onde quer que estejas quero que saiba que guardei para sempre seu coração no meu coração. Percebi sua sensibilidade embotada pela sua triste sina. Aprendi com você, doce menino, vítima da vida madrasta buscando em mim um colo de mãe. Repito-lhe agora as palavras de Santo Agostinho: “Ninguém é tão pobre que não tenha nada a oferecer e nem tão rico que não tenha nada a receber”. Recebi de você o mais lindo presente que alguém poderia me ofertar. Recebi seu coração. E junto com ele o retrato do seu abandono, que emoldurei num lindo quadro para que nunca me esqueça das crianças desamparadas, perdidas pelos becos escuros, ignoradas pelos nossos insensíveis governantes, seduzidos pelo poder.