A BARATINHA
A figura popular de que menos tomei conhecimento, por nunca lhe haver botado o olho em cima, nem por isto me deixa de ser importante e, ainda hoje, já estando eu tão anoso, ela povoa a minha cabeça de menino.
Diz-se dela que, em suas andanças, no ofício de esmolar, percorria todo o maciço de Baturité. A velhinha palmilhava todas aquelas lonjuras, de ponta a ponta, indo e vindo, subindo ladeiras ou descendo íngremes escarpas.
Não a conheci em pessoa, senão pela fama e escama. O meu pessoal a viu, por vezes, no Camará, em tempos de muitos janeiros atrás, e minhas irmãs contavam poucas e boas a respeito de D. Baratinha, a pedinte mais badalada que já habitou na Serra de Baturité.
Em pequeno, já me deliciava em sabê-la uma mulherzinha de porte pequeno, chocha e miudinha, mas diligente, polida nos modos e de pés andarilhos, que só um veado montês.
Segundo as fontes que tive, ainda na infância, a Baratinha era vista desde as abas da serra, lá pelas cidades de Aratuba e Mulungu, passando pelas cidades dos altos cerros, como Pacoti, Guaramiranga e Palmácia.
Também, de pés muito espertos, e com rosto sempre fagueiro, ela ia desbravar as quebradas de Baturité. Depois, pé lá e outro cá, a esmoler vinha pôr o nariz nas urbes do baixio, a saber, Itapiúna, Capistrano, Aracoiaba, Redenção e Acarape.
Certa feita, lá para as bandas de cima, onde só imperam os cafezais, não sei se em Pernambuquinho, lugarzinho este por entre as porteiras de Pacoti e Guaramiranga, D. Baratinha aportou no casarão do Dr. Chico Linhares, que, conforme rezavam as más línguas, tanto era podre de rico como cheio de estupidez e grosseria.
Pois foi justo no sítio enorme do potentado e quiquiqui Dr. Chico – por sinal, irmão do transitório ex-presidente da República, o então ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares – que a Baratinha foi solicitar um arrego de auxílio, uma esmolinha, para ser mais sucinto.
Dr. Chico estava, lá, espichado no redão multicor de varandas por acolá, preguiçando no copiar da mansão, vigiado pelo olho de um dos cabras do sítio.
– Bó... bó... bom di... di... dia, dô... dô... dotô Chi... Chi... Chico! – fez a pobre e também gaga D. Baratinha.
Mas qual!... E para quê que a mulher foi assim se expressar, meus amigos?! O rico sitiante levantou-se da rede, de um pulo só, feito uma moléstia, tiririca e já todo vermelhão de zanga. E foi partindo para cima da visitante, coitada, tão indefesa e muito batoré, ali do píncaro do seu metro e meio de tamanho.
– Vô... vô... você tá man... man... mangando d’eu?! – vociferou o Dr. Chico, já ceguinho de raiva, empunhando um tabefe na velha. Felizmente, nem chegou a...
O agregado do sítio, que observava a cena, era da cozinha do doutor e tinha bastante ciência do complexo que o patrão levava nos couros pelo simples fato de ter nascido quiquiqui, tartamudo, vale dizer, gago mesmo. E, mais que depressa, o caboclo atravessou-se no meio e salvou a cara da Baratinha.
– Dr. Chico, pelo amor de Deus!... Ela fala assim como o senhor! – botou verbo com eufemismo o caboclo, temendo trair-se e falar que o chefinho era gago.
Pois foi: o causo se deu assim. O velho mandachuva e explosivo tornou-se às boas com a macróbia. Abraçou-a e riu às bandeiras despregadas. Contam como certo que, a partir daí, a Baratinha virou conviva de honra – não digo da cama, mas da mesa – do temperamental Dr. Chico Linhares, irmão de um ex-colega do hoje Luiz Inácio Lula da Silva.
Fort., 21/05/2009.