SEU EMÍDIO MIÇANGUEIRO
Era o mascate botar os pés na casa grande do Camará, e o sítio inteiro virava um ancoradouro de festa. Homem bom e cordial a gente hospitaleira do interior trata na maior macia e, com merecida justiça, na palma da mão. Por isso que é bom ser-se um cara bom. E Seu Emídio foi um camarada assim. Bom sujeito e pretinho retinto. Ver Seu Manuel Pretinho, quanto ao bom proceder e aos pigmentos da cor.
Além de os viventes da casa de meu pai tirar a desforra, comprando miçangas e muitas bugigangas mais, o pessoal morador ia vindo e fazendo a pergunta do seu interesse: – Seu Emídio ainda está?
Todo gentileza e paciência, o caixeiro-viajante fazia, ali, nas águas do sítio, as suas vendas de sempre, a saber, entre tantas miudezas: brilhantina da marca Gostora, extrato Dirce, pasta dental e escova, sabonete Eucalol, enfeites para pôr no cabelo, cosméticos em pó para a vaidade das mulheres, batons, pentes fino e não, bicos e rendas, botões, presilhas, broches, chupetas ou consolos para o choro e bem-estar das crianças, mamadeiras e mamilos de borracha, lenços, fitas, elásticos, linhas matizadas, e tal e tal.
Enfim, impossível enumerar as preciosidades todas, aquele mundão de miudezas negociado pelo Seu Emídio. Assim, com boa féria no final das contas, o mascate de Redenção lavava a égua no lucro.
Esperto, bom negociador, em geral o ambulante esperava para fazer a sua feira só ali pelas abas do entardecer. Era quando a récua de matutos largava do serviço. Até o olho de meu pai servia de fiscal para as bugigangas do bom homem de cor.
Pródigo em oferecer hospedagem para três raças de gente – cantador de viola, guarda da malária, ou das endemias rurais, e caixeiro-viajante –, meu dizia assim para o doce Seu Emídio: – Agora, homem, você vai pegar uma galinha na cabidela, faz pernoite e só levanta voo amanhã.
E o preto, com os dentes em flor de algodão, balançava com a cabeça, atendia de pronto, muito pimpão e amável. Era ordenança dita e feita.
– ‘Nhor, sim – fazia o conviva, todo sonso e arregalado de gosto, ver escravo fugido da senzala.
Depois do jantar, eito grande de papo de sala. E Seu Emídio assumia o leme do barco das histórias de almas penadas, mula-sem-cabeça, lobisomem e outras lorotas de encantamento. Por exemplo, casos de botijas cheias de patacões de ouro enterradas em casarões mal-assombrados, peripécias de valentia, potocas de onça comendo vivo o caçador e/ou o caçador tirando, a muque e na unha, bichos como onças, guaxinins, raposas, ou até desentocando caipora de dentro do mato.
Exímio animador de salão, o hóspede também se esbaldava em trazer novidades, crimes horripilantes ainda quentinhos, fatos badalados, lá pelas bandas de sua urbe, Redenção, além dos acontecidos em Baturité, Acarape, Aracoiaba, Pacoti, Guaramiranga, Palmácia, Aratuba, Mulungu, já que era ele quem virava e remexia por todas as ladeiras e sítios do maciço da Serra de Baturité, tocando a chicote o seu anoso burrico.
O homem dava lição e definição de tudo. Era uma folha diária da imprensa, aberta aos ventos de todas as orelhas que o escutassem com regular atenção.
Uma vez, a dormir na sala enorme da casa, em companhia de dois dos meus irmãos adolescentes, o mais novo começou a gemer com dor de dente. Foi daí que o preto testemunhou a coisa: o jovem mais velho, por nome Chico, disse para o De Assis: – Tu num é valente, macho?! Como é que ‘tá chorando com dor de dente?
E, na manhã seguinte, à mesa do café, o pretinho lascou o fato presenciado às caladas da madrugada nas asas da rua de todo mundo. Risadagem geral. Todos caíram na mangofa, pois o miçangueiro, ali, de pessoa presente, era o melhor repórter para desabotoar o caso como o causo aconteceu.
Fort., 18/04/2009.