Bom de se jogar fora

I

O único padre daquela pequena cidade chamava-se João Batista. Era um homem gordo, com várias doenças causadas pelo alcoolismo e pelo excesso de peso. Faleceu de uma parada cardíaca enquanto ouvia uma confissão. A cidade permaneceu sem nenhuma missa durante três semanas.

Aquela manhã de sábado era a mais corriqueira possível. A feira da Praça da Ladeira já estava bem movimentada. Dois homens vestidos com roupas que bem pareciam batinas andavam pela multidão, estavam perdidos e desorientados. Pararam em frente a uma das barracas de temperos, verduras e outras variedades.

- Bom dia – disse o mais alto dos dois homens.

- Bom dia! Vai uma verdura aí? – perguntou o feirante.

- Não, obrigado. Só queremos saber qual o nome dessa cidade.

- Então vai um queijinho aí? – insistiu.

- Não queremos comprar nada, apenas estamos perguntando qual o nome da cidade.

- Ladeira Velha, agora se os senhores não vão comprar nada, adeus, pois eu preciso trabalhar – disse o feirante sem a mesma paciência costumeira.

- E onde fica a igreja? – perguntou o homem sem esperar uma resposta do barraqueiro.

- Só digo se comprar alguma coisa.

- Está bem! Quanto custa aquela garrafa? – apontou para uma das bebidas que havia à mostra.

- O litrão? Eu deixo por... Quatro reais.

- Eu quero uma. Então, onde fica a igreja?

- É só descer a ladeira. Não tem erro.

- Muito obrigado.

- Não foi nada.

O feirante segurou o mais baixo dos dois homens pelo braço e perguntou:

- Os senhores são padres?

Eles se entreolharam.

- Sim, nós somos.

Passadas duas semanas, os novos padres reabriram a igreja e passaram juntos a realizar as missas. Eram irmãos. Um chamava-se Pedro Alencar e o outro Luís Alencar. Apesar da semelhança, não eram gêmeos. O primeiro acabara de completar vinte e oito anos e Luís, o mais novo, contava com vinte e seis. Jovens e atraentes, provocavam suspiros nas alunas de catecismo.

- Quem você acha mais bonito, o padre Pedro, ou o padre Luís? – perguntou Vanessa à amiga Fernanda.

- Se você parasse de falar bobagens, prestaria mais atenção na aula. Logo agora que eles estão falando sobre Moisés e os dez mandamentos – Fernanda sentiu-se envergonhada com a pergunta.

- Sim, mas quem você acha mais bonito?

- Vanessa! Isso é pecado – irritou-se.

- Eu não perguntei com quem você perderia a virgindade! Só perguntei quem é o mais bonito.

A conversa no fundo da sala chamou a atenção de Pedro. Silêncio vocês duas aí atrás – disse o padre.

- Vanessa, não precisa falar tão alto, eles podem ouvir ou toda a classe pode ouvir – a garota estava com as faces coradas, já havia pensado no que a amiga dissera. Nunca esqueceu o dia que salvou o padre Luís de um atropelamento. Ele estava cruzando a rua totalmente desatento quando Dorival em sua bicicleta quase o atropela, só não graças a Fernanda que se arremessou em cima do conjugue levando-o ao chão antes do terrível impacto. Foi então que o padre presenteou a garota com uma fitinha vermelha de São Sebastião.

- Eu prefiro o padre Luís, pronto – respondeu finalmente.

- Então é com ele que você perderia a virgindade?

- Você quer tratar de calar essa... – as duas acabaram caindo no riso.

II

Assim era com todas as alunas e também com as mulheres da cidade. O charme dos padres fazia com que as missas fossem cada vez mais freqüentadas. Eles pareciam estar acostumados com essa admiração que as mulheres cultivavam em segredo. A cidade mantinha uma opinião boa sobre os irmãos. Todos estavam satisfeitos com os dois. Todos menos os homens.

- Que pessoas maravilhosas são os novos padres, o senhor não concorda? – perguntou o dono do bar para o cliente – Bons pra se jogar fora não acha?

- Sim, concordo – respondeu o bêbado.

- Você soube o que eles fizeram para a viúva do Seu Cavalcante, a Dona Teresa?

- Aquela gostosona que não sai de casa desde que o marido morreu, há uns cinco anos?Não.

- Ela não saía de casa o senhor quis dizer, mas agora sai. Certa vez um dos padres descobriu que a viúva não pisava sequer na própria calçada. Os dois decidiram um dia visitá-la. Dona Teresa recebeu-os muito bem. Passaram a tarde toda lá. Os vizinhos a escutaram rir muito e bem alto. Depois desse dia a viúva vai se confessar todos os dias, assiste a todas as missas e duas vezes por semana recebe os padres em sua casa. Quando um não pode ir, o outro sempre vai.

Pedro e Luís foram ganhando a confiança das moradoras locais e a fama dos irmãos se espalhava para além da cidade. Com pouco menos de dois meses os municípios vizinhos já tomavam conhecimento de que em Ladeira Velha havia dois padres que lotavam a igreja de mulheres na hora da missa.

- Você ouviu alguém falar sobre o que os padres fizeram para a Rosinha? – perguntou Geni à amiga que lhe fazia uma visita.

- Não, o quê?

- A bichinha mora com a madrinha e passava o dia dentro do quarto desde que os pais morreram. Um dia os padres foram a casa dela e passaram a tarde trancados com a menina no quarto. Dois dias depois ela já estava se maquiando pra ir caminhar no passeio público com as amigas. Além de sempre fazer questão de assistir as missas.

***

Estava se aproximando a semana das festas juninas. Os preparativos eram feitos com antecedência, por isso toda a Ladeira Velha já estava enfeitada: bandeirinhas, lâmpadas e balões de São João eram enfileirados nos varais por toda a famosa ladeira da cidade que terminava com a igreja toda iluminada. Numa das noites de comemorações um rosto novo apareceu na cidade. Cabelos pretos, pele branca feito porcelana barata, olhos assustados, sorriso tímido e um corpo que seduzia a quem era audaz de permanecer muito tempo olhando.

- Bonita demais, não deve ser daqui – comenta uma senhora sentada na calçada balançando-se na cadeira.

Carregava uma criança nos braços, um recém-nascido. Dr. Damasceno preparava-se para fechar o consultório quando a moça entrou repentinamente. Pediu que ele a levasse à polícia. O doutor não resistiu ao decote da jovem, entraram no velho fusca amarelo carinhosamente chamado de Chicão e foram a caminho da delegacia. Ela queria registrar uma queixa contra dois moradores da cidade.

- Qual o seu nome? - perguntou o delegado Peçanha distraído com as longas pernas da moça.

- Marisa.

- E contra quem é a denúncia?

- Quero denunciar os padres Pedro e Luís. Onde eu morava, eles eram dois safados que seduziam as mulheres até levá-las para a cama. Eu sou uma delas. Acabei engravidando e os dois fugiram. Eu os procurei por várias cidades até descobrir que eles estão aqui – o escrivão registrava tudo sabendo que isso poderia mesmo ser verdade, ele nunca confiou nos padres.

- Quem é o pai da criança? Perguntou o doutor que ouvia tudo.

- Deixe que eu faça as perguntas, por favor – pediu o delegado. – Quem é o pai da criança?

- Eu não sei – respondeu Marisa.

A ordem dada aos policiais de plantão foi trazer os dois padres para a delegacia e indiciá-los por algum crime que Peçanha ainda não sabia dizer qual porque estava hipnotizado pelos seios quase à mostra da jovem. Durante o interrogatório, Pedro e Luís negaram tudo. Disseram que a mulher estava mentindo, nem a conheciam. Exigiram que os liberassem imediatamente. Nenhum homem da cidade suportava qualquer coisa que viesse dos padres, agora que o delegado teria a chance de desmascarar os dois, não os deixaria escapar. Uma pena saber que em Ladeira Velha o número de mulheres era quase o dobro ao de homens. A população feminina se revoltou contra Peçanha e contra todos que eram a favor da prisão dos conjugues.

Não se sabe ao certo como eles conseguiram fugir. Muito menos como não foram vistos escapando. Nunca mais se teve notícias sobre os padres. Permaneceram somente uma semana na cadeia, até que em uma manhã de sábado, exatamente igual ao dia em que eles chegaram, o cabo Silveira abriu a delegacia e encontrou a única cela que deveria estar ocupada vazia. O delegado registrou um formulário que constava apenas uma fitinha vermelha de São Sebastião que ficara presa no cadeado enferrujado partido ao meio por alguma ferramenta grande que se compra por aí.