D. RAIMUNDA, SÍFILIS & ESCABIOSE
Mulher sem acompanhamento de homem, o que já representava um perigo, naqueles tempos de fortes preconceitos, só arrastando a cachorrinha magra, ela se dizia filha das águas lá do vizinho território do Rio Grande do Norte.
De quebra, além da cara e da coragem de botar pernas no mundo, a fim de cavar o pão de cada dia, dona Raimunda puxava atrás de si o peso morto de um filho, ainda sem mãos calosas para labutar num eito de lavoura. Era o menino De Assis, aí, talvez, pouco mais ou menos, cursando apenas os seus seis ou sete anos de vida.
A prezada d. Raimunda chegou ao Camará comida de sífilis, no sangue, e um bocado de escabiose espalhado pelo corpo e entre os dedos. Ainda não sabia o que diabo era sífilis, nem doença do mundo, como tampouco imaginava se daquela coisa de nome estapafúrdio ela própria era portadora.
Mas da escabiose, só que com outro nome, desta, sim, a mulher já ouvira falar. E sabia que se tratava de apelido difícil para se chamar coruba ou curuba, mais popularmente também dita já-começa, aquela micose danada que coça feito o coisa-ruim, e de preferência nas partes baixas de um cristão, seja macho ou mulher.
A princípio, tomando gosto pela sua adoção de nova moradora do sítio, a forasteira, que dava uma aparência boa de alma, e não era de todo feia, fez-se mais e mais de muito servidora. Agrados daqui e dali, tudo com o fim explícito de cativar o casal de donos do Camará. E, estabelecida de grande em quartinho que sobrava ao lado da casa-de-farinha, a potiguar prestativa ferrou, entre mil e uma tarefas, a lavar e passar o ferro para os viventes da casa-grande.
Além de cedo fazer bons afetos com a casa-sede da propriedade e com o restante dos moradores, d. Raimunda caprichou também em investir na benquerença para se dar bem com a filharada de meu pai. Eu, não, que era apenas um projeto de pessoa, bicho ainda muito miúdo. Mas o Chico, que era o mais taludo e já nascera mulherengo, este iria mais tarde se dar bem demais, porém mais tarde passar por maus bocados.
Sempre de coração de geleia, minha mãe quis mostrar que patroa caridosa só estava ali. Então, sem pestanejar, mandou buscar encomenda de farmácia, para além de três léguas, ou mais, adiante, na cidade de Baturité. E tal providência foi tiro e queda na escabiose da agregada. Da escabiose, coruba ou curuba, a potiguar d. Raimunda se viu loguinho boazinha da Silva. Já com a sífilis, que se amoitava por dentro, no sangue, sem que fosse vista, e, também, dela nem a hospedeira se apercebia, é que a conversa é outra história.
Então, em clima de congraçamento geral, na terrinha hospitaleira onde fazia uma friagem tipicamente serrana, e para levar vida inteiramente nova e em boa paz, d. Raimunda e o moleque De Assis tornaram-se dois trastes simpáticos e servis, ali, no lugar. O diacho do menino, saído à mãe, era esperto como quê e nos mandados de pequena monta nenhum outro pixote seria mais convocado.
Bem tempos depois, eu já crescido, foi que dei cor da tragédia ocorrida no Camará. D. Raimunda botou venérea no meu irmão mais velho e pegou o beco. Como diria o outro, hodiernamente, ela capou o gato, tirou o time e se escafedeu, junto com o já rapaz, o De Assis, seu filho único. E então? Um dia, a perua, sambada de suas guerras sexuais, anoiteceu e não amanheceu no sítio. Quanto ao meu irmão..., falo do cabeça da irmandade: aquele que “já nascera mulherengo”.
Na época em que se deu o contágio do garoto, eras distantes, dos idos do arco-da-velha, em que do HIV nem se podia pensar, Chico contava somente com uns treze anos. Ainda no botão da idade. Por isso que a sífilis impiedosa lhe subiu olho acima, até hoje sendo um ancião caolho, por conta da doença do mundo que ele pegou. Assim foi, cientificamente provado em laboratório, e segundo atestou um oftalmologista de muita fama e escama, dono de consultório supimpa, montado na capital, Fortaleza.
Fort., 04/02/2009.