ALUADO, POETA OU SONHADOR?
O contador de causos, determinado tempo, morou na av. 15 de Novembro, antiga pista do Cocorote. Para quem não conhece a geografia do lugar, a boca sul de acesso à Base Aérea de Fortaleza. Diz que foi o primeiro asfalto da Loira Desposada do Sol. A via foi construída pelos americanos, durante a Segunda Guerra Mundial. Pelo menos esta obra, de boa coisa e bem feita, os ianques fizeram na face deste planeta.
Mas, brasileiro pobre não mora, ele se esconde. Então, desconfortável, porque em casinha do lado do sol e toda zoadenta de aviões, escondia-me ali num trecho que fica rente ao portão da Base, onde se apelidava de Pirocaia. Cocorote, Pirocaia, topônimos bem suaves! Não sei por que nomes assim fenecem ou se desatualizam. Eles cedem lugar a outras designações, às vezes sem graceza alguma. Porangabussu, por exemplo, depois virou Parangabussu e, finalmente, Rodolfo Teófilo. Este homenzinho, menos mal que em outras mudanças, pelo menos grande escritor baiano, que se radicou e galgou os píncaros no Ceará.
Às 7 em ponto, exceto aos domingos, este aprendiz de escriba montava no ônibus, que se metia como tartaruga pela av. 14 de Julho, atual Gomes de Matos. E lá se me ia eu, sacolejando, feito um balaio de ossos, tão péssimo era o velho calçamento de pedras ásperas, como se montadas fossem pelo avesso. O pessoal do bairro, usuário da lesma que fazia a linha do Montese, queixava-se à época, à beça, da lentidão do transporte. Também, o calçamento, que era pelo avesso?... E o povo se esprita, xingando:
– O diacho desta lata velha para mais que jumento de verdureiro!
No caminho, era uma prosa danada, meio às reclamações e instantes de descontração. Todavia, tirante os “pinos” mal ou bem sucedidos, podia até surgir um entrevero de amizade séria e duradoura. Em geral, dominava a conversa fiada. Idílio bobo, aqui e ali, uma janelinha de lirismo e ternura. Meu bate-papo preferencial, uma comerciária não de todo feiúra, atendia por Carminha.
Certa feita, num aparente papo de flerte, outra comerciária (não tão feia) arriscou-se a filosofar com o moço com quem formava par: – O que é preciso é possível – ouvi da moça, com muita ênfase, lá pelas tantas. Ao que o interlocutor fez assim: – Não; o que é possível é que é preciso – refutou o jovem. Até bastantes tempos, depois, matutei na filosofia dos dois. Nunca, até estes dias, decifrei-lhe o fio do sentido.
Eu só viajava, em pé ou sentado, no lado esquerdo do lotação. Para mim, fazia sentido. Quando cedia o assento para alguma grávida ou pessoa idosa, de pé, ia sempre na espreita da lateral canhota. Mas isto tem explicação.
Na Praça da Bandeira, hoje Clóvis Beviláqua, justo numa das quinas da Faculdade de Direito, invariavelmente, cedinho, arranchava-se um preto já idoso, de barba e cabelos brancos. E olhem que dizem que negro quando pinta tem três vezes trinta. A “residência” do homem situava-se na Gen. Sampaio com Meton de Alencar, na calçada do solar do doutor Lauro Chaves, conhecido e saudoso psiquiatra de Fortaleza.
Como trabalhasse eu na mesma Gen. Sampaio, logo adiante umas poucas quadras, no laboratório Carlos Chagas, a esquina da mansão dos Chaves era, matinal e cotidianamente, varrida e baldeada pelos meus atentos olhares. Fazia sentido. Eu queria olhar o velho retinto e de barbas brancas. Seria possível que ele dormisse ali, ao relento?
Verdadeiramente o que me aguçava a curiosidade, naquele atleta pretinho e anoso, todas as manhãs, eram a sua performance e mania de viver escrevendo, mas escrevendo o quê? Rabiscava e rabiscava, nuns papéis, ou caderninho de notas, ora estando sentado ou ficando em pé.
Mesmo desejando isto, nunca pude me ir ter com o velho. Mas suspeito que nele, ainda que ele fosse um aluado, tantã do cocuruto ou não regulasse direito, haja se estragado um escritor. Quem sabe, um romancista ou poeta. Quem sabe se naquele aparente mendigo, vestido de andrajos, não palpitava um romântico, um criador da literatura do impossível, talvez um sonhador de amores idos e vividos?
Fort., 03/01/2009.