UM CERTO SEU CAMINHA
Era um garotote universitário, morava quase ao pé do portão da Base Aérea, zona sul, na velha pista do Cocorote.
Descobriu-me como estudante "letrado", que vivia debulhando versos de Bandeira, Drummond e Vinícius, uma simpática senhora, moradora novata no bairro, freguesa de conversa com minha mãe e do balcão de meu pai.
Um dia ela me fez a seguinte sugestão:
- Vá conversar um pouco com o Caminha, meu marido. Ele está muito idoso e não sai de casa. O homem é louco por poesia, literatura... - assim foi que completou a gentil mulher, uma velhota agradável e ainda bem durona.
Feito o convite, tímido e arrevesado, fui um dia bater à porta de seu Caminha. Era numa enorme chácara de esquina, sombreada de árvores e recuada. Segundo o próprio e a esposa, ele era parente, não sei em que terceiro ou quarto grau, do romancista Adolfo Caminha, autor entre outros de "A normalista", e aquele sujeito desabusado que trocou a Marinha do Brasil pela cara-metade de um seu camarada de farda, a quem o escritor meteu um chifre bonitinho.
Seu Caminha, um certo seu Caminha que só permaneceu poucos meses nas águas da Pirocaia, estava muito velho - mas de mulher bem mais nova que ele - e declamava de cor tiradas e tiradas do poeta Guerra Junqueiro, o lusitano, autor do lindo livro "Os simples".
Para começo de sessão, "A velhice do Padre Eterno", famoso poema de Junqueiro, com muita proficiência, foi logo esmiuçado e devassado, embora aqui e ali o velhinho minguado entropicasse e caísse nos batentes da memória.
Do bairro, infelizmente, como já toquei, foi-se logo o meu declamador de versos. Esteve, ali, em estágio experimental. Condicionada a compra da chácara à venda do sítio do casal, em Caucaia, em não havendo fechado o negócio, lá se foram embora, de volta, os dois e mais um agregado deles, meio tantã, para o bucolismo do mato.
Mas o detalhe mais graúdo das minhas audiências literárias, ainda que trôpegas de sonoridade, além do cuspo fácil nos beiços desse certo seu Caminha, exímio em interpretar letras lusas, era a sua desparafusada emotividade. Nunca vi tanta facilidade para desmanchar-se em chororô. O homem declamava e chorava, a um só tempo.
Pois bem, aquilo parecia coisa de teatro. Vendo o vovô anoso desmanchar-se em lágrimas, enquanto desbragava Guerra Junqueiro, a voz lavada pela enxurrada da emoção, eu ficava muito sério, sisudo, escabreado, solene, meio como que pitando no dó, pois via naquilo tudo o peso da idade de seu Caminha.
Respeitava o entrevero, me solidarizava mudo, mudo, até o meu peito também se apertando. Talvez até sucitasse pena a visão, contudo eu não tinha propriamente pena: o que se me avultava na consciência era respeito, era admiração pelo gesto inusitado daquele velhinho esteta. E pela idade provecta, que cabeça tinha o ancião, apesar das suas tropicadas, do cuspo e do derramamento de choro.
Relendo os poemas de tua lembrança, Adla, as páginas de tua saudade, últimas folhas da tua presença longínqua, que me povoam para sempre a memória, hoje me sinto invernoso como o seu Caminha, fragilizado e propenso a liquidificar-me o espírito já bastante gasoso.
Fort., 13/11/2008