AS HISTÓRIAS DE PESCADOR DO SEU JOÃO BATISTA
As potocas sisudas de seu João Batista botavam moral até mesmo no mais irreverente anarquista. Em geral, com sucesso de audiência, começavam a se desfiar ali pela boquinha da noite e se enfiavam madrugada adentro.
Não havia como dessas conversas de beira de noite algum topetudo troçar nem desconfiar. E tempo para desfeita a ninguém seria concedido. Ora, quando o homem entrava em sessões contínuas, galopando eitos de papeamento, a narrar seus feitos lá pelas águas e igarapés da Amazônia, as horas não se acabavam mais.
A gente, meu pai e eu, além de outros que por ali se iam chegando, todos nós montávamos sofá confortável no silêncio, corpos e almas metamorfoseados em órgãos auditivos, a fim de que a platéia prestasse a mais solene audiência ao melhor contador de histórias de pescador que já viveu por toda aquela região serrana.
Das histórias fantasiosas que contava, sempre na maior cara-de-pau, sério que nem juiz de comarca, quando lavra sentença graúda, eu ainda guardo algumas poucas e boas relembranças na cabeça.
Vizinho de marcos das capoeiras de meu pai, o exímio contador de coisas fantásticas e misteriosas afiançava ser natural das bandas da Paraíba. Ainda novo e solteiro, fora bater com as costas nos seringais do Amazonas, coisa de pretender ganhar a vida.
Abusado de ser soldado da borracha, naqueles lastros de selva do Norte, por via da carência de rabos-de-saia, o homem retornou ao Nordeste, subindo aí no altar com noiva, roupa de brim branco, lenço botado no peito do paletó e tudo. Depois, não sei como nem quando, puxando uma cachorrinha, veio dar nos cerros dos nossos domínios, serra do maciço de Baturité, Ceará, dizem que num tal território dito Brasil.
Dona Jovelina, cuja variante da graça – lá dela – era o suave nome de dona Jovem, natural das paragens do Rio Grande do Norte, a digníssima mulher de seu João. Ela era, pois, uma potiguar da gema e fabricara muitos filhos. Mulher digna, séria e trabalhadora. Uma burra de carga de marca maior, inclusive dando duro no plantio, na limpa e na colheita do roçado. Trabalhadora mesmo e boa alma, além de parideira estava ali.
Então o casal aportou nas abas da serra, gostou dos verdes do lugar, aí compraram nesguinha de terra, pequeno sítio em micro. Na verdade, o chão da casa e algumas pedras de lajedo. “Mas, porém...” a família não era parca, e tudo gente submissa à carranca do patriarca, camarada loquaz, igualzinho aquele seu Pantaleão, do “Chico City”.
Especialidade de meu pai, de noitinha, era botar-me a caminho dos Apertados, lá onde ele e eu nos deliciávamos com as saborosas petas do excelente criador da literatura do absurdo. Em “Cem anos de solidão”, o Gabo não conta isso, contudo a literatura do absurdo nasceu, com certeza, foi naquele sitiozinho dos Apertados, e pela boca de seu João Batista.
Certa vez, com boca e sisudez em ação, seu João Batista paraibano desbragou algo para nós neste tom assim:
– Compadre, menino, peixe era demais nos igarapés. Um dia, me deu vontade de ir pescar, fui pescar. Então escolhi um cardume de curimatãs, que os peixes só andavam em cardumes. Se vosmecê quisesse peixe de outra marca, era só caçar o tipo de peixe: traíra, piau, bonito, o que fosse. Aí, então, eu joguei a tarrafa n’água de uma vez. Puxei a corda e senti o peso na rede. Puxei mais, notei o peso, algum bicho grande estrebuchando com força. Então, aí, então, quando, finalmente, dei balanço na pesca, meu compadre, pense no que havia... Havia, bem contados, sessenta curimatãs e um macaco.
O velho meu pai quis saber notícia como viera o macaco, e tal. A explicação veio de pronto, na ponta do linguajar.
– Na beira do igarapé, compadre, estava uma moita e, quando eu lancei a tarrafa, a ponta abarcou a moita e eu não vi o diabo do macaco.
Muito sério, grave como apresentador do JN, via satélite, a produzir suas peripécias, daí “potocas sisudas”, outra vez nos contou que, ao voltar do corte do látex, estranhou uma estrada muito larga, que nunca vira, ali, em plena mata. Mas se meteu pelo seu leito, e andou que andou, que já estava enjoado. Quando se deu fé, pisava quase nos olhos de uma cobra gigantona. Segundo ele, e ele fazia o tamanho, cada olho era assim, redondo como urupema das maiores que existem. Para se cuidar, fez o que devia: meteu-se a correr para trás. Ou, então, com as palavras do próprio: “– Meti o pé na carreira”.
Existem diversas e cabeludas histórias semelhantes, quero dizer, avantajadas, cheias de hipérboles, todavia fiquemos por aqui, e se deliciem com o cacoete linguístico do paraibano do bom: “– Mas porém, compadre... Mas porém...”
Fort., 07/11/2008