Perfume de Santos

Já não dormia há dois dias. Observava a estrada pela janela do ônibus, estava chovendo. Meus olhos fixos, pesados. Estava tão cansada que custava a mexê-los. Apesar da chuva, a noite estava linda, com um clima agradabilíssimo, nem quente, nem frio. Havia trabalhado o dia inteiro, dopada sob o efeito de energéticos e substâncias ilícitas. Vestia-me com uma longa saia roxa com pregas, calçava botas pretas de couro de salto altíssimo, e, na parte de cima, trajava uma linda blusa vermelha decotada. Maquiagem pesada, cabelo arrumado e alguns acessórios. Era novamente uma gótica, apenas por uma noite. Arriscaria dizer ”uma pseudo-gótica”, mas temo pela redundância da expressão.

Como quase toda jovem de vinte e poucos anos, eu não fazia a menor idéia do que estava fazendo. Já não me permitia cometer erros crassos da adolescência, mas ainda não dispunha da segurança da maturidade. Estava “dura” antes do fim do mês, meu trabalho era desgastante e minhas relações pessoais conflituosas. Aquela noite seria especial: aproveitaria uma ótima festa e reveria minha melhor amiga.

Em cerca de uma hora estaria em Santos, quiçá um pouco mais por conta da chuva. Sentia-me um pouco constrangida e insegura pelo jeito que me olhavam por conta da minha roupa quase alegórica. Já não estava mais acostumada com aquela multidão de olhares sobre a minha pessoa, vasculhando-me. Pensava: “Petulantes!”. Considerava-me jovem, não mais adolescente. Nem um pouco preocupada com problemas de auto-afirmação, rótulos ou classificações simplistas. As reivindicações furiosas feitas através de sub-nicks de MSN e páginas do Orkut há muito deram espaço para a sensatez do campo “idade”.

Naquela noite pretendia beber muito, dançar até o nascer do sol, divertindo-me o suficiente para conseguir esquecer a voz irritante da minha chefe. Com sorte, faturar alguém. O que menos importava era o que os velhinhos da poltrona ao lado pensavam de mim, até porque eu pensaria o mesmo deles se os visse trajados com a minha roupa: “Inapropriada”. Onde já se viu combinar vermelho com roxo? Na verdade, a única coisa boa em minha roupa era o meu decote. E eu sabia disso. Os velhinhos também.

Duas horas depois, o ônibus chega à rodoviária de Santos. Tomei meu último - e quarto - energético, tentando extorquir do meu corpo a pouca força que lhe restava. Desci do ônibus, rumo ao lugar marcado. Assim que cheguei notei que minha amiga ainda não havia chego. Aproveitei-me do atraso dela para ir à lanchonete e comprar uma daquelas bombas energéticas preparadas com açaí, pó de guaraná, guaraná, paçoca, Nescau, amendoim e ovo de codorna. Cumpre-se salientar: “Ovo de codorna é mancada”. Sobretudo quando colocam dois. Isso sim é uma sacanagem! Hermenêutica sacana de graça. Mas veja, eu estava tão cansada e com tanta vontade de aproveitar a noitada que eu tomaria até sua mãe batida com leite se alguém me prometesse que isso me deixaria acordada a noite inteira.

Algum tempo depois, finalmente ela chega. Minha amiga surpreende-me por trás, cobrindo-me os olhos com as mãos, como as garotas adoram fazer. Respondo: “Vanessa!” Abraçamo-nos. Viro-me, vejo como ela está linda, a cada ano ficava mais bonita. Seus seios sempre me pareciam maiores a cada vez que eu a via, mas talvez fossem apenas meus olhos. Na verdade, talvez fosse outra coisa que não meus olhos. Descendente de japoneses, sua pele bem branca contrastava com seu cabelo preto e liso. Vestia-se com uma saia preta de colegial, o que lhe destacava as pernas bem torneadas e longas. Usava uma blusinha preta com listras vermelhas, o que lhe rendia certo ar de graça. Nos pés calçava um “All Star” preto cano longo, já no rosto exibia um lindo sorriso inocente. Relativamente alta, delicadamente gostosa e profundamente encantadora.

Enquanto conversávamos a caminho da festa, deliciava-me com o cheiro de areia molhada, cheiro do mar, cheiro de Santos, cheiro que aos poucos se misturava com o perfume que Vanessa usava, um cheiro que perpetua boas lembranças impregnando meus sentidos para ficar em minha memória para sempre. A noite estava linda, poderia dizer que tudo ao meu redor estava muito agradável. Nós duas, jovens garotas, produzidas, sonhadoras e cheias de expectativas para a noite. Nossos olhos brilhavam a medida que compartilhávamos segredos, falando baixinho sobre o mundo proibido para que o resto do ônibus não ouvisse nossos pecados. Eu estava realmente feliz.

Obedecendo a regra de que toda garota bonita namora homem imbecil, minha amiga nutria um amor incondicional pelo absoluto panaca que namorava. Infinitas histórias mal contadas cumuladas com desculpas esfarrapadas para cá e acolá. Vanessa sempre o perdoava por amá-lo muito. Ele era assumidamente racista e moralista. Notoriamente machista e preconceituoso. Inobstante tudo isso ele ainda a tratava muito mal. Verifica-se claramente a impossibilidade de se relacionar com seu parceiro quando os problemas do relacionamento são resolvidos com inobservância do respeito mútuo. Tratando-se de um relacionamento amoroso, o mínimo que se espera de um casal é que ele consiga se relacionar. Destrói-se o amor, destrói-se o respeito, cria-se um monstro.

Vanessa contava-me sobre seu problemático namoro quando então percebi em seus olhos algo que denunciava que nem mesmo ela acreditava mais no que me dizia. Ela já havia começado a perceber que as histórias esfarrapadas eram apenas estórias. Apesar disso, ela ainda não estava disposta a perdê-lo. É difícil terminar tudo, sentir saudades. Eu a entenderia, caso ela resolvesse ser franca. Pensava: “Apenas me diga que você não acredita nessas histórias”. Mas eu entendia que talvez ela ainda não estivesse pronta para me contar isso. Contudo, como boa amiga que sou já havia notado. Como boa amiga que sou mantive segredo, aguardando pacientemente até o momento em que ela estivesse pronta para me contar.

Descemos do ônibus. A chuva havia diminuído. Pegamos carona com os pais de uma amiga nossa chamada Luciana. Luciana era loira, baixinha, usava meia arrastão e maquiagem pesada em seus olhos verdes. Vestia-se com uma saia curta preta, de pano, e uma blusinha justa de couro. Muito bonita. Ela não poderia ir à festa conosco, pois estava de recuperação na escola. Sua irmã mais nova, conseqüentemente, não poderia ir à festa também. Luciana tinha apenas 15 anos, sua irmã 13 e minha melhor amiga 17. Quando os pais da Luciana vetaram sua ida à festa, motivados pela recuperação escolar, não pude evitar que uma sensação de velhice pousasse sobre meus ombros. Na época, eu estava com 19 e já morava sozinha.

A festa seria realizada dentro de um casarão beira mar. Um lugar tenebroso, com gente mais tenebrosa ainda dentro. Do jeito que os rockeiros gostam: muita bebida, gente estranha e o velho e bom rock’n’roll. Durante a noite, shows das melhores bandas da região, incluindo a banda cujo tecladista era o namorado panaca da Vanessa. Com duas pistas e um palco, o lugar contava até mesmo com uma “dark room” improvisada. Para os gulosos, churrasco. Para os sórdidos, devassas.

Finalmente chegamos à festa! Uma chuva bem fininha deixava a visão do casarão ainda mais anacrônica. O lugar parecia perdido no tempo, sentia-me como se estivesse perdida em algum lugar no meio da Europa Medieval. Ao redor da mansão espalhados na vegetação encontrava-se seres medonhos, eram eles tipos e subtipos de rockeiros, todos devidamente trajados e pintados à moda da tribo. No chão, barro, pedras, areia e mato. A cena era demasiadamente insólita, a atmosfera perfeita para imaginar alguns orcs saindo do mato.

Diminuímos a velocidade, aproximando-nos da multidão que aguardava na frente do casarão. Vanessa olhava atenta através da janela do carro, procurando por seu namorado. Despedimo-nos de Luciana, que voltou para casa com sua irmã mais nova, agradecemos a carona e então descemos do carro. Vanessa já havia avistado seu namorado, que estava acompanhado pelos outros membros da banda. Juntamo-nos a eles. Não sei se ele realmente tentou ser legal comigo ou se apenas estava tentando ganhar a aprovação da amiga da namorada, mas o fato foi que ele fez de tudo para que eu entrasse de graça na festa. Queria tanto odiá-lo, entretanto a situação só me permitia reconhecer que foi uma atitude bacana.

Entramos. O chão estava molhado por causa da chuva, mas ao menos havia parado de chover. A casa estava lotada. Descemos dois lances de escadas até o saguão principal, de onde podíamos ver um bar movimentado logo na entrada. Ao fundo, uma grande porta de madeira, com duas caveiras metálicas cravadas de cada lado do batente. Parado ao lado esquerdo da porta estava um homem alto, cabelos compridos e barba por fazer, era um viking metaleiro. Olhou para o nosso bando e então começou a andar em nossa direção. Era amigo do namorado da Vanessa. Junto com ele, trouxe mais dois amigos para juntarem-se a nós.

Apesar do cansaço, afinal estava há dois dias sem dormir, queria muito dançar. Tratei de providenciar dois copos de vodka, puxei minha amiga pelo braço e corremos para a pista de dança que ficava no porão da casa.

Dançamos juntas por mais de duas horas. Durante duas horas libertei-me do cansaço, libertei-me do meu corpo. A música já havia me levado para outros lugares, rompendo os limites de tempo e espaço. Quando voltei a mim, notei que o namorado da minha amiga estava dançando conosco. Por alguns instantes, me permiti esquecer que o odiava, apenas vislumbrei minhas sensações, voltando a me libertar e a divagar pelo som. Aquilo era o que eu mais gostava de fazer. As luzes frenéticas embalavam o som dançante lançado nas alturas, cercada por pessoas que compartilhavam do mesmo sentimento. Sentia-me viva novamente. Estava começando a suar de tanto dançar, mas não pensava em parar. Gostaria de viver aquele momento para sempre, prendê-lo dentro de mim para nunca mais escapar.

O namorado da Vanessa estava sendo legal, estávamos nos divertindo muito juntos e eu sequer me incomodei em segurar vela. Até parecíamos três amigos aproveitando a noitada. Fechei meus olhos, senti meu coração batendo forte, faltava-me ar nos pulmões e minhas vísceras clamavam: “Carpe Diem!”

Algumas horas depois, deixamos a pista e fomos ao bar reabastecer. Sentei-me para descansar um pouco sobre um dos muros da casa, da onde a vista para a praia era esplêndida. Minha amiga havia saído para dar uma volta com o namorado, então aproveitei para beber minha cerveja e pensar um pouco na vida. No final das contas, o namorado da minha amiga não parecia o monstro que eu havia imaginado.

Percebo alguém se aproximando, então me viro e vejo Vanessa caminhando ao meu encontro, na mão um copo e no rosto uma expressão triste. Chorava. Desci imediatamente da onde estava, correndo em sua direção. Perguntei a ela o que havia acontecido, no mesmo tempo em que enxugava suas lágrimas. Seu namorado e suas histórias mirabolantes haviam dado o ar da graça. Ela contou-me que um dos amigos do namorado dela, o viking, havia lhe contado que ele, seu namorado, não gostava mais dela, que queria terminar o namoro, mas não sabia como. Tinha medo de magoá-la, ficava com ela por pena.

Seus olhos enchiam-se de lágrimas à medida que me contava os detalhes do acontecimento. Continuou dizendo que após esse comentário, foi tirar satisfação com seu namorado, perguntando-lhe se isso era, de fato, verdade. Seu namorado negou, porém a tratou mal e disse que precisava passar mais tempo com a banda dele, que estava nervoso, pois iria se apresentar em breve e precisava se concentrar. Desta forma, a deixou falando sozinha e a largou no meio da festa. Agora ela estava aqui ao meu lado, com o coração na boca, pedindo-me ajuda.

Nesse momento eu queria dizer tudo o eu pensava sobre ele. Romper o silêncio do “Apenas me diga que você não acredita nessas histórias”, com o qual havia me comprometido. Chega de histórias mirabolantes que sempre tem uma desculpa esfarrapada. Mande-o pastar e fique comigo.

Respirei fundo. Não poderia exaurir argumentos tão parciais. Minha amiga precisava de mim como amiga. Precisava do melhor que eu poderia oferecer, como minha capacidade de ponderação, dos conselhos de amiga mais velha, da experiência de vida que eu poderia me valer para ajudá-la. Ela queria resolver-se com ele, não havia tempo para os meus conflitos. Eu nunca poderia me aproveitar da situação fragilizada na qual ela se encontrava para tirar proveito. Não poderia pensar apenas em mim. Seria covarde. O que estava em cheque não era o que eu pensava sobre o namorado dela, mas o que ela pensava dele. Eu o odiava, seja por seus defeitos ou pelo jeito que a tratava. Eu sabia que ele estava errado, tanto naquela situação como em diversas outras, mas até onde ia a verdade dos fatos para então começar meus interesses? Por esta razão, minha ética aconselhava-me a ser o mais imparcial possível.

Comecei, então, a ponderar todas as possibilidades. Abandonei todo e qualquer interesse pessoal, bem como abandonei juízos parciais em relação ao namorado dela. Era pura razão e bom senso. Coloquei em cheque todos os envolvidos, todas as suas possíveis motivações e interesses. A começar pelo viking, afinal, ele era homem e ela mulher e bonita, era uma possibilidade. Pedi mais alguns detalhes sobre a história para que pudesse elaborar tanto a defesa como a acusação do namorado dela. Deixando claras as duas possibilidades, afirmei que caberia ao coração dela decidir.

Algum tempo depois, ela insistiu em subir para ver o show da banda do namorado dela. Enquanto isso, eu mesma fui conversar com o viking, mesmo sem o conhecer. Cheguei com os dois pés no peito: “se o que você disse é verdade, você confirmaria o que disse na frente do seu amigo, namorado dela?” Viking de acordo, conversaríamos após o show. Durante a conversa calorosa, uma recepção fria dos céus: mais chuva, e dessa vez grossa. Fiquei encharcada. Não adiantava mais reclamar do cabelo ou da maquiagem, graças ao meu rímel fiquei parecendo o Joker. Mas por mais incrível que pareça, não destoava das outras pessoas da festa.

Sentia frio. Resolvi voltar ao show. Quando voltei, observei que minha amiga aguardava pacientemente o término das músicas para então subir ao palco e levar para o seu namorado uma garrafinha de água. Ele a ignorava, falava alguma grosseria e então ela descia do palco, triste. Ela voltava à primeira fileira, da onde o via tocar, cantava as músicas da banda, aplaudia e dava todo aquele apoio que uma boa namorada daria.

Segurei-me firme à cadeira. Respirei fundo para não chorar. Então me curvei para frente fingindo que estava dormindo, cobri com as mãos o rosto, virei para o lado e então chorei escondido. Chorei por raiva, com um misto de compaixão e amor. Por que raios ela se submetia a isso? Ela havia tomado um suposto fora, que ele havia negado, mas logo em seguida ele a abandonou na festa e agora a tratava como lixo. E mesmo após tudo isso, ela ainda estava lá, quando ele precisava dela, ela estava lá.

Quando o show acabou, vi o viking levantando-se e indo embora da festa, minha amiga caminhando em direção ao palco, então saquei que meu lugar não era ali. Tratei de sair sorrateiramente, descendo as escadas até o porão. Quando cheguei lá encontrei outra escada, muito suja, escura e molhada, que nos levava à praia.

Havia saído do casarão, estava na praia. Como já estava molhada por causa da chuva, não pensei duas vezes. Corri e pulei. Paulistana não perde praia, nem mesmo a praia suja de Santos, nem sendo noite, nem estando chovendo, sobretudo bêbada. Os roqueiros que também haviam descido e estavam na praia me olhavam surpresos, mas pouco a pouco, um a um, todos eles fizeram o mesmo. Mal sabiam eles que aquela havia sido a minha menor burrada da noite.

Fiquei o resto da festa tomando vodka para me esquentar. Sentei-me no mesmo muro que antes sentara para observar a praia. Mas agora meu olhar era fixo, pesado. Com quem olha por detrás da janela do ônibus. Olhando a estrada que havia me trazido até aqui, olhava a chuva. Aquele olhar de quem olha, mas não enxerga. A praia era apenas meu portal para diversos cantos da minha memória.

Relembrando dos meus pecados, sufocava no peito aquele que não havia conseguido cometer. Hei de resistir a tudo, inclusive às tentações.

Comecei a me lembrar do dia em que nos conhecemos. Da amiga para todas as horas, a única que nunca havia hesitado em voltar para trás para me buscar, me puxar pelas mãos, quando todas as outras pessoas já haviam passado por mim e seguido inertes. O amor que sentia por ela, esse sim era incondicional. Não exigia contrapartida, eu a amava como uma irmã mais velha. Quando via alguém a maltratando, meu peito sufocava de tanta dor. Um amor limpo, amor que não era amor de uma simples amiga, mas não havia sido maculado pelo desejo sórdido de possessão. Apenas queria cuidar dela, levá-la para casa. Entretanto, não havia como não se encantar por ela. Visto que eu conhecia de cor todas as suas virtudes, toda a sua esplêndida essência e cada extensão da sua beleza.

Senti novamente aquele cheiro de Santos, o cheiro de areia molhada misturado com o seu perfume. Virei-me. Ela estava parada atrás de mim, segurando a mão do seu namorado. Ganhei meu Oscar como melhor atriz. Levantei-me e sorri “Vamos?”. Subimos as escadas e fomos embora.

A caminho da rodoviária, Vanessa contava-me a respeito do seu relacionamento problemático. Sobre a última desculpa – esfarrapada – que ela havia ouvido seu namorado contar. Senti pela última vez o cheiro de Santos, abraçamo-nos e então parti.

Embarquei. A multidão de olhares voltou a me invadir sem permissão. Mas não me importei com a petulância. Sentei na poltrona da janela, da onde poderia olhar novamente a estrada passar. Fechei os olhos. Apenas queria dormir.

A roupa úmida havia ajudado a destacar um pouco mais o meu decote. Mas não me importava com o que os velhinhos da poltrona ao lado pensavam. O meu decote não era a melhor coisa em mim. E eu sabia disso. Os velhinhos que se fodam.