Ao meu dono, ou a quem interessar

Eu nasci em um petshop e fui comprado algumas semanas depois por um casal.

Vivi muitos momentos felizes ao seu lado, fui alimentado, ganhei uma cama quentinha, brinquedos, e sinceramente não tenho mágoa por ter sido castrado.

Não conheci muito do mundo aqui fora, porque eles sempre tinham o cuidado de não me deixar escapar por algum portão que fosse esquecido aberto.

Com muita alegria vi o primeiro filho do casal nascer, e logo estava brincando com ele pelo piso da sala.

Quando ele cresceu um pouco e perdeu o interesse por mim, veio a menininha, segunda filha do casal.

Ela passou a ser minha companhia até crescer também, e depois mais uma vez fui perdendo as atenções.

Meus donos, depois de alguns anos, passaram a esquecer por horas de me alimentar, e ficavam irritados com a minha presença ou meus latidos.

Eu entendo. Eles estavam ficando velhos. E sei que a idade avançada causa cansaço e outros problemas.

Eu mesmo estava ficando velho, minha vista já não alcançava tão longe, e meus quadris estavam ficando pesados. Quando passaram a me bater pra sair de perto, descobri que as dores no quadril eram bem piores do que eu pensava.

Eles passaram a me levar ao médico e reclamar dos gastos. Eu não entendia muito bem, porque eu não pedia para ir ao médico, eu só queria brincar um pouco ou quem sabe comer um pouco mais cedo.

Se trocassem minha água eu também agradeceria.

Peço desculpas pelo dia em que não consegui segurar e fiz necessidade na varanda. Eu apanhei. Mas é que haviam se esquecido de me levar lá fora.

Bom, agora tudo isso é passado. Nunca mais vi as crianças, porque quando elas vinham visitar, me colocavam preso num espaço no fundo da casa.

Podia ouvir outras crianças, acho que os netos, mas eu não podia chegar perto delas porque diziam que eu estava "doente", "suja" e "fedida".

É que ninguém mais tinha tempo pra me dar banho.

Um dia, saímos para passear de carro. Achava que ia ao médico, mas acho que meus donos se confundiram.

Eles me deixaram aqui nessa rua.

Já faz muitos dias. Eu não sei contar, mas é bastante tempo.

Ainda bem que alguns moradores me dão comida e água, até eles lembrarem de onde me esqueceram.

Deve ser a idade. As pessoas vão ficando velhas e esquecem das coisas.

Eu só queria ver minha casinha uma outra vez, ver meus donos e as crianças. Que agora já eram adultas eu acho.

Mas os dias vão passando e eles não lembram de me buscar.

Ando acordando bem fraco e já não enxergo de um dos olhos. Alguns dos meus destinhos caíram e não consigo andar direito sem doer todo o corpo.

Acho que estou morrendo.

Tenho pena dos meus donos, devem estar sentindo minha falta e me procurando desesperados.

Devem ter esquecido de onde me deixaram.

Peço a quem encontrar essa carta, entregue para eles. Eu não sei o endereço de onde morava nem sei onde estou agora. Me desculpem.

Mas diga que eu os amo. Amo o tempo todo e sinto muito a sua falta.

E que me desculpem por não ter encontrado o caminho pra voltar pra casa.

Assinado

Um cão.

Tarciso Tertuliano Paixão
Enviado por Tarciso Tertuliano Paixão em 18/08/2024
Código do texto: T8131746
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