JOSÉ PAULINO DA SILVA

(CARTA A ZÉ PAULINO

Dedicado ao Prof. José Paulino da Silva)

Depois de umas boas três décadas reencontro você. É mesmo “uma experiência transfiguradora e revolucionária”. Também uma experiência de me encontrar nas suas lembranças.

Você surge e ressurge na minha memória: uma figura grande, alta, comprida, assim movendo-se, branco e lento, ondeante. O rosto levantado. Será que já discutia com Deus? E eu pinotando, sapeca, dizia para você nos corredores na faculdade de Dom Luciano que José Paulino era também o nome de meu pai.

Na dedicatória que você colocou no exemplar de Itinerários da Libertação eu apareço de certo modo fazendo parte deles. Pôxa, Zé, como você encheu a minha bola!

Tantas vezes desejei escrever algo assim tão parecido com os itinerários, revirando as gavetas, puxando tantas maravilhas para fora do baú, conseguindo um replay da vida, da infância, da adolescência.

Sim, lembro: você era ( ? ) padre, parecia padre, queria ser padre, desistira de padre ser. Qualquer coisa era padre. Depois vem uma lourona. Dois enormes olhos azuis e um nome de outras terras.

Mas, quero é falar... escrever sobre seu lindo livro. Que bom que ele é! Todo, ou quase todo libertação. Que bom que não tem chatice de 1. / 1.1./ 1.1.1 /.1.2. Que bom ele começa, desenvolve e conclui sem dizer estou introduzindo o tema, agora estou desenvolvendo e agora estou concluindo. Igualmente ele ter gosto de conto, de crônica, de novela, de romance, de Guimarães Rosa, de Drummond e de Raul Pompéia.

Nos arquivos da minha memória moram cenas, recortes de cenas também com cheiro e gosto de interior. Aracaju era diferente. Minha mãe, de Itabaiana. Meu pai, de Itaporanga. Uma casa grande. O quintal maior do que a casa. Mangueira, goiabeira, major-Gomes, bredo, hortelã-grande, hortelã-miúda, taioba, um tanque, pombos, um galo cantando, um peru respondendo, um cágado em câmera lenta, galinhas, ovos frescos, fogão à lenha. Havia também um coqueiro, muitas lagartas, lesmas, cobras de duas cabeças, bem-te-vis, borboletas. No inverno, uns sapinhos. Mentrasto florou, verão entrou. Ah, que bom! Havia orvalho sobre as flores pela manhã.

A minha mãe, professora, me alfabetizou em casa enquanto cozinhava feijão verde e carne de carneiro. Tá sentindo o cheiro vindo da panela da memória? Também ouvi histórias que entravam pela perna do pinto e saíam pela perna do pato. O poder mandava contar mais quatro. E por falar nos quatro, o pior era fazer contas.

O meu olhar sobre o mapa-múndi era a viagem que me consolava por não poder conhecer aquelas terras de nomes tão bonitos. Quem sabe, de bonito só tinham o nome.

O meu rio amado e bonito eu avistava da calçada, olhando o comprido da rua Laranjeiras.

Sobre colégio, Zé, minha trajetória tem alguma diferença da sua. Apesar de ter estudado no Jackson de Figueiredo, leia-se Judite e Benedito, minha referência mais forte e extensa foi a do Atheneu, sinônimo de liberdade. O Atheneu era uma faculdade que muitas hoje desejariam ser.

O Nossa Senhora de Lourdes (em bom francês) e o Patrocínio de São José é que pelejavam com a Regina de cara partida. Mas aquelas moças bonitas, patricinhas de antanho, namovaram pra danar. Com os bonitões do Atheneu. Isto enquanto a freira cortava as unhas do demônio.

O padre Pedro e o padre Lacerda, na igreja do Rosário, esconjuravam os casais de namorados em português e celebravam as últimas missas em latim. Aos domingos aconteciam as aulas de catecismo para todo mundo ser bonzinho e protegido pelo anjo da guarda. Este, segundo minha mãe, se afastava de nós se não dormíssemos vestidos nas camisolas. Como eram gostosas aquelas camisolas bordadinhas e como era dignificante aquele sonhar com os santos.

Meu amigo Zé Paulino, também estranhei muito a raiz quadrada vez que, a primeira raiz que conheci foi a do quebra-pedra, tão esfiapadinha!

Gostei muito do francês com seus biquinhos de “le jour de gloire est arrivé” na voz estereofônica e de high-fidelity de João Costa. No inglês foi Branca, sem ser de neve. Passei muitos anos cantando mentalmente “whatever will be, will be. The future is not ours to see, what will be, will be”. Se não me trai a memória era a Doris Day. Das equações febris, as mais constrangedoras recordações. Minha sorte foi o curso Clássico. Naquele reino das Humanidades, os números não entravam. Mesmo assim levei um zero em Português, isto é, em Gramática, o clergyman da Língua.

Sobre os beijos, não precisa ficar tão triste, para nós não-santos, o pecado era do mesmo tamanho. Beijar namorando só em sonhos. Quando os pais não estavam por perto, os vizinhos faziam a vigilância.

Fora dos seminários lutava-se também contra a panaria que nos envolvia. Até que veio a mini-saia libertadora dos passos femininos e feministas. Os sutiãs foram queimados. Agora renascem das cinzas, essas fênix emborrachadas. Você fala da camisa Volta ao Mundo e eu lembro do conjuntinho Ban-lon. Qual será o significado de Ban-lon? Era lindo... Outra coisa boa: o tamanco Francesinha para a gente sair fazendo charme, teco-teco pelas calçadas. Bom demais era ver na televisão chuvisco Roberto Carlos cantando Aquele beijo que te dei.

Voltando ao assunto, achei também bastante complicado, e para bem dizer a verdade, complicadíssimo lidar com as matemáticas. Tanto que escrevi uma crônica sobre o tema. Mas, a subjugação maior foi a de ouvir D. Judite ou Professor Benedito em seus discursos matinais no Colégio Jackson de Figueiredo. E Seu Joel, o bedel, a postos para verificar a tentativa de mini-saia que fazíamos enrolando o cós. Além de fazer isto, Seu Joel também acompanhava as alunas até aos lavatórios onde deveriam lavar os rostos excessivamente maquiados.

Outra lembrança, esta mais antiga, é a da fila que tínhamos de enfrentar para tomar o leite dos americanos na vaca mecânica. Era gostoso e borbulhante. O acontecimento se dava no antigo Grupo Escolar General José Siqueira de Meneses. Ficava naquele prédio, na rua da Frente. Um que já foi Atheneuzinho e Secretaria da Educação. Bons tempos em que podíamos nos pendurar na balaustrada para sentir o cheiro do Rio Sergipe.

Nasci meio rebelde, meio Raul Seixas. Os opressores disfarçados de educadores conseguiram pouco comigo. Alguns até subverti.

Da tortura física, minha história resume-se a um único evento. Num educandário, a professora era também minha parente, caiu na besteira de me dar um bolo e colocar de joelhos sobre o milho. Aí foi ruim. Minha mãe, uma professora moderna, contrária a esse tipo de pedagogia da violência, não deixou por menos: passou uma inesquecível repreensão naquele projeto de mestra e, de imediato, me afastou daquela escola.

Pensando bem, meu caro Paulino, as escolas estão involuindo. A geografia e o aprisionamento afetivo só têm se organizado mais. No pior dos sentidos. São tantas séries, tantas saletas, tantas outras criações de mentes doentias. Mais paredes, mais calor e menos verde. Num ambiente cinza o pensamento vai tomando uma única forma: a do retângulo.

A fala está mais solta por parte dos alunos. Já o professor está quase mudo. Mudo de fome. Mudo de idéias e mudo por desconfiar que Xuxa e Ratinho o substituem bem sem dar qualquer pelota para Piaget.

Culpados somos cada vez mais. Agora são muito mais padres, pastores e gurus a nos prometerem portões eletrônicos no inferno. Deus é carregado para os palanques e forçado a freqüentar showmícios.

Agora, quanto ao corpo e a prazer, aí sim, o avanço é total. Todas as incógnitas do passado estão deslindadas. Se prestarmos bem atenção, vamos encontrar os moralistas fingidos de todas as épocas.

Essa descoberta do professor que aprende com o aluno foi a maior tacada. Nem sei como agradecer a Paulo Freire. Primeiro, porque é verdade e, segundo, porque a gente descansa um pouco. Pena que muitos ainda não aceitem esta maravilha.

Sabia que é muito e muito fácil pensar a civilização sem escola, assim como os bancos são muito comuns pós-cashes? Feche os olhos e pense: que bom acabar com tudo e ficar em casa à vontade, estudar pela TV, pela Internet e fazer provas em determinados períodos.

Pensando assim estamos nos candidatando à fogueira da Inquisição II. Pensando melhor, como se mostra difícil ser coerente. Vale lembrar D. H. Lawrence outra vez: “Antes dos homens terem cultivado a mente, não eram loucos”. E se enlouquecemos não conseguiremos nos situar no coletivo. Os loucos caminham em várias, e em todas as direções, e sempre solitários.

Vamos envelhecer e morrer falando de dominação cultural usando uma língua cuja essência é a marca de vários dominadores. Estou cansada desta moda de palavras, desta sazonalidade lingüística da qualidade e da cidadania.

Esses seus itinerários são mesmo uma semana de arte moderna contra os preceitos, os moldes para a elaboração do texto científico. É ótimo encontrar o pesquisador misturado com o objeto de seu estudo, fazendo parte dele.

A sua zanga, a sua dor, o seu sentimento de revolta contra a injustiça social nos cala mais fundo ainda, mais espiritual.

Somos Plácidos. Haja cachaça! Nela esquecemos por algum tempo a violência, a opressão e a corrupção.

Eu também já desconfiava ser uma utopia a educação libertadora. Sabe por quê? Porque quando entendemos isto ficamos mais presos do que antes e, justamente por estarmos conscientes. A inocência tem bem mais vantagens. Principalmente para quem, como eu, não se acostuma com a sujeição.

Agora mesmo eliminei uma frase e penso: A frase não era boa, ou de alguma forma você me reduz o direito à palavra por ser um Doutor em Educação. Assim não me liberto. Pelo menos aceitei o desafio.

Digo a minha palavra

Não sei cantar

A música mesmo triste

quando vai é lavando a alma

Já a palavra

Esta vai deixando filhos

todos férteis

Publicado na Gazeta de Sergipe de 17 de fevereiro de 2004. Agradecimentos ao Professor Luís Antônio Barreto