Carta Rasgada dos pergaminhos de mim

Carta rasgada dos pergaminhos de mim

Rasgo essa carta antes de escrevê-la.

Sim rasgo também a ideia de escrevê-la, rasgo o papel, destruo o lápis, a caneta, o pincel, quebro o computador e o celular. Nenhuma mensagem sairá de mim porque eu já nem sei quem sou. Como algo poderá ser escrito de ninguém para ninguém? como escrever se não existo, não penso, não sinto. Há um vazio imenso dentro de mim, cavo bem fundo, bem lá no fundo e não me reconheço, não me encontro, não sei onde fui parar…

Rasgo essa ideia de carta, rasgo esse sentimentalismo, esse momento econômico que afeta tantos, que causa desemprego, miséria, rasgo tudo que nos afasta, rasgo esse apartheid político que me fere, rasgo esses jornais sensacionalistas, rasgo as ideologias falsas, rasgo os sonhos da adolescência, rasgo a esperança da juventude, os amores vividos e não vividos, esquecidos… mas não posso rasgar o vírus, ele está aqui, ali, acolá. Ele afeta a todos, ele leva pessoas, nos causa síndromes ainda não estudadas, ainda não descobertas, nos arrebata a saúde, os abraços, os sorrisos, a vida, o luto. O vírus destrói nossas tradições, nossa cultura e nossa identidade.

Eu já não acredito na teoria das cordas, tudo é caos, tudo é nada e eu já não sou mais ninguém; Não sou mais aquele ser de fé, não encontro parceiros que me compreendam, não há viola, sanfona, pandeiro ou bandolim no meu choro, que choro? não há jazz também, nem chorinho, chorinho sem lágrimas, seco feito a terra árida. Eu não choro. Não há colo pra chorar, não vai mudar nada, não vai chamar a atenção, não tem função. Lágrimas do sertão;

E eu tenho que juntar meus pedacinhos, feito quebra cabeças e reconstruir aquele ideia de gente que eu era, cheia de esperança, de força, de alegria.. eu não sei mais brincar… chama a criança… chama…. chama… chama é fogo também e fogo também vem da lama, do fundo do poço, dos pântanos, fogo fátuo. Sim. Parece que os pedacinhos começaram a se juntar, mesmo com as incongruências, com o temporal, com os tropeços da linguagem, com pedaços que se perderam, levados pelo vendaval. E vamos juntar novamente o que um dia foi gente, sensível, gentil, humana.Perdoar. Perdoar-se. Essa será nossa missão. Levar a vida com amor, reacender o amor em nós.

Salvador, 30 de março de 2021