porta, tapete, primeiro cômodo

não aguento mais lidar com tantas despedidas que em mim soam como se meus ouvidos escutassem o "adeus", sendo que sou eu quem se despede toda vez. em mim é como se fossem embora, mas sou eu que sempre fecho as portas. fechei na tua cara, na tua e na tua também, como se temesse finalmente ouvir o barulho da fechadura e estar do lado de fora, me despedindo me sinto em casa, dentro de casa. só te peço pra sair porque parece que nunca esteve aqui. dentro. nunca passou do tapete da entrada e me deu espaço pra, pelo menos, encostar a porta... e tenho muita coisa aqui dentro, não posso correr o risco de vê-la entreaberta e fugir do meu próprio lar ou de um terremoto passar e as coisas, por ventura, caírem pra rua. preciso poder encostar a porta e você me dá a sensação de que ainda nem passamos pelo primeiro cômodo, enquanto por mim teria uma gaveta tua no meu guarda roupa. teria uma xícara verde pra tomar café comigo a tarde. teria teus materiais de arte em cima da mesa e o leite que você gosta de tomar a noite, na geladeira. mas você ainda estava a pensar sobre tirar os sapatos e ficar mais um pouco ou esperar a chuva parar pra ir embora. eu queria que você se molhasse, tirasse os sapatos, as roupas e colocasse algo meu. gotas molharam teus cabelos castanhos mas não o suficiente pra você pensar que não valia a pena molhar o banco do carro se podia ficar e dormir comigo. como eu poderia não fechar a porta se você só me via pela janela e eu te via em todas as paredes da minha casa sem nem ter te visto encostar nelas? como eu poderia não me despedir se você nem veio me visitar? se o pouco tempo que te vi, foi caminhando pelas suas esquinas tentando te convencer a me enxergar e ainda assim, era muito longe, você disse, me encontrar. sinto que você escolheu partir, ainda que eu tenha trazido o adeus aos nossos ouvidos, mas já há algum tempo você não estava aqui. meus olhos marejaram a ponto de barrar toda a minha chance de visão quando aquele carro virou na rua de baixo, ainda engulo seco quando imagino as tardes ensolaradas na varanda ouvindo sua risada de fundo. não entendo como suas palavras e sentimentos perduraram por meses a fio enquanto estive distante e quando finalmente cheguei, se esvaíram fácil e tão depressa... talvez os ventos que moveram teus cabelos levaram consigo tua verdade também, afinal, sempre te ouvi dizer que não sabias quem eras, como pude achar que estaria pronta a me conhecer? a passar pela porta, pelo tapete, pelo primeiro cômodo. infelizmente, pra nós, felizmente pra mim, me conheço o suficiente pra entender que é melhor estar sozinha em casa do que ficar sentada no degrau da entrada te esperando decidir se prefere se molhar na rua ou entrar, se aquecer e tomar o leite naquela xícara verde.

Carmen Tina
Enviado por Carmen Tina em 08/08/2020
Reeditado em 12/08/2020
Código do texto: T7029427
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