Carta para a amiga de mais de 4 décadas de convívio.

Carta é sempre algo muito pessoal, íntimo, que não se divide.

Mas eu quero partilhar esta, que retrata o sentimento do hoje, das coisas desse tempo, de tempestades vis e ventos gelados que cortam a pele impiedosamente.

As cartas fazem parte da construção da nossa história emocional, das nossas dores, desastres e também das alegrias e vitórias.

A Neusa é minha amiga desde os tempos de pré-vestibular no Objetivo. Desde 1976. Tempos de sonhos que teimavam em florescer em meio ao pesadelo da ditadura e tempos também de certezas de que daríamos conta das nossas vidas. Bastaria uma dose exagerada de esforço, exercício da competência, garra e a luta desmedida para um país melhor, mais humano, menos denso e mais fraterno.

Acreditamos juntas nisso. Batalhamos o tempo todo por isso e hoje estamos com a alma em frangalhos, mas sabendo que devemos resistir sim, resistir sempre. Jamais deixar que a nossa biografia seja maculada.

Ontem escrevi para a Neusa. Lá vai:

Neusa Maria, mana querida, como vai?

Estamos aqui, mais uma vez, partilhando algumas coisas boas da vida.

Resolvi mudar em algumas atitudes, impensáveis tempos atrás. Cuidar mais de mim, eis uma opção de sobrevivência com dignidade.

Eu, honestamente, me cansei, me fartei totalmente de tanta sandice que assola o país. Não deixei nada de lado, apenas estou mais seletiva porque não quero me adoecer mais do que ocorreu. Foi tudo: noites pavorosas de insônia com a crise do pânico se instalando com severidade e dureza. Pânico que provocou um desespero horrendo com uma vontade alucinada de gritar madrugada a fora. A plenos pulmões.

Foi a primeira vez que tive toda a certeza da finitude, mas não por conta da pandemia. Por conta do bozo mesmo. Como bem disse a Márcia Tiburi, o país escolheu pelo seu torturador e isso, por si, me apaga, me abafa, me endurece.

Cansei tanto da psicopatia que resolvi reagir de uma forma, para mim, inusitada. Procurando recurso psiqui-átrico, além dos meus florais mágicos que me devolveram o direito a dormir uma noite inteira e a perder a vontade de vociferar noite adentro.

Nós sabíamos que desceríamos ladeira com força e confesso que estou com uma imensa dificuldade em me relacionar com pessoas que sei que ajudaram o país a falir.

Bem, estou muito melhor agora. Cuidando de mim. Jamais cuidei tanto da minha casa, antes tão abandonada. Cuidando das roupas, da biblioteca, ressignificando alguns sonhos, me fortalecendo sem me cansar, reconhecendo equívocos gritantes e tratando de não repeti-los. Tentando fazer as pazes com a vida, buscando novas leituras e estudando, estudando muito, até porque tenho tempo de sobra para tal. Nessa altura, estou praticamente sem pacientes e sei que vai demorar muito para eu resgatar isso. O que fazer? Esperar, somente isso.

Consciência de finitude me abriu o olhar com mais amorosidade para as coisas da vida. Paciência total com o cunhado que mora agora conosco, degradando a sua existência a olhos vistos, de fraldas e sem controle. Eu gosto muito dele. O irmão que não tive e vou cuidar amorosamente até o fim.

O exercício da compaixão me abraça de novo e isso me faz suportar o que vejo. Quantos sonhos para esse país que hoje tanto me amargura, mas resisto. Resisto principalmente estudando. Se me quer ignorante, estudo mais. Se me quer imbecilizada, leio Hanna Arendt. Se me quer doente, me cuido, me trato e homeopatizo as forças da natureza. Sejamos maiores, Neusa Maria. Sempre maiores.

E já avisei: no dia em que eu bater com as dez, quero ser enterrada com a carteira profissional aberta, mostrando prá São Pedro que lecionei História por 30 anos nessa terra brasilis , mas levarei também, como a Beth Carvalho, o título de eleitora, prá mostrar prá todos os santos que não fiz merda e que sempre estive do lado certo.

Estou caminhando, Neusa Maria. Mais firme, mais forte, com mais decisão, me recuperando e optando por não adoecer mais.

Um beijo muito amoroso, com saudades. Inté.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 27/07/2020
Reeditado em 27/07/2020
Código do texto: T7018258
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