As cartas que não escrevi (Pero Vaz de Caminha)

Se eu fosse o Escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, teria enviado esta carta à Lisboa pelo comandante Gaspar de Lemos, ao rei Dom Manuel, de Portugal, comunicando a nossa chegada em Porto Seguro, no Brasil, no dia 1º de maio de 1500, dizendo assim:

Senhor rei, quando chegamos aqui na nova terra, avistamos de longe um monte alto que o capitão pôs nome de Monte Pascoal, porque estávamos na semana da Páscoa, e a terra chamou de Terra da Vera Cruz. Pode ser um prenúncio de inflação alta e de muitos feriados.

Ao chegar mais perto da costa, avistamos alguns vinte homens com arcos e flechas andando pela praia, pardos, nus e sem vergonha, que vinham em nossa direção. Pode ser um prenúncio de arrastões no futuro.

Demos brindes, um sombreiro preto e outras quinquilharias para eles não nos matarem. Pode ser um prenúncio de corrupção no futuro.

No dia seguinte alguns homens entraram na nau sem falar com ninguém ou qualquer sinal de cortesia, e um deles ainda pôs os olhos no colar de ouro do capitão e num castiçal de prata. Pode ser um prenúncio de uma profissão aqui no futuro.

Dentro do barco eles viram o papagaio pardo do capitão, espécie comum naquele local. Pode ser um prenúncio de que já arranjamos o animal que será o mascote deste lugar.

O capitão ofereceu carneiro, galinha, pão e peixe cozido, confeitos, mel e figos, mas eles não quiserem comer quase nada. Trouxeram-lhes vinho, mas mal lhe puseram a boca, não gostaram e nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água numa moringa, mas não gostaram e nem beberam, e quase tudo jogaram no mar. Pode ser um prenúncio de que nesta terra vai vigorar assistencialismo, pois até recebendo de graça não dão valor.

No sábado ancoramos em outro lugar onde estavam uns duzentos homens nus, com arcos e flechas nas mãos, ao descermos eles saíram correndo pelos rios e matas e não pararam mais. Pode ser um prenúncio de que a polícia daqui vai ter dificuldade de pegar ladrões no futuro.

Alguns índios andavam com bicos de osso nos beiços, outros coloridos, metade de tintura preta e azulados, e no meio deles andavam três ou quatro moças gentis mostrando as suas vergonhas, pintadas na coxa e na nádega, e do joelho até o quadril. Pode ser um prenúncio de que a tatuagem vai rolar solta nessa terra.

No domingo de Pascoa pela manhã aconteceu uma missa e pregação no ilhéu, feita pelo padre frei Henrique e outros padres. Depois da missa muitos deles começaram a pular e dançar. Pode ser um prenúncio de que nesta terra terá muitas festas e quermesses profanas depois das missas.

No ilhéu aconteceu uma missa, e as ondas do mar invadiam a praia, deixando descoberto alguns mariscos que depois comemos. Pode ser um prenúncio de que não devemos construir casa muito próximo das praias, pois a água poderá invadir.

Ao chegarmos não vimos nenhuma casa, mas há uma légua e meia havia um povoado com nove ou dez casas de madeira sem nenhum repartimento e duas portas pequenas, onde moravam trinta ou quarenta pessoas. Pode ser um prenúncio de que os programas de habitação popular não vão dar certo.

Pela inocência deles, logo serão amansados e pacificados, pois ainda não são vítimas de nenhuma crença. A nossa vinda aqui não foi por acaso. Pode ser um prenúncio de que futuramente a população não queira estudar, e se transformar em massa de manobra.

Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Só comem inhame, que aqui tem muito, sementes e frutos, que as árvores lançam na terra. Pode ser um prenúncio de programas assistencialistas que poderão deixar os adultos em casa só procriando.

Hoje, sexta-feira primeiro dia de maio, estamos vendo uns cento e cinquenta ou mais, todos em pé com as mãos levantadas, quando o padre frei Henrique lançou um cordão com a cruz ao pescoço. Peço a Vossa Alteza para aqui mandar um clérigo para os batizar logo, porque a inocência desta gente é maior que a de Adão. Pode ser um prenúncio de que o povão será cristão.

Partiremos pela manhã. Esta terra de ponta a ponta é muito rica, formosa e grande, e de tão abundante, o que plantar vai dar. Continuarei servindo Vossa Alteza neste cargo que recebi, ou outro qualquer ao vosso serviço.

Pode ser um prenúncio de que esta terra vai ser lotada de puxa-sacos e corruptos, saqueando as riquezas que serão descobertas.

De Porto Seguro, Brasil, 01/05/1500.

(Livro: As cartas que não escrevi – Editora Helvétia 2018 - lançado na Suíça e no Brasil) Email: boscodonordeste@uol.com.br