Paisagem Antes do Amanhecer
Num momento surgiu uma oportunidade de comunicação, foi um repente, fugaz, facilmente extinguível pela característica de fragilidade que toda ideia tem ao nascer, todavia felizmente pode ocorrer a manifestação da inspiração que, como sempre deveríamos saber, tem como principal função servir de alimento e proteção às ideias no seu primeiro instante de vida e num futuro certamente próximo ele teria o azo de discorrer como tudo se deu, mas a mensagem ainda não era clara nem em forma nem em conteúdo, antes havia a necessidade da identificação, bastava uma pequena referência, tinha a certeza, se é que ela já não estava presente e ele mesmo não se dera conta, de qualquer forma buscou ser inventivo, gostava e fazia uma parelha fecunda, realimentação positiva mesmo, com a inspiração e passou a examinar reminiscências diversas que verteram abundantemente, bem próprio da riqueza de relacionamento havida e ainda presente em seu coração, pensou, e pensou em mencionar uma longínqua calibração de sensores, ou os grãos de areia da grande praia, mas foram os ensinamentos dos povos da nação de Sabará que trouxeram à tona o seu querido amigo porcão, o rei de mata-burros, querido amigo – como queria falar com ele –, saudades, saudades, teria tantas coisas a contar que nem saberia por onde começar, seria um discurso ou texto matemático, somatória de fatos desconexos ou não, sem começo, meio e fim, sem parágrafos e pontuação, sem fim, mas tudo a seu tempo, por ora os sentidos clamavam por olhar ao seu redor, não no sentido físico pois tudo estava suficientemente memorizado e catalogado, perceber a visão da escuridão da madrugada, o barulho do silêncio, o tempo e as vibrações daquele local, aquelas coordenadas geográficas bem específicas, realizar que a mente não estava a rogo dos limites físicos impostos, ela sim era a expressão da liberdade e fazia exprimir, e o fazia exatamente agora quando sua mensagem é captada por outro intelecto irmão que seguramente compreende como ele próprio o que é ter a locomoção confinada a não mais que alguns passos, melhor não contar, tempo e espaço são melhores dimensões para o espírito, e o singular é que era dia de Natal, o dia mesmo ainda não amanhecera, o que na realidade não fazia a menor diferença no plano material, senão no esforço suave das lembranças adornadas com uma pincelada triste do seu lugar de origem e meio onde vivia de modo organizado, e de onde conectava-se com os entes queridos, e o marco mais importante dentro das circunstâncias é que havia já um ano e meio que estava a viver naquele espaço provisório, um ano e meio, e diariamente renovava sua lista mental em busca de aprendizado, busca de aspectos positivos, sempre os há, busca dos valores que realmente importam, busca da saúde física, saúde mental, contrastando todo o ambiente próximo, o meio em que se está a viver, com propósito claramente contrário, então não é sem um esforço compensador que se consegue ver que há muitos planos possíveis para uma nova existência, ah!, como ele gostaria de falar com seu querido amigo, poder dividir esse e outros pensamentos, poder usufruir de uma interlocução inteligente a dar e receber mais um auxílio nas diligências, requerimentos e procedimentos que toda a parafernália processual fica a exigir todo o tempo, muitas observações, infinitos comentários ele fez em todo o tipo de peças presentes nos autos e, numa primeira surpresa ao tomar estreito contato com este mundo, ficou estarrecido com a constatação de que persecutores oficiais omitem, distorcem e mentem para poder causar o dano proposto em flagrante desconexão com a busca da verdade, o que menos importa, e, numa segunda surpresa, verificar como a conformidade com o direito é subjetiva, a faculdade de julgar com equidade é solenemente ignorada em nome da finalidade de comprovar o que os prejulgamentos já definiram e vendidos foram como grife mas talvez as coisas devam ser feitas assim, não haja outro meio de realizá-las, de toda forma isso é uma iniquidade e haverá certamente num futuro uma fatura social a ser paga para admitirmos que a iniquidade seja indispensável, a assim ser que o sacrossanto combate que se perpetra neste instante com o ornato de um bonito discurso serve para justificar ações que não teriam amparo na interpretação usual feita até hoje das prescrições que determinavam os direitos e deveres dos cidadãos – se os defensores a violavam, que deveríamos esperar? – o que leva a uma clara manifestação de crime de hermenêutica, ele considerava, assim como estava convicto da inutilidade, da desnecessidade e da ilegalidade do decreto que sofrera e que o levara e o mantém até hoje no espaço provisório e, pelo tempo decorrido, as pessoas lá fora que não deixaram de viver seu cotidiano, inclusive familiares e amigos, acham que ele cá está para cumprir a paga imposta, merecidamente a servir de exemplo, quando na verdade ele ainda usa seu direito de questionar as provas – ou a falta – de pecados e continua custodiado de modo cautelar sob a inacreditável interpretação de que representa um risco à ordem pública, baseado em ilações ilusórias, de falsa aparência, verdadeira criação de um anseio mítico por um direito penal do futuro que protegeria os cidadãos de bem do que pode ou não vir a ocorrer, perpetuando uma medida completamente desproporcional, medida extrema e que não preenche os requisitos para ser legitimamente decretada, somente lastreada por uma nova arte de interpretar os sentidos das palavras, por isso o grande receio de tantos por uma definição mais precisa de abusos de autoridade, abusos que são a forma dos mesmos tantos conseguirem fazer o seu trabalho, enfim, voltando um pouco, a mais valia do sacrossanto combate não poderia ser motivo para condição que lhe foi infligida, necessário perseverar portanto, o desencanto é sempre bom companheiro para a inteligência, ela nunca tão imprescindível, pois ainda havia o contrato, que ele dava muita importância e queria muito debater, defrontava uma seríssima questão de forte possibilidade de perda material, perda total, e a convenção bilateral tinha como subproduto poder postular alguma reversão das decisões prévias, mas a mesa de negociação se lhe apresentava muito dura e desfavorável, com o processo a andar lentamente, nem sentia progresso, mesmo assim precisava aconselhamento, remoía tudo consigo, queria deixar claro que não havia de ser pérfido, cuidaria de antes desmascarar os falazes se lhe fosse dado a oportunidade, além disso achava que careceria de ajuda mesmo no futuro, assim o pacto não poderia ser desconsiderado, posta pois estava a importância da prosa atilada tão desejada mas, ora!, ora!, não seria só isso, nem principalmente, o que ele teria para contar, outros aspectos da vida se passam num tempo desses, como a saúde, sua saúde por exemplo, sentiu bem que bem melhorara, desintumescido e mais magro, mais esbelto estava, sem correspondência com a recorrente imagem veiculada nos noticiários, pudera que dezoito meses sem contato com o álcool e o tabaco hão-de exercer consequências benéficas e salutares e com isso também incentivou-se a alimentar-se da maneira mais saudável que fosse possível, sentia que estava num círculo virtuoso e que no próximo escaneamento clínico, quando possível, teria a confirmação de que todos os indicadores haviam de ter melhorado, se bem que de certo nem toda abstenção estava a se acostumar, não conseguia não sentir falta do calor humano que o sexo oposto proporciona, nesta altura da vida não seria isto que mudaria, ainda bem, e aditaria ainda que o cotidiano forçado com diversas outras pessoas, do seu grupo ou não, era fonte inesgotável de informações, reflexões, discussão de valores, um mergulho fundo nas águas turvas das contradições humanas, sem contar as diferentes e dinâmicas avaliações do momento nacional e mundial, muito peculiar, o mundo visto do mesmo ponto de vista físico, porém a paisagem tinha movimento, e iria querer falar da entrega às pequenas distrações que iam se tornando hábitos a suavizar a monotonia das longas horas, da leitura em que se embrenhou, comentar os livros que leu, a esta altura já mais de setenta, iria querer escutar os sentimentos do dia a dia das pessoas e relacionar que dentro do espaço provisório não era diferente de lá de fora, só observava que a amplitude entre cumes e vales era maior, discorrer sobre a temperatura ambiente e como preferia o frio, sobremaneira, pois para ele tinha recursos à disposição na forma de agasalhos e mantas mas para o calor não havia remédio, meios para vencer a dificuldade, botões para acionar equipamentos salvadores, dizer das pequenas proibições constantes, parecia haver uma orientação de que é proibido melhorar, a maior parte das iniciativas para tornar a estadia mais confortável entrava numa lista oculta de supostos privilégios, uma tradução da síndrome do pequeno poder ilusório e iria querer trocar ideias para combater o seu pessimismo ao refletir sobre a traição humana, agora quase guindada a virtude disfarçada na balela do arrependimento sob a novíssima prescrição e cuja interpretação de associar assepsia com o fundamentalismo divino do bem e o mal na base do tudo ou nada sem gradações, nada mais anti-humano, trata de justificar comportamentos duvidosos, então deu-se conta do tempo passar ao ouvir as primeiras vozes dos pássaros que viviam perto na vizinhança, estes nunca falhavam, e logo a claridade trataria de esvanecer a paisagem. Que saudades do amigo querido.