Amélia

Minha querida Amélia,

estou numa casa melhor agora. Aqui é bem perto do rio que corta as suas esquinas e bloqueia travessas. As vezes olho pra água que começa a escurecer e sei que ela já passou pelo teu cheiro, me sinto menos pior.

Digo assim porque, apesar de estar nessa casa, onde não há nada para reclamar, onde o emprego não falta a nenhum homem letrado, onde pode-se tomar um bonde e perambular pra leste e norte sem dificuldades, ainda sinto falta de algo.

Mesmo com as escadas da mais pura madeira, ainda me falta o cheiro da podridão e do rangido da casa antiga. As vezes me pego pela noite com saudade do desespero que meu sono lutava contra. Apesar de estar com todas as janelas fechadas com madeiras e a porta emperrada com um sofá, não consigo dormir da mesma maneira sem nenhuma interrupção. Não há gritos nas ruas que me despertem, nem drogas fáceis que queimem nos meus lábios. Acredito que mais do que falta do ópio, sinto falta das tristezas que vivera por aí. Tenho saudades até da água quente que me servira depois de vinte ou trinta minutos de caminhada ladeira a cima e ladeira a baixo. Das tuas crias sempre prenhas e do barulhão dos inquilinos de tua pensão.

Tenho tudo que quero, Amélia. Tenho amor quando quero, do jeito que quero, por pouco, quase nada. Até os mínimos detalhes, os desejos mais sublimes que poderiam passar despercebidos pela minha vida terrena, eu os consigo sem titubear. A água aqui é doce e límpida, fresca. Não é preciso chorar por migalhas, fazer escambos sem pé ou cabeça.

Sei que pelo interior, apesar de tudo de ruim, fui mal até demais, com tudo e todos. Não soube dar valor a quase nada, percebo agora, tarde demais.

Amélia, desculpe por tudo, por quando reclamei da água quente e suja, por quando torci o nariz à podridão e me irritei com o barulho das madeiras. Perdoe-me por ter subido e decido as ladeiras tão pouco. Por não ter dissimulado os barulhos dos teus inquilinos, por ter usado tanto ópio que não poderia sentir mais teu cheiro sem tracejar um caminho ao inferno, ver-te no inferno. Por ouvir teus gritos na madrugada e não conseguir desemperrar a porta, nem quebrar a punho o vidro das janelas.

Não sei o porquê de sentir saudade falta dos desastres, Amélia, mas acredito que um dia eu ainda possa salvar você.

Com culpa,

Lisandro

Helena Haze
Enviado por Helena Haze em 27/07/2019
Reeditado em 27/07/2019
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