Missiva a um amigo das terras gerais II
Meu bom e velho companheiro de amargura (talvez, secura seja um termo mais agradável, mas o amargor da alma nos caracteriza, por isso optei pelo primeiro termo). Hoje, responder-te-ei com a pouca lucidez que resta.
Neste dia que lhe escrevo, sinto-me como Raskólnikov, de Crime e Castigo: torpe; sorumbático e infectado por um mal que eu mesmo criei. Às vezes, oscilo entre esse ser e outro personagem literário, Jose K., que lhe dispensa apresentações; pois se sou culpado, qual minha culpa? Por que me acuso e não encontro um veredicto? Por que a morte atrai, quando a vida, mesmo que severina, explode na forma de um arrebol?
Como bem vês, meu intelecto encontra-se desconexo, confuso e embaralha as palavras como um jogador melindroso de baralho. Vou mal.
Pude notar na sua última mensagem que sofremos de problemas opostos: o meu, a falta; o teu, a presença. No entanto, ambos sofrem pela mulher “amada”. Digo-te: a presença é enfadonha; a ausência é cancerígena. Apesar do ótimo relacionamento que tive com S., algumas vezes me vi circunscrito por um laço que me apertava a garganta e impedia-me de ganhar fôlego para viver a vida; contudo, quando o que eu acreditava ser inércia me foi retirado, cai em um movimento que causa vertigem e medo. O laço, na verdade, era a vida. Medita, querido amigo.
Se sentes que teu nó torna insuportável, e a ti mesmo assim o faz, corta-o, rompi-lhe e como Alexandre mostra-te sábio. A dor, no entanto, é inegável, incomensurável e ininteligível. Nossos pecados não nos abandonam, os castigos os acompanham e Sisifo faz-se pequeno perto de nós. Ah, como vivo desesperado; as letras dos livros fogem; as músicas nada mais embalam; as antigas tardes deleitosas, tornaram-se uma mistura de álcool e fumo.
Muitos me dizem que com o rompimento do laço, meus pulmões começaram a receber mais oxigênio e, por desacostumado que fiquei, me machuca recebê-lo. Outros dizem que Cronos colocará um fim em tudo e outro início surgirá, nesta ladainha tão bem cantada sobre a circularidade das coisas, há algo que já cantamos também: Quando? Quando?
A vida que era vereda, transmutou-se em sertão espinhoso, acomodei-me à vereda e queima-me agora o sol implacável daquele. Estou cheio de bolhas. Talvez, eu seja um homem fraco – o que tanto tempo tentei negar –, mas acredito em ti, na sua força e no seu intelecto, saberás tomar a decisão correta. Eros é assim, o deus dos deuses, o indecifrável, o maligno e o bendito, regozijo e dor. Procure por Apolo e não pelo maldito enganador Cúpido.
Hoje, encontrei alguns escritos que S. me direcionou há tempos, que dor me possuiu, as lágrimas correram como uma cachoeira a tecer seu véu, verdadeiros panegíricos celebrando nosso amor. Li-os, revivi os momentos em que me eram entregues, chorei...
Entretanto, resolvi queimá-los, vê-los dissolverem-se ao vento, quiça o passado também assim procedesse e eu, finalmente, poderia respirar mais aliviado nessa atmosfera. A cada labareda que surgia no papel, era eu que queimava, tudo virando cinzas. Lembro-me do samba: “E eu que já fui uma brasa, /Se assoprarem posso acender de novo”. Será, meu caro amigo?
Para finalizar, enquanto o papel queimava e eu acompanhava a cena com atenção, a última palavra que consegui ver foi um “te” de um “te amo’ já queimado, hoje, te falam as cinzas, o amanhã a Deus pertence. Termino assim, sem pé, nem cabeça; sem eira, nem beira; que ao fundo toca um Bethoveen.