Carta

 

Destinatário: Papai

 

Endereço: Céu

 

        

                                   Papai

 

          São tantas as coisas que eu sempre quis lhe dizer que nem sei por onde começar...

          Bem, vamos começar pelo fim. Aquele dia que eu o levei para o hospital e ficamos esperando o enfermeiro que o levaria para o quarto, pois a burocracia mandava que você devesse entrar sentadinho em uma cadeira de rodas. E como você riu-se daquilo! Até hoje está bem claro na minha mente, você seguindo naquela cadeira guiada pelo enfermeiro, ao longo do imenso corredor com a carinha alegre, vermelhinha, todo virado para trás, olhando-me com um sorriso debochado e dando um thiau todo carinhoso com a mão!  Respirei fundo e voltei aos meus afazeres, certa de que havia cumprido o meu dever de filha.

          O que não podia imaginar naquele momento, é que dali a quatro horas, eu voltaria ao hospital para vê-lo, não sorridente, com os olhos brilhantes, mas sem vida, estirado  em um mármore frio, ainda com as mesmas roupas  que havia vestido antes.

          E ali, naquele momento, um filme passou pela minha mente das coisas boas que vivemos juntos e dos dissabores também.

          Lembrei-me de quando eu era bem pequenina e acordava na madrugada, quando você fechava o bar e vinha pra casa fazer aquela lingüiça deliciosa no álcool. Eu me sentava sobre a mesa, você pegava o violão, enquanto comíamos e você bebericava, a mamãe ficava muito brava, e você tocava e eu cantava...

          Foi com você que eu aprendi a cantar, a declamar aquelas trovinhas tão bonitas, sem contar os poeminhas de crianças, alguns inventados por nós dois...

          Pai, como você ficou feliz quando comecei a participar de programas infantis na Rádio Mantiqueira de Cruzeiro, lembra? Aos domingos você nos levava, eu e  Neuza, e brigava com minha irmã, porque ela não  queria cantar...

         Mas em mim, suas palavras faziam efeito. Tanto que acabei gostando do rádio e lhe dei uma grande felicidade quando me tornei locutora da Rádio Aparecida e lá, permaneci por mais de 30 anos.

          Sei que fui a menina dos seus olhos, por receber de você dotes artísticos que desenvolvi ao longo de minha vida. Mas sei também que fui o seu tormento por não tolerar o seu modo de vida, voltado para a bebida.

          Hoje, vejo que você não tinha culpa. Estava no sangue. Era uma doença, que  eu, mamãe e minhas irmãs não entendíamos...E com isso fomos severas por demais com você. Só hoje eu compreendo e peço-lhe que me perdoe e que ore por mim, para que eu entenda o seu neto, sua cópia fiel em tudo, principalmente no trato com a bebida.

         Papai cuida de mim, do seu neto. Cuida de nós!