Carta 5 - Feliz Aniversário
17/01/2015
Meu querido,
Essa é talvez a carta mais verdadeira que eu já escrevi, e a única coisa que poderia escrever agora. É a primeira vez em muitos anos que eu esqueço do teu aniversário. E faz muitos anos... Não sei por que, outro dia no carro eu lembrei disso falando com alguém, uma conversa alegre e sem sentido, e, de repente, tudo pareceu mudar completamente.
Eu fico pensando que estou à beira de uma confusão da qual não há volta, não é bem uma melancolia nem uma tristeza, não é uma vontade de chorar, mas uma vontade de gargalhar ouvindo Fantasie Impromptu no meio da insônia da madrugada. Você entenderia. Talvez Chopin só tenha escrito para os loucos e isso quer dizer que estou invariavelmente perdido. Ando pensando muito sobre suicídio. Parece muito fácil explicar o suicídio das pessoas. Claro, é fácil dizer que o Kurt se suicidou por causa da sua infância e talvez das suas dores de estômago, ou que a Virgínia, por seu estado mental e possivelmente loucura. Mas o que exatamente levou Kurt a segurar aquela arma naquele momento, o que realmente passou em sua cabeça, que tipo de pensamento ou emoção inexplicável definiu o segundo antes e o segundo exato de puxar o gatilho. De alguma forma, ele tinha tudo. Ou qual decisão complexa e triste não foi para Virgínia concluir que a única solução seria a morte, mesmo ela sendo a pessoa mais feliz que eu já conheci, que mistério divino ela descobriu antes de encher os bolsos do vestido com pedras e se entregar novamente a natureza selvagem da qual, de um ato divino e misterioso, ela também surgiu. Como deve ter sido doloroso e triste para ela abrir mão da felicidade.
As noites passam sobre mim, e quando amanhece as pessoas esperam que eu faça algo, mas eu não consigo, eu não posso. Eu não consigo decidir entre comer uma fatia de bolo e assistir algum filme qualquer ou abrir a porta e pegar um ônibus para passar a noite fora dançando na rua. É impossível escolher nesse momento, eu preciso fugir do banal porque ele é a única coisa profunda e absurda da vida. Porque existe muita coisa acontecendo entre essas duas coisas. Eu me entrego ao banal e depois volto atrás, eu me arrependo e me martirizo e depois quero esquecer e me destruir, então eu procuro o banal de novo. Ela me entende agora, ela me mostrou o que era isso quando eu estava prestes a escolher entre as pedras e as flores.
Mas o que eu poderia esperar? Culpar uma maldição, ou tentar aquelas simples explicações da ciência, como se fosse culpa da genética ou uma pré-disposição patológica herdada? Ou talvez seja apenas um vício de cometer os erros e os mesmos erros sempre? Poderia culpar os outros, as pessoas, a família, o governo. Ou talvez seja apenas uma falta de sorte, o destino, um fado, o purgatório. Talvez. Você não está mais aqui, e é um erro eu ainda te escrever, mas eu continuo. E ela sabia que não era nada disso.
Numa noite dessas, eu e ela andamos pela rua cantando uma música qualquer do Dylan só pra acordar os vizinhos que moravam abaixo do 3º andar, e ela olhou simplesmente para mim e disse “a gente escolheu ser infelizes, é isso”. Ela desceu de uma iluminação divina para o meio fio da calçada e quase tropeçou, foi simples assim. Ela chegou em casa, fez a janta para nós dois, aumentou o volume do som e mexeu um pouco no celular antes de dormir. Como se não fosse nada.
É claro que poderiam existir mais explicações, e provavelmente existem, mas eu me sentei no sofá e fumei um cigarro aliviado. Passei a noite em claro por opção pela primeira vez em meses. Eu pulo as músicas de amor da minha discografia do Dylan, apesar de que naquela noite eu estava cantando Don’t think twice, it’s alright como se fosse apenas uma música de muito tempo atrás.
Se eu pudesse te cantar um ‘adeus’ agora, eu cantaria, mas eu sempre prefiro um breve ‘tchau, até logo, talvez, quem sabe’. Agora seria o momento certo, mas eu espero, eu continuo esperando, não sei pelo quê. Você não vai voltar, e eu só posso ir para frente e ser forçado a engolir o banal, tentando reaprender toda ingenuidade das coisas simples, como a gente viveu elas um dia.
Eu não sei explicar em palavras, mas, olha, talvez agora eu entenda a Virgínia e o Kurt. Mas você vai ser sempre um mistério para mim, você não me deixou nenhuma carta ou uma palavra sequer. Mas, sinceramente, no fundo eu sei que é apenas uma desculpa minha, eu não quero te entender. Seria fácil demais. E ela espera que eu deite e durma do seu lado nessa noite.
Feliz Aniversário,
D.C.