DOS CONDENADOS À POESIA
Quanto aos poemas, percebo que o discurso está bem elaborado, mas faltam os recursos estilísticos ou figuras de linguagem. Percebes que as metáforas são rarefeitas nos teus versos?
Cada texto, como discurso, está bem urdido, compreensível, verdadeiro e intimista. O texto pode não conter um fato verídico subjacente, pode até ter nascido do nada, num lampejo desconexo, mas a fórmula textual apresentada tem de ser nitidamente veraz, vale dizer, munido da capacidade de convencer o leitor quanto ao mérito do tema...
Porém, peço que não esqueças: quando a Poesia descobre e bafeja o poeta, a voz dela são as figuras de linguagem, não somente a retórica sensível, o escrito dulçuroso, organizado e aparentemente sábio... A Poesia se protege com o uso das metáforas, porque Ela é mulher que não se entrega assim no mais, é fetiche... Poesia é a voz do Mistério...
Em mais de quarenta anos de Poética, especialmente nas oficinações textuais, pediam para que a definisse e eu respondia: Poesia é indefinível, porque a voz do espiritual é muito complexa: os signos, as palavras falecem ante a aproximação do Mistério, em sua fala amorosa, por vezes inaudível...
No entanto, de uns dez anos para cá, convivo com um conceitual de Poesia que tenho utilizado como elemento de discussão para focar o POEMA, que é a materialidade da Poesia, a sua porção tangível, porque nossa dama é intangível, somente gênero literário, e o fruto do Mistério – o impalpável que existe e nos intriga. Aliás, só este é capaz de fluir e produzir verdades que contenham a Poética, mesmo assim nunca a todo o tempo, pois linguagem poética é a materialização da exceção: ninguém fala todo tempo utilizando a Poesia. Assim nos diz o mestre Fernando Pessoa... Poesia é o resultado sensitivo do desenrolar do novelo dos dias, ou seja, a baba das vivências: o sumo do lido, tido e vivido.
Reduzo o conceitual referido ao simples exemplo: acolhe um pretenso poema (teu ou de terceiro) e o leias pela primeira vez, em voz alta, e, se no final da leitura tiveres entrado completamente no seu universo, com o seu conteúdo completamente revelado, compreendido – de cabo a rabo – não deixando nenhuma dúvida, podes ter a certeza de que o conteúdo lido pode ser tudo em matéria de linguagem, menos Poesia! Por natureza, a sua destinação não é a de se revelar imediatamente, daí a necessária codificação, e que não permite o total entendimento de pronto...
Há um véu misterioso que cobre a palavra poética. Ela é mulher fundamentalista: sabe que, para manter a dignidade e o mistério, não pode sacar o véu. Ela se adensa pela proposta de sugestão contida no poema. Se ela tirar a burca, vai-se a sua essência, e cai-se na prosa, que não tem esta especificidade: A Prosa DIZ, enquanto que a Poesia apenas SUGERE...
Assim posto, para que tenhas entrada no universo da Poesia e lá possas permanecer, examina o que acabo de te dizer e localiza em teus textos as METÁFORAS. E elas são de duas espécies: a de palavra e a de imagem. Não esquece: sem elas, não há como construir o POEMA.
Nossa amizade se aprofunda através da intimidade intelectiva, inspira-me, vês? Escrevo “ao correr da pena”, como quem entrega uma rosa guardada, quase murcha, no desejo de que o tempo tenha conseguido a palavra fácil, useira e vezeira dos cochichos confessionais, aqueles que só ocorrem entre amigos.
– Do livro O CAPITAL DAS HORAS, 2014.
http://www.recantodasletras.com.br/cartas/4683377