queria ser o teu sonho
“...em frente ao espelho da cómoda do teu quarto, sentada num banquinho forrado a tecido de cortinado vermelho, penteavas os teus cabelos, num ritual que funciona mesmo sem dares por isso... a escova passava ora uma, ora duas vezes, de cima para baixo e alisava os teus cabelos sedosos, cor de mel e de marfim... brilhavam no espelho e te revias momento a momento numa expectativa de mudança, o que não acontecia pois não podias ficar mais bela do que aquilo que já eras... a beleza em ti não residia nem morava... era!... a tua camisa de noite, acetinada bege, de rendas sobre o peito alvo de seios firmes e redondos, deixava transparecer a cor da tua pele suave e doce ao olhar sem ser preciso tocar... a tua cama de lençóis de prata, aguardava o teu corpo numa ânsia lasciva de quem à noite, só, te espera num desespero de intocabilidade... e tu, demoravas... da cómoda tiraste um frasquinho de perfuma e te ungiste com ele o que provocou um agradável respirar a todos os móveis que te rodeavam... e a tua cama, ansiava pela tua presença... e o teu corpo demorava a conceder-lhe esse desejo... levantaste-te de frente do espelho e te miraste novamente de corpo inteiro e gostaste da tua imagem alva e bela naquele quarto iluminado pela tua presença... olhaste de soslaio e sorriste... sentaste-te na beira da cama e esta suspirou docemente perante a antevisão de que breve te possuiria... tiraste os teus pezinhos leves de dentro dos chinelos de cetim vermelho, levantaste um pouco o lençol e te entregaste total e lentamente ao prazer de estender do teu corpo e da entrega final ao teu leito... a tua cama nem sequer se moveu... aquietou-se para não te perturbar, para que não te arrependesses daquilo que acabaras de fazer, com medo que te levantasses e ela te voltasse a perder... a tua cama inspirou baixinho a fragrância do cheiro da tua pele e deixou-se ficar aguardando o teu próximo movimento... deitada de bruços te deixaste finalmente ficar e tua cabeça leve pousada de mansinho na almofada, arfava lentamente o teu respirar de prazer por mais uma noite de descanso e de sonhos... teus olhos semicerrados viram a lâmpada acesa e teu braço se estendeu ao interruptor da mesinha de cabeceira para a desligar… os teus movimentos eram propositadamente lentos para que o tempo demorasse ainda mais do que aquele que já existia... e a tua cama sentia... na obscuridade do teu quarto, teus olhos semicerrados olharam o tecto e se fixaram na sua alva cor que permitia uma réstia de luz no meio da escuridão... olhaste a janela e pelas frinchas da persiana, divisaste a luz cinzenta duma lua crescente... avizinhava-se uma noite de lua cheia e teu corpo descansou por um momento... a tua cama então suspirou e te abraçou fortemente... em suas mãos te acabavas de entregar... e o sono chegou.... adormeceste... não sei mais o que se passou... a noite decorreu, teu corpo diversas vezes se moveu... a tua cama não se movia, com receio de te acordar… abraçava-te sempre para não te deixar fugir... sentia-te sua e possuía-te num sonho imenso de impossibilidade, de impotência, de raiva, por não te conseguir ter tendo-te ali... tua mente adormecida, movia-se e sabia-se que sonhavas... a tua cama te tinha ali, indefesa, sozinha... sonhavas e eu aqui, nada mais te pedia... nada mais desejava... queria apenas ser o teu sonho...”
Joaquim Nogueira