ouvindo a noite
“...sentado nesta cadeira de frente para o meu computador, numa mesa de madeira, branca de sua cor, eu teclo nas letras paradas ao redor dos meus dedos... preparo um texto, sem contexto, com uma textura qualquer, talvez de amargura... não me preocupa a forma, nem as palavras que me vão deslizar pelos dedos e destes para o écran que, de vez em quando, olho prevenindo um possível erro de escrita... não me preocupa o tema, mesmo que sem lema não se torna um dilema neste plural sistema de escrever prosa ou poema... trata-se de fazer deslizar apenas o teclado pelos meus dedos e deixar sair as palavras da minha mente numa constante busca da semente do significado para aquilo que estou a fazer neste momento... e que faço eu, nesta hora, aqui, sozinho e agora, batendo lento ou apressado nas teclas do meu teclado... olho em frente e vejo um relógio que marca as horas lentas que passam por mim e que marcam o tempo de viver a sorrir e a amar... tudo e todos, sem olhar a quem... somente por amar... e que espero eu obter desse amargor doce da alma que sofrendo não chora, pelo contrário, vive e implora... e que espero eu senão encontrar o caminho mais leve que me percorra o corpo como quente neve branca como o luar que lá fora, no céu cinzento, teima em espreitar numa noite fria de chuva que se aproxima do meu solitário estar... não percorro os corredores do dia que passou nem choro as lágrimas que retive dos acontecimentos que por mim passaram como uma brisa leve pousando no lugar onde estou e me sinto pairar dentro do meu próprio eu... procuro o sentido da vida que não encontro, numa procura constante de mim mesmo, na luta insana da loucura que afasto de mim nem que seja por um instante... e esse instante está chegando na forma da noite que se aproxima, daquele estado de espírito que me anima, pois a solidão resta a meu lado sem um mudo som ou qualquer grito abafado... e aqui fico, esperando a noite chegar para nela me agachar e aninhar... povoar nela os meus sonhos de aqui me sentir e de aqui gostar de estar, neste lado do meu mundo, sozinho, de dia ou de noite, a mim próprio mentindo em constante delírio duma busca que ufana luta me provoca na mente que, pensando, não me escuta... e não me oiço a pensar, nem quero sequer isso imaginar… oiço apenas a noite chegar e a sua escuridão me abraçar, sem me possuir nem me ter, apenas me rodeando de um leve prazer por ouvir os seus sons sobre mim verter... e vertem-se esses sons em pancadas surdas de palavras mudas, livres e desnudas de sentido ou de intenção... a noite traz paz ao meu coração... ouvindo-a, fico sossegado e dou a mim próprio a minha própria mão... segurando-me para não a possuir... para ficar aqui e não ir... senti-la apenas num, pequeno que seja, luxuriante som... ouvindo a noite, parto para o êxtase do meu ser, não pretendendo ver, apenas ouvi-la... dentro de mim, a bater...”
Joaquim Nogueira