A esmola - Carta 023

Carta 023

Assunto: A esmola

Com a esmola se aplaina o caminho para o céu (São Nilo, † 1005)

Precisando elaborar um trabalho pastoral sobre esmola, uma

leitora do interi-or de Santa Catarina pede subsídios sobre o

assunto.

Querida amiga,

Esmola, informam os dicionários, é uma pequena quantia de dinheiro dada a um pedinte por caridade. É considerada por várias religiões um ato caridoso feita aos necessitados. Pode significar também concessão, graça ou favor. No judaísmo antigo, esmolas eram dadas para beneficiar os pobres. No budismo, esmolas são dadas pelos leigos para monges de ambos os sexos para conseguir méritos e bênçãos e assegurar a continuidade monástica.

O fato marcante de nossa época é que o pragmatismo da sociedade pós-moderna acabou de vez com a solidariedade entre as pessoas. O desprendimento das coisas materiais, a visão mais sensível da alteridade bem como a atenção aos problemas sociais são coisas que não se enxerga mais. Hoje tudo mudou. Nin-guém mais ajuda ninguém, mas todos só pensam no seu bem-estar, conforto e segurança. As pessoas se isolam entre cercas, grades e cães ferozes, se entopem de “abobrinhas” da tevê e com isso se convertem em estátuas de buda: saciados, risonhos e com visão apenas em seu umbigo. Todos querem “levar vantagem em tudo”. Para as igrejas cristãs, com base no judaísmo, é um dos três atos de caridade, igualando-se à fé e àoração Também é considerada como um ato de penitência, a ser praticado especialmente em alguns tempos litúrgicos, como quaresma e advento.. É um testemunho de caridade fraterna; é também uma prática de justiça que agrada a Deus. São Roberto Belarmino († 1621), um Doutor da Igreja cita seis vantagens espirituais a partir da esmola:

1. É uma satisfação por pecados cometidos;

2. Acumula méritos para a vida eterna;

3. Traz o perdão dos pecados;

4. Aumenta a confiança em Deus;

5. Inspira os pobres a rezarem por seus benfeitores;

6. Demonstra disposição para receber a graça da justificação.

Mesmo assim, muitos julgam que dar esmolas pode induzir à preguiça e à exploração de menores, especialmente quando dadas livremente nas ruas. A es-mola ou a caridade precisam ser conscientes e discernidas. Algumas senhoras, em uma cidade que morei, fizeram uma festa beneficente e depois de deduzirem as “despesas” mandaram um cheque para a periferia. Isto é caridade? O rico em-presário mandou – esta eu assisti – entregar, pelo motorista, uma “cesta básica” a uma família em dificuldade. Isto é caridade? Caridade é ter misericórdia. É sentar junto, é escutar e participar ao lado do outro. A decomposição da palavra miseri-córdia passa por miser (miserável) + corde (coração) e nos aponta para uma atitu-de de quem sente no coração a necessidade do pobre que, qual Jesus de Nazaré está carente de atenções, faminto, desempregado, doente ou excluído, das rodas sociais e das Igrejas, como diz a música libertária. É preciso enxergar Jesus nes-sas circunstâncias, com vistas que a esmola não se limite a algumas moedas.

Eu tive fome e vocês me deram de comer...

A caridade cristã deve ir além da ajuda material. Às vezes damos coisas fora do espírito da caridade, apenas para nos livrarmos de algumas obras. A caridade faz visível e, eu diria, quase tangível, por um lado, a misericórdia infinita de Deus para cada ser humano, e, por outro, nossa fé no Ressuscitado. Esta caridade con-siste em harmonizar nosso olhar com o olhar de Cristo, nosso coração com seu coração. Desta maneira, o apoio amoroso, oferecido aos demais, traduz-se em par-ticipação e num compartilhar consciente de suas esperanças e seus sofrimentos. O ensino social da Igreja a partir das Escrituras é muito interessante. As obras de misericórdia são as ações caritativas pelas quais socorremos o próximo em suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar são obras de misericórdia espiritual, como também perdoar e suportar com paciência. A misericórdia corporal consiste, sobretudo em dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar moradia aos desabrigados, vestir os maltrapi-lhos, visitar os doentes e prisioneiros, sepultar os mortos. Dentre esses gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da cari-dade fraterna. E também uma prática de justiça que agrada a Deus.

Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aquele que não tem,

quem tiver o que comer, faça o mesmo (Lc 3,11).

Dá o que tens em esmola, e tudo ficará puro para ti (Lc 11,41).

Os pobres gostam da esmola dos jovens porque não os humilha

e porque os jovens, que precisam de todos, assemelham-se a

eles... A esmola de um homem é um ato de caridade: mas a de

um menino é, ao mesmo tempo, uma caridade e um carinho

(Edmundo de Amicis)

Quando, pois, dás a esmola, não faças tocar a trombeta diante

de ti (Vulgata)

Ao procurar promover a dignidade humana, a Igreja mostra um amor prefe-rencial pelos pobres e marginalizados, porque o Senhor identificou-se de forma especial com eles (cf. Mt 25, 40). Este amor não exclui ninguém; simplesmente destaca uma prioridade de serviço, que goza do testemunho favorável de toda a tradição da Igreja. Este amor preferencial pelos pobres, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor.

O sensum charitas (sentido da caridade) da Igreja pelos pobres acha-se ad-miravelmente inscrito no Magnificat de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem da Nazaré, com exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que “derruba os poderosos e exalta os humildes (...) enche de bens os famintos e des-pede os ricos de mãos vazias (...) dispersa os soberbos (...) e conserva a sua mise-ricórdia para aqueles que o temem” (cf. Lc 4, 18). Maria está profundamente (cf. RM 37) impregnada do espírito dos “pobres de Javé” que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação, pondo nele toda a sua confiança (cf. 25, 31). O apóstolo Tiago, o “Amós do Novo Testamento” deixa isto bem claro:

Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do alimento

cotidiano e al-gum de vós lhes disser: ide em paz, aquecei-vos e

saciai-vos, sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que

lhes aproveitará? (Tg 2, 15s).

Hoje, ninguém pode imaginar que, em continentes inteiros, são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome, muitas as crianças sub-alimentadas, a ponto de morrer uma grande parte delas em tenra idade e o cres-cimento físico e o desenvolvimento mental de muitas outras correrem perigo. E todos sabem que em regiões inteiras estão, por este mesmo motivo, condenadas ao mais triste desânimo. (PP 45).

Claro que a esmola é uma atitude emergencial! Dou uma ajuda para alguém comprar um pão, apanhar um ônibus ou adquirir um remédio. É socorro momentâneo. Em muitas ocasiões, a esmola é o recurso que se torna disponível para minorarmos uma carência. Não devemos achar que fazemos tudo pelo próximo dando-lhe apenas nossas migalhas. A esmola é um passo inicial para tirar alguém do sufoco, mas deve ser sequenciada de uma ati-tude mais programática e efetiva, para, a partir daí se tornar caridade. A esmola é o primeiro passo para a caridade. Não é suficiente, mas é um início.

As campanhas do tipo “Não dê esmolas” servem como um salvo-conduto pa-ra quem deseja demitir-se das obrigações humanas, cristãs e sociais. Há quem pense e até diga que “Eu não dou esmola para não fomentar a malandragem, mas tem instituições trabalhando por ‘essa gente’, e até acho que a miséria acabou”. Se-rá que acabou? Que “instituições” são essas? São confiáveis? A coleta que Paulo organiza (cf. At 24,17) entre os cristãos de origem pagã, em favor da comunidade de Jerusalém, é louvada como um vigoroso ato de caridade cristã. Ela representa um gesto de reconhecimento aos que foram os primeiros a testemunhar o evange-lho e a fé cristã. Ela representa um ato de ação de graças a Deus, autor de todos os bens e da obra maravilhosa da evangelização (cf. 2Cor 9,12-15). O centurião Cornélio (cf. At 10,4) deve sua conversão às suas orações e às suas esmolas.

Da mesma forma, não basta praticar uma caridade hipócrita, como se vê por aí, tipo interesseira, para obter favores, resolver dificuldades circunstanciais ou apenas para “limpar o carma”. É necessário que os atos de caridade sejam re-vestidos dos mais benevolentes princípios, os quais Paulo nos expõe em Coríntios 13. A esmola e a caridade são juízos afins, unívocos e convergentes que se inter-penetram na busca da fartura do Reino, que primeiro é espiritual, e depois se transforma em bênçãos materiais em favor do pobre, do oprimido e daquele que tem fome e padece de alguma carência.

Em São Vicente de Paulo († 1660) um dos maiores mestres da caridade e desvelo para com os necessitados, encontramos algumas sentenças capazes de orientar nossa vida espiritual no sentido do amor irrestrito aos pobres:

 O filho de Deus se fez homem não só para que nós nos

salvemos, mas tam-bém para que com ele sejamos

salvadores...

 Ajudando aos pobres praticamos a misericórdia bem acima da

simples justiça

 Os pobres são os nossos intercessores diante de Deus

 Somos culpados dos sofrimentos dos pobres se não fazemos

tudo o que está em nossas mãos.

 É entre eles, - entre os pobres – onde se conserva a

verdadeira religião, a verdadeira fé.

 Não pode haver caridade se não vai acompanhada de obras

de justiça.

A maior caridade já nos foi praticada. O Pai enviou seu próprio Filho, para que nós não somente fossemos resgatados das maldições da lei pela doação de sua vida, mas também para que, por Jesus o Messias, pudéssemos ser chamados de filhos de Deus, como está escrito:

Vejam que prova de amor o Pai nos deu:

sermos chamados filhos de Deus! (1Jo 3,1).

Fique com Deus!

Este texto foi tirado da aula inaugural proferida pelo autor em um Curso de Teologia Po-pular na Região Metropolitana de Porto Alegre, em março de 2010. O autor é Filósofo, Biblista em especialização em Exegese e Doutor em Teologia Moral. É escritor, autor de mais de 100 obras publicadas no Brasil e Exterior, entre elas “As obras da fé”, Ed. Ave-Maria, 1996. Pregador de retiros de espiritualidade e assessor de cursos e workshops de teologia, ética social e família.

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