noites
"...dou por mim, às vezes, a lamentar a minha situação numa espécie de resignada forma de aceitar o que tenho de enfrentar; outras vezes, quase entro em desespero por me sentir incapaz de resolver o problema; ainda noutras ocasiões, sorrio e enfrento... existem lágrimas por vezes porque apenas o amor me traz o sorriso... então, há sempre alguém que me segreda que há sempre outrém que está em piores circunstâncias... eu sei que isso não me alegra mas faz diminuir a tensão... então, recordo aqueles anos em que andei a acompanhar aqueles grupos de assistência aos sem-abrigo... recordo e sinto o frio que eles sentiam... recordo e vejo o sorriso deles ao receber a sopa quente, o pão, o leite, o cobertor e tantas e tantas outras coisas que lhes dávamos entre a meia noite e as 3 das madrugada aos fins de semana... recordo e vejo-os deitados nos vãos de escada, debaixo das arcadas, embrulhados em caixas de cartão, com a cara tapada para que o bafo da respiração os ajudasse a aquecer... recordo e vejo-os sós, de olhos brilhando nos meus olhos, e eu apenas estendia a mão para entregar o que podia entregar... a raiva instalava-se dentro de mim por não poder gritar ao mundo aquele sofrimento... a dor deles passava para mim por eu não poder fazer mais nada... ali ou aqui bem perto no meu Porto, nas ruas, nas praças, nos recantos, nos jardins... na verdade, o meu problema actual não é nada se comparado com aquele sofrimento... dei um pouco de mim naqueles tempos, naquelas noites em que descobri o meu Porto que desconhecia... amei a dor tentando minimizar a dor deles... naquelas noites aprendi que também era possível amar, sofrendo... naquelas noites aprendi o que não sabia ser possível aprender... hoje, num dia frio e chuvoso, lembrei-me deles e aprendi que afinal o meu problema é de somenos importância..."
Joaquim Nogueira