DELÍRIO
Querida Irmã!
Às vezes o tempo escapa sem que eu perceba, perco toda noção de sua passagem. As horas passam e tudo permanece como está. A Terra é uma grande bola que gira, gira, gira e sempre passa pelo mesmo lugar, mas no curso de cada giro, já me disseram, há sempre uma grande surpresa. Onde estão elas? Não consigo ver! Olho-me no espelho do destino e não consigo entender. Onde há um erro? Outras vezes fico em silêncio e nada acontece. Por mais que tente congelar, os sonhas acabam sendo um pesadelo. O tempo não retrocede, não há conserto para o que aconteceu. A vida passa veloz, mas eu fico aqui, estático, preso nas circunstâncias que eu mesmo criei, mas parece que foram engendradas no inferno. Agora eu acho que devo pensar no que devo sentir e controlar os sentimentos, isso ajuda a evitar o sofrimento. O endurecimento do espírito é o preço que estou pagando por ter priorizado o domínio da razão nas escolhas que faço. Mas isso é um caminho repleto de armadilhas sutis. Agir por responsabilidade nem sempre é a melhor opção, pois as conseqüências de uma ação responsável podem desgraçar uma vida. Eu não tenho certeza se estou totalmente certo ou realmente perto do que sou, mas vou tentar viver. Talvez na hora certa saberei o que fazer o no que acreditar. Por hora só tenho uma certeza: “a única coisa permanente neste mundo é a mudança”. O que vou fazer não sei, só sei que o tempo não volta. Então amanhã não terei nenhuma chance de consertar os erros de hoje, pois o que passou, passou e não vai mais voltar. Não quero pensar no que vai acontecer se um dia eu descobrir o que sou. Mas seja lá o que eu seja, sou acima de tudo DEVIR, fluxo contínuo do que não é. Eu sei que sou o que não sou, mas não sei se saberei ser o que devo ser. Isso parece delírio? E é mesmo, mas cuidado, nem tudo que parece é. Mas é exatamente a aparência que nos ilude. E o ponto crítico de tudo isso é que nós precisamos da ilusão. Não suportaríamos a vida sem o colorido da fantasia. Quanto maior o grau de realidade, mas insuportável é viver. E nós, humanos, vivemos assim mesmo, mais por medo e covardia do que pelo prazer da vida pela vida. É mais prazeroso o autoconvencimento de que a ilusão é transcendente do cair exânime ante a ditadura da objetividade. É a fuga na ilusão que supera a dicotomia viver/morrer sem saber por que ou para que. São poucos os “privilegiados” que conseguem, por meio da meditação, vislumbrar o interior do seu próprio ser, ou seja, o seu inconsciente. Esse depósito das nossas pulsões primitivas, animalescas, selvageria contida pela pressão social da moralidade é que governa nossas ações, mas isso de maneira camuflada. Simplesmente escondemos um demônio dentro de nós, pois a liberdade dele seria a nossa loucura. Não fique assustada com o que vou dizer. Eu me deparei frente a frente com esse demônio. Por apenas dois segundos contemplei o seu rosto, e era assustador, ele sussurrava algumas palavras, mas não fiz questão alguma de ouvir. Ele não desistiu, atacou-me nas fraquezas, invadiu os meus sonhos e os transformou em pesadelo. Não posso contar com nada, nem com ninguém, estou sozinho nessa luta. Não conto sequer com o anódino da religião. Deus e o Diabo fizeram uma aposta cuja meta final é ver quem ferra mais os humanos. E para que não percebamos essa aposta insana, eles compactuaram em nos conceder a ilusão do livre-arbítrio. Mas eu, por meio de um delírio, consegui romper o véu do invisível. Você ficaria atônita se soubesse como eu realizei essa proeza. Isso aconteceu de uma maneira estapafúrdia, mas é um segredo que não posso revelar. Não devo trair o demônio que me ilude. Acreditar nas suas promessas é o refúgio da minha insanidade. Esse é um sacrifício que me traz paz, embora entorpeça a clareza do meu entendimento. Existe um refúgio melhor do que o ensimesmamento? Quem pode ajudar o desgraçado que lascou a própria vida? Se ele foi vomitado pela natureza, rejeitado por deus e pelo diabo, o que lhe resta como saída? Mas é exatamente ai que está a sua maior conquista. Ele sabe que está sozinho no mundo, que não pode contar com nada nem com ninguém além de si mesmo. O problema é que esse SI MESMO é um turbilhão confuso de pensamentos que se chocam, sublevando-se e girando loucamente no ar. Diga-me, o que devemos fazer para não enlouquecer? Ou então o que um louco deve fazer para curar sua loucura? A resistência à cura não é metafórica para quem está torturado pelo furor implacável da realidade. Não sei ao menos onde me esconder, pois em todo lugar que vou não consigo me livrar de mim mesmo. Não fiz acordo com o destino nem pacto com o tempo. A qualquer momento um ou outro pode me surpreender. E quando isso finalmente acontecer, espero que estejamos juntos.
teu irmão!