Uma carta ao meu pai - 2010

UMA CARTA AO MEU PAI – 2010

Newton Schner Jr.

Pai,

Eu e minha desorganização. Mais de um ano sem escrever-lhe, por mais que eu me programasse. Cartas mentalmente redigidas, sem que fossem enviadas. Uma penalidade minha. Sim, eu sei.

É outubro. Es ist Oktober, der Monat ihres Geburtstages, como aponta uma das faixas do trabalho musical que lhe destinei, lançado no primeiro dia de setembro.

É outubro, mês das crianças. Mês para renascer, tal como hoje o senhor renasce em nossa memória.

Pensar a seu respeito e em todo aquele nosso convívio é como uma leitura pesada, um tratado filosófico cuja compreensão se dá em silêncio, longe dos papéis, regado a um esforço contínuo, de anos e anos. Quem sabe mesmo eu chegue ao final da jornada sem respostas sobre escolhas que foram puramente suas.

Há vezes em que noto o retrato paterno, posto no principal cômodo da nova casa, e busco ler o seu pensamento: “Como o senhor me vê? Em que me tornei diante dos seus olhos?”, é o que me pergunto.

Cresce sua neta. Tornara-se avô, meu pai! Cresce, tendo sido trazida ao mundo pela união com aquela que pôde vê-lo nos dias que antecederam sua partida. Cresce, ainda sem reconhecer a grandeza de quem tomou outro destino, pouco mais de um ano antes do seu nascimento.

Como poucos, o senhor soube conquistar o coração das pessoas. E como é bom encontrar aqueles que falam a seu respeito, sem mesmo que eu os procure, de modo que se faz confirmar o que outrora eu havia dito apenas como uma simples ironia: eu acabo por conhecê-lo mais através das fontes orais que ao recordar o nosso próprio convívio.

Figuras como a sua parecem surgir apenas de tempos em tempos.

Como torcem seus pacientes pela vinda de um novo médico, um médico humano e liberto das máfias, distante das aspirações que emanam do cifrão que fora posto propositadamente em meio à serpente de Hipócrates.

Infelizmente, eu o perdi quando começava a questionar o mundo. Queria, por exemplo, saber agora o seu parecer frente àquele surto incompreensível, aquela pandemia que apenas pôde gerar medo nos homens comuns e lucro à indústria farmacêutica. Que destino a humanidade tem tomado! Relembro, diante de tudo, quando, a brincar, o senhor dizia: "Quanto mais eu conheço a humanidade, mais amo aos porcos". Porcos, os mesmos animais amaldiçoados nos escritos sagrados daqueles a quem o senhor se referia como "destruidores do mundo".

Somente com os anos, foi possível compreender e ser grato ao seu silêncio. Fora, talvez, uma das mais sábias manifestações suas, frente àquelas minhas precipitações artísticas. Certa vez, ouvi Borges dizer que apesar do aparente desprezo, posteriormente descobriu que seu pai havia feito anotações em praticamente todas as páginas dos escritos que seu filho havia cometido. Talvez como com Borges e seu pai, assim sucedeu conosco: o senhor me trouxe a possibilidade para que eu cometesse os meus próprios erros.

Às vezes a vida nos reserva tantos enigmas! Sou tomado por outro olhar, quando penso naquela sua busca espiritual um tanto quanto eclética. Há momentos em que necessitamos de respostas.

Pai, já não mais me encontro naquele antigo lar, palco último de sua glória e queda. Aceitei com naturalidade tê-lo deixado, após anos de resistência. Mas, se isto o conforta, eu lhe digo: apesar de marcantes, suas lembranças não se limitam àquelas paredes e cômodos - acima de tudo, o senhor vive em nós.

Levei ainda tempos, admito, depois de sua partida, para compreender o que se passava comigo e com tudo ao meu redor. Com sua perda, pude, como nunca, abrir os olhos e refletir sobre o quanto é necessário lutar para que uma família não se disperse por questões mínimas.

Ainda tomo seu exemplo de vida como a sua maior herança que me fora deixada.

Era comum vê-lo ler ao tempo todo. Das manhãs em que eu corria à porta do seu consultório, às madrugadas de insônia. Sempre e sempre. Lembro-me de tê-lo visto empolgado, a responder provas de atualidade médica: "Errei poucas questões!". Nunca cessava os estudos.

Do rádio, com fios improvisados postos à tomada, conseguia achar uma estação onde soava apenas a música clássica instrumental, uma linguagem mais poética que a própria poesia, que transpassa os horizontes comuns, que escapa à análise e se agita em profundidades inacessíveis, em pressentimentos infinitos, como observava Liszt.

A propósito da música, sigo ainda a ouvir uma cópia daquela velha fita promocional, do tempo em que se buscava educar ao médico, fornecendo-lhe a obra dos gênios que elevavam o espírito. Era aquela a nossa fita particular, ouvida enquanto descíamos pela estrada em direção às praias paranaenses e mais especificamente a Matinhos, a qual o senhor definia como a "capital do mundo". Bela e grandiosa fita, que reúne de Chopin a Bach, do piano à voz humana.

Também eu me dei aos livros. Tardiamente, confesso. Mas de modo que hoje, poupo as economias em vista de uma biblioteca particular que cresce timidamente, preenchendo duas fileiras de uma estante.

De Thoreau, adquiri, junto de "O rebelde de Concord", um pequeno livro de nome "Walking", onde o sábio filósofo americano fala sobre a importância de se caminhar. Junto dele, "Escritos selecionados sobre natureza e liberdade", bem como o clássico "Walden; or the life in the woods".

Em uma visita a certo sebo de Curitiba, quando deveria presenciar o lançamento do terceiro livro do querido amigo Norberto Toedter, adquiri um Goethe em alemão, em troca dos meus próprios trabalhos de piano! "Natur, Gott und Religion", que ao lado de "Werther" e "Trilogia da paixão", passam a compor a pequena coleção do mestre alemão. Falta-me ainda o “Fausto” e "Escritos sobre arte", do qual fiz anotações enquanto o acompanhava no hospital.

Mostrei ao amigo escritor, inclusive, aquela velha reportagem sua sobre a candidatura à Presidência, onde se dizia que pelo fato do seu partido ser anarquista, automaticamente todos os votos brancos seriam destinados à sua pessoa.

Seu "Freud: pro y contra", do Editorial Americalee de Buenos Aires, bem como a lembranças das suas críticas destinadas a Freud, levaram-me de encontro ao precioso "Freud desmascarado", de Emil Ludwig: certamente o senhor iria adorar este estudo.

Tenho, inclusive, adquirido outros livros interessantes, em visitas aos mais diversos sebos daqui e de acolá. Com que felicidade, em uma estante despercebida, o amigo Daniel me alcançou o exemplar de "Wagner: el hombre y el artista", de Ernst Newman. Dou importância até mesmo a livros escritos em idiomas que não domino, como é o caso de "Beethoven", de Wagner, e "Drakkars sur l'Amazone", ambos em francês.

No mesmo dia em que adquiria alguns dos livros descritos acima, reencontrei a amiga Ângela, com a qual deveria apanhar fotos suas. Falamos a seu respeito e sobre os rumos que eu havia tomado em minha vida. Mostrei-lhe a matéria em que eu, com uma grande surpresa, era posto à capa de um jornal local, retratado como um exemplo de autodidata, como alguém cuja música flui naturalmente. "Ah, seu pai!", ela dizia, "Ele sempre mora em meu coração. Ao lado do retrato de minha mãe, está a sua foto”. E ao fim, em suas entrelinhas deu a entender como se o senhor, por agora, estivesse orgulhoso de mim.

Quando outros notam sua biblioteca, aliás, a observação mais comum é a de que para alguém que tanto entendia de Medicina, seus livros nesta área eram mínimos. O volume de outros assuntos parece sempre superar as obras de conteúdos técnicos. Aprendeu mais com a prática que com a teoria; mais junto de seu consultório que em meio ao universo das palavras escritas.

Não sei como será recebida tal notícia, mas está programado para o começo do ano próximo a primeira exposição dos seus quadros, que deverá ocorrer na Câmara dos Vereadores de nossa cidade. Fora iniciativa dos amigos da Associação Germânica dos Campos Gerais. Quem sabe em anos, na medida em que eu o descubra e siga lutando por sua memória, pai querido, eu terei como fazer de si um gênio póstumo, no sentido de torná-lo reconhecido por aqueles que não o conheceram em vida.

Ao realizar minhas duas primeiras apresentações de piano, ficava a imaginá-lo junto de nossa mãe e da pequena irmã. Com que reação o senhor receberia aquelas canções? Talvez como a persistência e o prolongamento da rebeldia de alguém que não aceitou ler suas "músicas de bolinha" na infância?

Olho para o passado e entendo sua inquietude, a inquietude comum a todo espírito que não está predisposto à servidão. Por caminhos diferentes, sim, mas algo é certo: estamos de braços dados contra todo um sistema maquiavélico.

Nossa mãe pensa em si. Em grande parte dos dias com carinho; em alguns poucos outros, com tristeza por não mais tê-lo junto de nós. Dela, tenho procurado estar próximo. Levei tempos para perceber a preciosidade que existe em torno da família. Creio ter melhorado ao longo destes anos, podendo trazer-lhe mais tranqüilidade. Entendo o significado grandioso da presença, do abraço e do diálogo. Entendo hoje, à custa de certo sacrifício, que à parte de uma ou outra precipitação, uma mãe nunca fala por mal; entendo que por vezes os simples conselhos de família são ignorados, fazendo-nos encarar a natureza da vida em suas mais variadas formas.

Aquela que outrora era o seu pequeno orgulho, agora me acompanha ao piano. Segue como bailarina. Segue a vontade e os passos do pai espiritual.

Ainda encontro respostas para o lugar do seu nascimento e sobre até que ponto Pitanga e mais propriamente o Caminho do Peabiru, junto dos índios e da erva-mate, não estariam assumindo um papel dos deuses nesta quiromancia do mundo: assim como ocorre com os pontos da cura chinesa, que conecta a palma da mão a diferentes partes do corpo humano, o mesmo processo se dá com seres específicos que surgem de pontos estratégicos na terra, como foi o seu caso.

Tardiamente compreendi a sua atração pela Índia, este berço a quem sempre nós teremos de recorrer em questão de ensinamentos. O volume de Schweitzer encontrado em sua biblioteca, bem como todas aquelas séries, foi de grande valor, assim como o "Raja Yoga", de Yogi Ramacharaka, da yoga proposta pelo Bhagavad Gita.

Quisera o destino que eu não seguisse a mesma profissão que a sua, mas, de algum modo, aquela pequena semente depositada em um dos vários caminhos que o senhor trilhou, gerou uma árvore em forma de sinfonia.

Com que sorte tenho aprendido junto aos autores que me foram indicados durante nossa convivência! Jung, de quem me falava ao tratar dos sonhos, vem sendo melhor entendido. Também para a felicidade minha, pude encontrar três obras de Hermann Hesse entre suas estantes, e uma edição em espanhol de um fantástico trabalho de Schopenhauer, bem como as edições em capa dura de Sêneca e Haeckel. O exemplar de 1841 de "Máximas, pensamentos e reflexões" do grande Marquês de Maricá, provavelmente o livro mais raro que o senhor adquiriu, uma vez ter sido impresso e distribuído pelo próprio autor, foi lido e relido.

Aos poucos, vai se confirmando o que Shakespeare dizia: "Somos mais parecidos com os nossos pais do que possamos imaginar". A velha idéia do arquétipo, de uma corrente que nos une. Através do sangue, memórias ancestrais.

Com que surpresa, por intervenção do sempre amigo Paulo, tomei conhecimento de uma carta que, ao que tudo indica, era sua. Fora psicografada em uma seção mediúnica no dia 28 de setembro de 2010. E sem que entremos em questões de ordem puramente religiosa, uma vez que, como o senhor sabe, não sou espírita nem tampouco cristão, embora profundamente espiritualista, isto não me impediu de notar o fundo verdadeiro da sua mensagem. Como poucos, o senhor sabia a que proporções certos sonhos conduziram e deveriam conduzir minha vida. Bem o sei que não se tratava do sonho destinado à música, mas às questões de ordem puramente amorosa, que assim como ocorria com Liszt e Goethe, também disso, meu pai, sou vítima. Sou criador e, justamente por isso, naturalmente romântico. Fora até mesmo preciso sua intervenção, seu chamado, para que eu percebesse o quanto, por conta disso, eu poderia estar me distanciando da essência da vida.

Compartilho consigo determinados interesses. Queria fazer de mim o mesmo descrito por Nimrod de Rosário com relação a Jung: ser uma continuidade, recomeçando obras de onde o senhor parou. No estudo sobre certos autores a quem admiramos. Nas descobertas pelo mundo. Nas religiões. Na música e literatura.

Recordo que quando descíamos pela Estrada da Graciosa, o senhor tinha o costume de me contar que escalara por 21 vezes o Pico do Marumbi, acompanhado de canivetes e do antigo exemplar de “Assim falava Zaratustra”. Soube até mesmo que um dos maiores segredos do Exército Brasileiro está em torno de uma expedição que fracassou, quando se teve o registro de uma baixa histórica; por motivos específicos, soldados foram mortos ao penetrar em uma caverna desconhecida.

Tenho, inclusive, compreendido o teor do militarismo presente em sua essência. Bem o sei hoje com que pesar o senhor recebera aquela notícia, de que eu não seguiria carreira militar. Apesar do estado próximo da agonia frente à glória dos tempos passados, do militarismo que lhe ensinou a música e a medicina, que lhe presenteou com a disciplina e o amor pelo trabalho, ainda é possível encontrar grandes homens no Exército da atualidade. Dias atrás, a propósito, adquiri “Das virtudes militares”, de Pedro Schirmer, da Biblioteca do Exército Editora, onde se diz que “um homem sem ideal não é mais do que um autômato ou um ser vegetativo, sem alma, sem vontade e sem sentimentos”.

Da Rússia, da terra onde nossos ancestrais alemães estiveram, chegaram alguns presentes. De Dostoievski a Rudel, passando por Guido von List, tudo composto da mais bela escrita cirílica. Pensava eu que ao recebê-los, em longo prazo passaria não mais a dominar somente poucas palavras no russo; teria um dia, quem sabe, a mesma dádiva que a sua, dominando a esse belo idioma.

Já me é possível conversar em alemão, pai. E bem. Quando um amigo do estrangeiro esteve em nossos aposentos, soou apenas o alemão, com algum pouco auxílio do inglês.

O retrato daquele 1985 permanece sobre a minha estante de livros. É como se ao olhá-lo ou apontá-lo aos visitantes, dissesse: "Eis quem sou!". Chego mesmo a causar confusão: ora, esteticamente falando, parecidíssimo consigo; ora, tal qual nossa mãe.

A forma com que o senhor me conduziu ao ateísmo pôde ser melhor vista. Cheguei mesmo a relatar isto em um dos meus escritos. Buscou a condução, não a finalidade. Daquele ceticismo surgiu um martelo, através do qual redescobri minha espiritualidade.

Repousa sobre mim, sem que seja proposital, aquela sua humildade característica. Em um mundo onde todos dizem saber, é bom relembrar as lições de Sócrates e dar valor às incógnitas, às respostas que não se têm; em um mundo que anseia pelo materialismo, é bom relembrar aos velhos ensinamentos de Krishnamurti e cultuar o nada absoluto; em um mundo opressor onde todos pretendem se passar por grandes, aprendemos o quanto é belo sentir-se dono da própria pequenez.

Neste dia, pensei mesmo em sua partida, quando soava o telefone naquela manhã de domingo, ao estar diante do portão de casa. Pensei na vez em que o senhor acariciava o nosso cão ao dizer: "Ele passou a noite toda vendo espíritos", quando em poucas horas haveríamos de perdê-lo.

Compreendo o elo místico que há entre aqueles arenitos belíssimos e suas pinturas. Na quiromancia da vida, vocês, meus pais, escolheram Ponta Grossa, a herdeira de Vila Velha, berço dos alemães do Volga, capital do Integralismo, como lugar do meu nascimento.

Tantas foram as vezes em que lamentei por nossa relação um tanto quanto calada. Mas foi preciso aprender com o tempo, que em um mundo de sonoridades incompreensíveis, o senhor me presenteou com o mais belo dos silêncios.

Sigo e ainda seguirei a trabalhar por sua memória, mesmo que à moda schopenhaueriana, eu acabe por me sentir insuficiente. Será através dela que o senhor viverá agora. Não fora cremado, justamente para que tivesse a oportunidade de renascer.

Tomei conhecimento de uma história intrigante, junto da querida Dr. Lucimara, discípula sua. Consultava a um espírita. Este logo disse notar, ao lado da doutora, duas figuras que a auxiliavam no trabalho: alguém cujas características eram idênticas ao senhor, junto de um oriental, muito provavelmente chinês.

Queria ainda ter voltado mais ao passado. Ter, entre pai e madrasta, aprendido também o ucraniano. Ter aprendido a ouvir e resgatar as histórias deste povo heróico e sofrido do qual também descendo, aprendido a saborear de outro modo aqueles pratos típicos.

Continuo a ser grato pelas lições de xadrez na infância, este esporte genial que, ao lado do tênis de mesa, é considerado o que mais requer raciocínio e atenção.

Aos domingos, quando visito nossa tia Antônia, recordo os antigos almoços de família: tão sagrados à memória de agora, tão despercebidos quando eram reais.

A experiência de tê-lo perdido, transformada em escritos e música, serviu-me, à parte de reviver sua memória, como que um elo. Há meses, em uma carta, a amiga romena Ana Ionesei dizia considerar como divina a forma com que encontrou minha música; em especial, a canção "Sua vida foi um exemplo para mim" a fez pensar em seu próprio pai, que partira também há pouco. Copiara do alemão alguns dos poemas de seu Theorgue Ionesei, como fora o caso de "Liebesgeschichte", dedicado a Garcia Lorca.

Em suma, pai, meu pai, é esta a minha forma de estar em contato consigo e, neste mês de outubro, poder, através das palavras, desejar-lhe um feliz aniversário em seu septuagésimo oitavo ano de existência, junto de toda nossa família. Deste plano, como queira sua compreensão, nós seguiremos a relembrá-lo.

Com amor e carinho,

Newton Schner Jr.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 25/10/2010
Reeditado em 26/10/2010
Código do texto: T2578298