CARTA DO PRIMO ZÉ ANTONIO

Sampa, 26 de outubro de 1998.

Betinho, caríssimo primo, amigo e parceiro de escrevenças:-

Recebi sua carta, com algumas crônicas novas, e li com mais pressa do que pude responder. Você, que é homem de mil labutas, pode compreender e perdoar a demora. Dia virá em que uma mega-sena qualquer nos porá, a mim e a você, no gozo e uso de uma boa bolada, quando então a gente fará apenas o que gosta: ler, escrever, contar uma meia dúzia de mentiras pros amigos e parentes e dormir de papo pro ar. Mas até a vinda desse bendito dia, tome trabalho, tome correria, tome vamo que vamo.

Ri muito lendo as novas crônicas. “- Eu já gosto de uma sacanagem!”, como diria o Zé Trindade. Adorei “Zona Rural”, aquela do médico que passa a égua na cara. Você fez um belo molho com as pequenas safadezas de seus personagens, por certo safadezas da sua infância, de gente que você conheceu e com quem conviveu, casos que presenciou ou ouviu na época, essa deliciosa matéria da infância proibida que mais tarde a gente pode relatar sem perigo do cascudo. Imagino tia Flavia e tio Constantino sabendo dessas safadezas agora ... com certeza ririam o bom riso da condescendência, como o velho Zé Olímpio riu das minhas piadas no Programa do Jô.

O sal da vida é esse aí, Betinho. Imagino você num terno, de gravata, coordenando sua trabalhosa tarefa do dia-a-dia, e por trás desse competente e serio homem de empresa, o moleque Betinho do Cedro e da Renascença esperando a vez de se soltar nos teclados da máquina, com histórias onde há a mãe revelando à filha mal traçada que na primeira noite o pai “comeu cinco bifes, duas rabadas e ainda lambeu o prato” ... (Apetite Voraz). E há termos da boca suja das esquinas, tipo “cu de bêbado não tem dono”, “a privada cagou em mim todinho”, e aquela do Waldir, “tonto que nem gambá:- Então me dá sua bucetinha, Lu? Ocê me dá?”... (Porre de Boy).

Acho que você adestrou mais aquele molejo que você tem como contador de piadas ao vivo, um dos maiores que eu conheço, onde justamente o desfecho do caso faz o remate da graça. Nas crônicas isso está mais vivo, mais procurado agora, e quando você diz que lhe dei essa dica, eu não concordo muito não, apenas lembrei a você que podia levar ao papel o que na piada oral você faz como ninguém, que é precisamente dar à ultima frase o toque de humor. Me divertiu muito sua liberdade de linguagem, o desbocamento necessário para ilustrar com exatidão os ditos dos tipos retratados, a naturalidade que faz com que as sacanagens pareçam próprias ao caso e que não poderiam ser tratadas de outra forma e com outro palavreado. E sobretudo me alegra que você continue a escrever, achando espaço na sua agenda de homem de empresa para a criação literária, dando voz a um pendor e divertindo quem o lê. Bola pra frente, primo, sempre, e com essa liberdade e esse gosto de escrever de todas as suas crônicas.

Falei com China outro dia, por telefone. Ela me ligou pra comentar a entrevista no Jô, demos boas risadas. China, se não existisse, Deus tinha que inventar urgente, porque é dessas pessoas que trazem uma energia boa pra terra, trazem a luta e o calor de uma vitalidade que faz bem pro mundo todo. Estivemos juntos aqui em São Paulo, num almoço na casa das meninas, e foi um chuá ter estado com China. Essa é fora de série, Betinho. China é pra guardar no coração e não deixar sair nunca mais.

Dê parabéns, por mim, ao Silvinho e Rubinho pelos novos netos. Primo, a gente tá falando de netos! Nós que subimos e descemos as ladeiras da Renascença, que pulamos os muros da Botucatu 129, de pés descalços, agora somos avós! Aqui em casa qualquer hora pinta coisa igual. Como diria aquele velho locutor:- “-O tempo paaaaasssssa ...”

Agradeço a atenção da sua carta e o envio das crônicas, Betinho. Espero que os caminhos da vida nos aproximem em data próxima, onde a gente possa de novo relembrar coisas antigas, falar de coisas presentes e sonhar coisas futuras. Mando um abraço pra toda a família, todos os primos da Botucatu e filhos, todos os seus filhos e netos, para Maria Mari e pra você, em especial, querido primo, aquele velho abraço do antigo admirador e amigo de sempre,

José Antonio

-o-o-o-o-o-

Obs.:- Carta recebida do primo José Antonio de Souza, dramaturgo, romancista e diretor teatral, autor do romance “Paixões Alegres”, que o levou a ser entrevistado no Programa do Jô Soares.

-o-o-o-o-o-

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 05/02/2010
Reeditado em 05/02/2010
Código do texto: T2071521
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.