CARTA (AINDA SE USA?) SEM DESTINATÁRIO
Esta é uma conversa com a minha blusa e não apenas com os meus botões. Preciso fazer esta carta para tentar remoer parte desta questão que me aflige. A questão toda vai ser impossível. Quero desvendar este mistério de sentir controverso, reverso, desconexo. De sentir quem está longe, perto. De andar de mãos dadas, de caminhar pelas calçadas, conversar, subir e descer encostas, atravessar vales, voar. De eu mesma responder ao que te perguntar. O coração marcando o mesmo compasso, o braço no teu braço. O pensamento ver, ler, traduzir. Jamais soube de algo assim suceder, seja a um mendigo ou a um rei. Queria muito, mas muito mesmo brigar, até bater, arranhar. Fazer uma enorme confusão, gritar na rua, empurrar-te ao chão. Ficar mal, cara fechada. Sofrer a separação, sentir num só suspiro angústia e desespero. Inventar artifícios para retornares e tudo recomeçar. Aí vou te adular, beijar, pedir perdão, desculpa e coisa e tal. E vibrar feito criança, de alegria de teu aceno, de tua aceitação. Ah, como queria ficar muito zangada, brava, fechar o tempo, promover uma tormenta! Não consigo mais. Eu me transformei em ti. E fico pensando que precisas de ajuda, de uma palavra, que estás desnorteado. Estás também sem frente, sem costas sem lados. Queres andar comigo pelas ruas, sorrir, cantar, sentar à mesa de um bar, jogar conversa fora, falar bobagens, sorrir, ver passar a madrugada vestida em seu lindo vestido boêmio? Pois saibas que também quero. Aí dançaremos loucos de alegria e de irresponsabilidade. Consigo ver os abraços, cada vez mais estreitados. Deixo-me levar na correnteza da poesia e vamos de mãos dadas acompanhar uma serenata de bêbedos, deitar nos jardins de uma praça, e olhar as estrelas. Esqueceremos as convenções sociais, os ritos e as leis, principalmente as leis. Cantaremos para a lua. E gritaremos. E o que tiver de acontecer será natural. Inteiramente normal como o vento, o céu e o mar. Eu sei que é assim que dois loucos entendem a vida. Mas só tem beleza mesmo se for vez por outra, pois almas inquietas de tudo se entediam. Então depois cada um retorna à sua vida citadina, ao corre- corre pela sobrevivência, à missa, ao Natal. E também ao carnaval. A vida continua nua e crua. Poxa, pensei agora naquela canção que diz “Nossas roupas comuns dependuradas, no alto qual bandeiras agitadas...”. Isto pra mim passou, acabou, “perdeu a cor”. Não escolhi estar assim, com um pensamento no cérebro entranhado. Sabe o que juntos seríamos? Um casal de idealistas derrotados ou um casal de burgueses mal acostumados, fartos do tinir dos cristais. Que sábia a vida em nos separar, em nos negar a chave do segredo, da totalidade. Resta-nos a angustiante busca do que jamais será possível encontrar. E, se um dia, por acaso, a gente se avistar, brilhará o sol da meia-noite e os anjos cantarão a canção dos abismos siderais. Será só um instante fugaz de mais sofrimento, saudade, perdas. O desencontro do sol com a lua é a metáfora. O sol seguirá o seu ardente destino e a lua a estrada em prata pavimentada. Meu querido, eu não queria ter descoberto que a tua carne e a tua alma já habitavam em mim, nem eu mesma sei desde quando. E nem saberei se sou a tua morada pelos séculos. Ou se viverei para sempre em desacertado relógio. Nem acredito que a morte una. A missão da morte é separar, desunir. Ela nos separará e embaralhará nos desvãos da terra. Seremos qualquer tipo de vida sob o pó. Não nos recordaremos absolutamente desse rasgo divino que se nos mostra esplendoroso, mas que nos aniquila. A minha alma tem sede da tua, uma inextinguível sede. Matar esta sede será o preço de uma dor ainda maior, bem maior. Equivalerá a um encontro com Deus e, depois, a um inferno de ausência. Será esta sede um castigo por um crime que não me lembro de haver cometido? Chego a avistar uma porta entreaberta e lá dentro um clarão. Sei que se trata da revelação, mas sei que não me será permitida. Provarei as angústias do castigo, quem sabe, merecido. Matar essa fome é igual a morrer de inanição. Sabes por quê? Porque o que me sobra é um triz de segundo para sentir a matéria e nela me enveredar, me perder e me encontrar. A eternidade é um cisco do beijo que gostaria de beijar. Somos detentos em uma masmorra. Sem a luz. Só temos as sombras. Ignorantes de nós mesmos, tentamos manter o sorriso incoerente dos cegos tateando o alto-relevo da face da felicidade. Eu te beijo com as minhas mãos cheias do prazer que só os cegos compreendem.