Carta a um amigo
Querido amigo,
Por onde anda o teu abraço? Fugiu?
Corri ,mas não tive tempo de alcançá-lo.
A estrada era velha e esburacada,cai,levantei e tornei a cai.Rompeu-se a pele sob o vestido florido.Manchou minha alma de vermelho.
Sentei.Chorei.
Queria tanto amigo que estivesses aqui!
Onde encontro teu abraço?
Que viagem tão longa fostes?Por que não voltas?
Falaria dos meus enganos, das minhas alegrias.Lembra-te das noites de risos ? Daquela árvore do terreno baldio em frente nossa casa?Do teu olhar que acolhia minhas lágrimas?
Acho que ali ainda moram os anjos.Não há mais árvores,nem o balanço,nem a brisa do vento de Cabo Frio.Construíram uma casa linda. Muitas vidraças e com dois andares.É uma casa pintada de verde clarinho.Ainda não há crianças no jardim que nasceu ali.Acho que nossos desenhos enterrados naquela terra se perderam. O mapa do tesouro das nossas conchinhas valiosas.
Passo sempre por ali.As vezes me sento no banco da pracinha e fico horas olhando a igreja de São Benedito. Lembras quantas vezes queríamos entrar no barco de madeira do altar e vagar pelo mundo em busca de aventuras?Um barquinho talhado feito para um exército de formigas marinheiras! Pequeno barco ,mas na nossa imaginação tomaríamos a poção de encolhimento de Alice do País das Maravilhas.
As poções... não havia uma flor ou folha que não fosse objeto da nossa investigação científica!
Em que galáxia estás?
De que estrela é teu brilho?
Vistes Maria, a mãe de Jesus ,meu amigo?
A lembrança da procissão me acompanha.Dia 13 de novembro você estava lá.Vestido de anjo.Um anjo de nariz vermelho, de cabelo encaracolado e joelho ralado.Nossa Senhora da Assunção deve ter te dado um pito daqueles quando te viu no céu!
Eu sei que você está lá!
Não pode ter lugar melhor para uma alminha tão peralta.
Traz de volta tua risada para mim.Coloca num cometa e deixa aqui ,na porta de casa! Só o som do pensamento ... não deixarei voar como as folhas de amendoeira que se amontoam nos cantos,nas calhas.
Os cometas são os correios celestes das almas dos amigos!
Numa dessas noites eu fiquei na janela da casa de vovó! Moro aqui ,não me mudaram,apenas eu mudei de cor,de rosto,de corpo.Talvez não me reconheças se passares pela janela.Naquela janela azul de onde nós víamos o galo maluco da torre da igreja.Se pudesse pularia o muro da casa verde e deitaria no chão onde foi nossa árvore para contar as nossas estrelas de novo!Quem sabe sentiria o calor de seu corpo junto ao meu... Tu ainda queres dividir o universo comigo? Tu podes voar agora ,astronauta do paraíso?
Voa até mim, meu amigo,numa dessas noites quentes que fazem por aqui!
Sabe, eu cresci!Cresci mais do que você!Estou tão crescida que comecei a diminuir.Acho que o tempo passou tão rapidamente que eu não vi.Chamo meu espelho de "O Mentiroso" porque me mostra uma velha e me vejo uma menina.Vejo meus cabelos em trança e não enxergo em mim a alvura dos fios que dizem me restar.
Queria tanto ouvir de novo tuas histórias.Tenho aquele vidrinho de maionese cheinho de botão.Nossa coleção classe A. Dona Sebastiana se mudou.Dona Tereza também e já morrerram as velhinhas.Quantos botões elas nos deram, não foi?Por aqui não vieram outras costureiras.O bairro foi transmutado para um bairro novo em Cabo Frio chamado Jardim Esperança,não sobrou quase ninguém.A avenida cortou nossa casa, levou nosso campinho.Fiquei aqui em meia casa de vovó que a rua não comeu.
Vovó Deversa deve estar em alguma outra estrela.Ela não te viu por ai?Dizia ela que ficaria bem próxima a lua, para ver o reflexo de prata no canal de Itajuru.
Esta manhã abri meu armário do quarto de bagunça,meu canto agora.Vi o vidrinho.Meu amigo,o botão em formatinho de rosa está com as cores apagadas.Eu quis tanto um vestido com aquele botão... Tu não o permitistes dado o "grande valor" da peça de arte,e ainda me disse,em desculpa bem recebida, que eu era como o botão,linda ,linda,linda...a verdadeira rosa!
Devo estar apagada como o botãozinho vermelho.Queria que visses o tempo me percorrendo e te percorrendo.Queria ter visto teu cabelo branqueando e sua barriga crescendo.Rio na imaginação de sua aparência de velho, de suas falas de velho, de suas artes de velho.
Saudade morre também,meu amigo?
Dentro daquele camafeu de vovó habita nosso retratinho.Aquele que tiramos na escola no dia das crianças,no Colégio Estadual Miguel Couto,lembra-te?Estás com o presente de tia Regina em uma das mãos e a outra tu me abraças!Ríamos!
O abraço foge de nós mesmo que amemos tanto quem nos abraçou um dia!
Amigo, volta dessa viagem.Vovó disse que você chegava logo. Ela também foi embora e você nunca retornou.Fiquei sozinha.Os canarinhos estão tão bonitos! Sim, são meus companheiros novos. Os teus partiram ,mas procriaram e eu os mantenho a tua espera.Quando voltares acharás que eram os mesmos.Pensarás que um deles é o canarinho do menino Sacha, de Manoel Bandeira.A Tzá, está bem velhinha.Os filhotes todo mundo quis sempre.Agora ela não dá mais cria.É uma cadelinha amiga,parece que também está querendo viajar.Passa mais tempo deitada na porta da cozinha,quase não ouço seu latido.Xamingo se foi junto com vovó.Gato metido aquele, não?
Posso te pedir uma coisa,amigo?
Olha meu joelho ainda sangra. Estive a pouco procurando o teu abraço...Cai!Acho que não enxergo bem mesmo.Uso uns óculos mais grossos agora.Acostumei com os olhos aprisionados.Ninguém roubou meu olhar.Será por quê eu olhava para o céu a tua procura?
Peço,ouve meu sussurro que esse vento sufoca,volta para nossa praia,volta para nossa infância.Caso não te deixem sair de tua estrela... peça para que me busquem,amigo...
Estou tão cansada... queria partir e encontrar contigo!
Até breve,com meu carinho ,
Sua amiga flormaria!