O Desconhecido 2

Aimée, minha amiga quase distante.

As pessoas que habitam essas cidades pequeninas têm um sorriso bobo sempre pronto para ser ofertado, é como se tentassem ocultar em uma expressão dissimulada a verdadeira face sofrida que a labuta com a falta de recursos mais confortáveis - pra não dizer pobreza - pode lhes oferecer. Não, não, talvez não seja uma dissimilitude, talvez o sofrimento dê um ar verdadeiramente atoleimado e de poucas possibilidades, a não ser sorrir, ao que não se podem entender com mais afinco. Mas é um riso tão belo, de uma ingenuidade arrisca, que embora pareça desinteligente, é de uma força sem medidas, porque conhecer as coisas assim com tamanho afinco e perscrutação é também se contagiar de conhecimento e revolta. E disso esse povo não morre.

Estou hospedado na pensão da Meire, uma mulata encorpada de estatura mediana, tem no corpo a medida de beleza que antes do esteriótipo magérrimo se aceitava como muito belo. E eu gosto. A pensão é na verdade uma casa de eira e beira de arquitetura antiga, localizada numa esquina, uma casa de largura boa, mas não tão larga, mais comprida; um grande corredor com quartos ladeados. No meu quarto, duas camas, uma de casal e uma de solteiro, um ventilador muito depredado desses que ficam numa haste (fui proibido de ligado, voltagem incompatível), um relógio-quadro de parede (SPFC: O último campeão paulista do milênio. Com letras e escudo cintilando em purpurina), e também uma cadeira de madeira onde tenho depositado minhas roupas sujas. Em resumo, uma moradia em estrutura pobre, entretanto muito rica pela generosidade e afabilidade de quem a governa, sempre muito bem asseada e organizada com bastante esmero, esmero esse que parece brotar do chão, Meire arruma tudo sem que sequer demo-nos conta. E ela é tão bela, de uma atmosfera de fidalguia, de gestos suaves e mãos delicadas, um misto de cigana e mexicana, com seus cabelos lisos e negros, intrigantes na pele escura; tem dentes graúdos e de uma brancura negra invejável. É engraçado dividir a casa com uma família que não é a sua, Meire tem um filho pequeno de uns oito anos de idade que também mora aqui e de quem ela cuida e educa atenciosamente, o pequeno é de uma esperteza quase adulta, ele é o braço direito da mãe, a quem ela demanda funções expressas que ajudam-na a manter a pensão em ordem e, enquanto ela se ocupa de cozinhar e bem servir os hospedes, ele vai ao comércio comprar algo, guia alguém a algum lugar, apresenta os cômodos da casa e onde ficam os interruptores que aqui são difíceis de ser encontrados, ele se chama Ueslei. De hospedes fixos tenho eu e Neila, os outros, ao que pude observar, são na maior parte viajantes que trabalham como caminhoneiros ou vendedores aqui e nas cidades circunvizinhas, passam a noite e partem, como se parentes distantes, que nos visitam, fossem e que por instantes fizessem parte dessa família de retalhos. Somos uma colcha de fuxico.

Amanheceu mais quente hoje e caminhei tanto que fiz calos nos pés. Não chupei picolé enquanto trabalhava como o fiz ontem, porque minha garganta doeu, mas bebi um refrigerante de cola muito gelado, antes tivesse chupado picolé. O garoto que tem me ensinado o ofício de carteiro convidou-me, depois do trabalho, a tomar um refrigerante e fomos a um boteco, quando vi, ele já tinha aberto um refrigerante de cola de dois litros, não pude fazer a desfeita de não beber, embora eu não beba refrigerante de cola ele pagara para me ofertar num ritual de novos amigos aquela bebida, por isso aceitei, por saber que aquele era o nosso primeiro brinde. O nome do meu novo amigo é Tarcísio, um carteiro nato, conhece a cidade inteira, digo em pessoas também, ele sabe o nome de quase todo mundo daqui e o nome de todas as ruas, e quando o endereço é insuficiente (A maior parte das correspondências, e esse é o impasse de se ser carteiro aqui) ele entrega por saber onde mora o destinatário. Que memória! E não pense que aqui é pequenininho, são 25 mil moradores para apenas três carteiros e para a memória de apenas um matuto.

Adoro suco de caju gelado, e sempre eu e Tarcísio passamos na escola onde ele estudou e na cantina compramos um suco e seguimos a entregar cartas.

O trem sempre passa aqui, a linha fica próxima à pensão, onde soube ter um cruzamento, e isso ao mesmo tempo em que me lembra o papa-léguas e o coiote, me traz na memória um pouco da minha infância e da minha terra natal, onde morei (e hoje onde os meus pais ainda moram) tem também um cruzamento de via automobilística com via férrea, anunciado por uma placa grande e alta em “X”, onde em cada traço diagonal que perfaz o “X” há escrito: cruzamento via férrea / cruzamento via férrea; e numa outra placa de altura igual, como um espetinho de uvas caramelizadas (“Uvas do amor”, dessas que se encontra em quermesses ou festejos juninos), três placas redondas dispostas uma abaixo da outra no mesmo hastil dizem: PARE, OLHE, ESCUTE. E é por isso que em todo cruzamento o trem apita e chacoalha seu sino, além de fazer tremer o chão. O trem é uma centopéia gigante de metal. Lembrei de uma canção que Thiê, um amigo que mora aí em Petrolina sempre cantava: “Achei bonito o trem correr na linha meu bem / achei bonito o telefone tocar / achei bonito o apito da usina meu bem / achei bonito o avião pairar no ar”.

Fica bem também!