MEU CORAÇÃO NÃO BATE POR VOCÊ, APANHA...

Querida, “meu coração não bate por você, apanha...”. Esta cantada, achei-a na Internet em dois mil e cinco, quando concluía a faculdade. Gostei dela, em razão do seu poder expressivo. É impressionante como apenas sete palavras podem encerrar tantos sentidos ao mesmo tempo.

Como você sabe, por trás destas letras reside alguém que, desde quando a conheceu, nunca escondeu os sentimentos que possui por você. Esta pessoa chegou a construir lindos castelos; viu-os crescer milagrosamente em seu coração, como numa produção cinematográfica. Mas um vento contrário destruiu tão bela arquitetura. Você, diria ele na sua pressa, se foi para sempre: “perdi-a dessa vez”.

Estou falando de mim mesmo, você sabe. Foi doloroso para mim, ouvi-la dizer que poderia sim ser minha amiga, porém nada mais... – não possuía nenhum sentimento por mim que a fizesse pensar em um possível namoro. Mas... pensei, você foi justa: disse a verdade; disse o que estava em seu coração. Não é sua culpa não gostar de mim. Sei o que é ter que tomar a atitude que você tomou. Fingir gostar de mim é que seria injustiça.

Confortei-me dizendo: “fiz a minha parte. Disse a ela o que sentia”. Agora, levantarei a cabeça e seguirei o meu caminho. Foi difícil afastar a sua imagem da minha memória. Mas consegui! Não estava sofrendo mais. Até que, às dezesseis horas e trinta e dois minutos do dia quatorze de junho:

Meu celular toca,

Corro para atender,

É a sua voz, melódica como sempre.

Que surpresa foi para mim, receber uma ligação sua. Fiquei quase sem palavras. Ainda bem que era você quem estava com a palavra. Era você quem tinha ligado. Pena que você falou pouco. Queria ouvi-la mais.

Acontece, porém, minha querida, que uma força indomável me empurrou para o computador e eu não tive escolha a não ser escrever este texto. Com um simples telefonema... Repito: com um simples telefonema, você reedificou os castelos. Ou, diria alguém, eles nunca foram destruídos. Novamente a sua imagem propagou-se por todo meu ser e instalou-se no mais profundo do meu âmago.

É nesse contexto que a frase inicial, que usei como título, faz-se propícia. Ela possui uma antítese. Vamos pensar juntos:

O primeiro sentido da palavra coração (o sentido denotativo ou real) é de (1) “órgão que recebe o sangue e o bombeia para todo o corpo”. O outro sentido (conotativo ou figurado) atribui à palavra coração o significado de (2) “o centro das emoções, conjunto dos sentimentos, especialmente aqueles que constituem o que se chama amor, paixão etc.”.

Semelhantemente, o verbo bater (meu coração não bate) possui várias acepções. Vamos àquelas que nos interessa: entendendo coração como um órgão, bater pode significar (1) “pulsar” (receber e bombear o sangue); por outro lado, bater pode significar também (2) “surrar, espancar alguém...”.

Considerando só a primeira parte do enunciado: meu coração não bate por você, e interpretando a palavra 'coração' na acepção (1), que é a que mais se identifica com as relações sentimentais, haveremos de concordar que este enunciado não é bem vindo ao contexto de uma paquera. Ou seja, espera-se que a pessoa diga uma frase afirmativa, tipo: meu coração BATE por você, que equivale à expressão: estou totalmente seduzido por você. Isso não acontece; a frase é negativa...

Até aqui, diríamos que esta cantada é inválida – jamais possuirá um efeito positivo. Mas a mesma nos surpreende, ao introduzir a segunda parte do enunciado: (meu coração não bate por você) apanha. O verbo 'apanhar' não se opõe ao verbo 'bater', quando este está empregado na acepção (1) 'pulsar'. Mas se opõe ao mesmo verbo (bater), quando este está empregado na acepção (2) 'surrar, espancar alguém'.

A razão de esta cantada provocar em nós uma sensação de prazer (humor) reside exatamente na polissemia (muitos sentidos) que provoca. Muitos sentidos perpassam por nossa mente. O nosso intelecto é obrigado a experimentar os sentidos, descartar uns e aproveitar outros, detendo-se naquele(s) que atende à relação de oposição (antítese). É uma verdadeira ginástica cerebral.

Nessa altura do raciocínio, isto é, quando percebemos que o verbo bater não pode prevalecer com o sentido de 'pulsar', pois seria uma cantada inválida, vemo-nos obrigados a entendê-lo com o sentido de 'surrar, espancar alguém'. Isso ocorre porque o verbo apanhar nos obriga a estabelecer a relação de oposição.

Mas ainda não pára por aqui. Temos que mergulhar um pouco mais fundo e encontrar aqueles sentidos que os verbos bater e apanhar, nas últimas acepções apresentadas, evocam.

'Bater' (surrar, espancar alguém) fala-nos de superioridade, aquele que tem o poder, que está por cima etc. 'Apanhar', por outro lado, lembra-nos submissão, aquele que sofre. Assim estabelece-se a relação de vassalagem: o servo diante do senhor feudal.

Que lindo, né?! – Quer dizer que quando alguém enuncia esta frase, na verdade, está dizendo: estou sofrendo, estou a seus pés; enquanto você, com um simples gesto, pode espantar para sempre este sofrimento e instituir um novo período, em que os corações (ambos: meu e seu), entendidos na acepção (2), podem expressar-se reciprocamente na mais alta intensidade que a lei do sentimento pode permitir? Sim, é isso mesmo.

No nosso coração, parece que existem nele glândulas que produzem, sem parar, todo tipo de sentimento. Elas não se preocupam em saber se existe alguém a quem estes sentimentos possam ser canalizados. Apenas os produzem.

Acontece, querida, que, se não há uma pessoa-alvo, que diga estou aqui, a saída do coração se fecha. Não há vazão. Os sentimentos ficam emperrados no peito. Mas o coração continua a produzi-los inflexivelmente. Parece, às vezes, que vai explodir. É algo doloroso demais.

Perdoe-me os termos, em alguns momentos, muito técnicos. Espero que você tenha gostado do texto e que possa, algum dia, dizer comigo em uníssono: “meu coração não bate por você, APANHA...”. Ao invés de dizer, no outro extremo, “meu coração não apanha por você, bate...”.

Quando dissermos daquela forma, “meu coração APANHA”, deixará esta realidade de ser algo doloroso, porque será recíproca. Estaremos ambos na mesma posição, sendo um o vassalo do outro.