BIOGRAFIA RICARDO FONTOURA - COM O TEMPO, RICARDO APRENDEU A DRIBLAR A DOR

Ricardo sempre teve aptidão para se exercitar. Nunca foi exatamente um atleta, mas gostava muito de jogar futebol com os amigos e nadar com a família. No futebol não era o primeiro a ser escolhido. Era mais um zagueiro esforçado do que um craque. Mas isso era algo secundário para ele. Não jogava bola por medalhas ou glória. Apenas para se divertir e confraternizar com os amigos.

Gostava tanto de jogar suas peladas que construiu uma pequena quadra no quintal de sua casa. Ali recebia os amigos e vizinhos e a diversão era garantida. O irmão Otavinho era o craque da família. Tinha certa habilidade e se destacava na turma.

A natação era outra paixão que ele fazia questão. Quase todos os dias dava um mergulho. Quando inaugurou a casa nova, com piscina, passou a ser o ponto de encontro da família aos finais de semana. Ricardo era o primeiro a pular dentro d´água e brincar com os filhos. Gostava de coloca-lo nas costas e nadar de ponta a ponta. Era como um peixe.

O futebol teve que ser abandonado com o diagnóstico da esclerose múltipla. Sua musculatura já começava a ruir e os atritos de um jogo poderiam piorar ainda mais sua condição. Algo que ele lamentou bastante e sempre confidenciava a amigos a perda de um prazer muito relevante para a sua vida.

A natação, por sorte, não entrou na lista negra de coisas que deveria abandonar. Os exercícios dentro d´água, aliás, ajudavam seu corpo a lidar com a doença. Claro que parte desses movimentos seriam coordenados por um profissional. Não seria exatamente apenas o prazer de brincar na água. Teria também algo como trabalho na água, mas ele gostava da ideia por ter a oportunidade de praticar seu esporte favorito. Nem era um esporte para ele: era brincadeira de criança, uma diversão.

Carregar os filhos nas costas, jogar para cima dentro d´água passou a ser algo a ser evitado. As braçadas teriam que ser mais comedidas, quase uma atividade medicinal. Mesmo assim, ele sorria e era grato por isso.

Com o avanço da doença, enfraquecendo seu corpo, deixando suas articulações cada vez mais atrofiadas, Ricardo teve que se reinventar. O antigo durão, homem forte e sempre disposto passou a ser lapidado. Passou a se ver como alguém que teria que mostrar força mental acima de todas as forças. Tirar do fundo de sua alma a energia necessária para mover seu corpo normalmente. Ou dentro do que era o novo normal.

Se antes precisava driblar algum amigo para fazer o gol nas brincadeiras na quadra da sua casa ou em algum campinho de Belo Horizonte, agora Ricardo precisava driblar todos os dias, todos os minutos da vida, as várias dores que assolavam seu corpo. Não eram sempre as mesmas dores. Sempre havia uma dor nova a surgir, a entrar em cena para surpreendê-lo.

Eram dores que tirava dele o direito a ter uma rotina normal. Ficar sentado, participando de uma reunião, por exemplo. Algo totalmente comum e rotineiro, mas que começava a cobrar um preço alto da sua paz de espírito. No início, ele ainda não tinha estipulado uma estratégia clara para enfrentar esses adversários.

Mas com o tempo foi fortalecendo suas faculdades mentais e, como um atleta de alto rendimento, começou a ter casca grossa para enfrentar e suplantar a dor. Claro que ele tinha ajuda de medicamentos. Mas a indústria farmacêutica não conseguia blindar 100% seu corpo. Sempre havia uma brecha pela qual escapava alguma dor lancinante.

Doía hoje, poderia ou não doer amanhã. E vice-versa. Era algo que ele precisava incorporar à sua rotina. Treinar sua mente, treinar seu corpo para essa nova realidade. E antecipar os próximos passos, pelo menos no sentido mental. Isso certamente o ajudaria a ser mais forte, a estar mais preparado, mais pronto para inimigos maiores e cada vez mais invasivos.

Não era um tipo exato de estratégia ou algo que ele verbalizava para pessoas próximas. Não tinha nenhum tipo de manual escrito. Era um mantra que passou a morar na sua mente. Ele dava mostras disso. Pessoas que frequentavam sua companhia conseguiam perceber isso. Era algo tão sutil, tão natural que gente de pouca sensibilidade era incapaz de notar que se tratava de um esquema psicológico, um motor mental que estava entrando em ação para reduzir os danos.

A luta era travada contra seu próprio corpo. Ou na nova configuração que ele ia tomando. Ricardo sabia que não receberia troféu ou medalha por essa luta, por esse jogo. Sequer chegaria ao fim este campeonato. Não tinha como vencer no final. Mas tinha como adiar o final, tinha como vencer no dia a dia. Fazer com que as dores não lhe tirassem o melhor da vida, não lhe impedissem de sonhar e realizar coisas grandes. E sonhar e realizar as pequenas coisas da vida. Ser inteiro em suas vontades e realizações. Estava exatamente aí a sua glória, a sua vitória incontestável contra a dor. Para essas batalhas, Ricardo estava aparelhado como a mais bruta máquina, aquela que não aprendeu a desistir, aquela que olha para a dor e encontra mil formas de iludir seu veneno.

* Capítulo da biografia "Ricardo Fontoura, o homem que venceu o impossível".

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 03/05/2022
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