Prévia do livro: Um dia de cada vez memórias de uma família (Fácil de entrar, difícil de sair)
Fácil de entrar, difícil de sair
Na prática, muda a apologia. Depois de alguma experiência, pude compreender como distinguir uma da outra, conseguir vivenciar e sentir o drama da adicção. Afirmo que foi horrível sentir-me uma pessoa que não controlava a compulsão, entrando em estado de impotência, uma sensação de imundície, pensamentos pecaminosos, aproximação da autodestruição e da morte. Agradeço a Deus por dar inteligência e sabedoria aos estudiosos cientistas que descobriram os males do tabaco e das drogas lícitas e ilícitas. Também sou grato a minha mãe por nos ensinar a respeitar os estudiosos que dedicavam a existência para descobrir o segredo da longevidade. Tive alguns momentos de deslizes, mas, com o apoio dos livros e de estudiosos, consegui enxergar o mundo com outros olhares e de forma consciente. Usei drogas por cerca de oito anos. Em um belo e triste dia, fecharam-se as barreiras policiais, não entrava mais a maconha. Os traficantes que a tinham seguravam todas e passavam só as drogas brancas, isto é, o crack e a cocaína. Eles se aproveitavam e triplicavam o preço da droga. Aproveitando esse embalo, entreguei-me à sobriedade, mas, com fissura do THC, surgiu mais um episódio: muito louco, quis fazer correria para conseguir a droga de predileção, mas surgia a frustração, pois perdia a caminhada. Eu voltava mais revoltado e insano. No terceiro dia de abstinência da maconha, surgiu por dentro de mim uma ira. Fui expulso da escola em que estudava. Cheguei a minha casa, coloquei o material escolar na penteadeira, saí para mais uma busca frustrante e nada encontrei. Apelei para a bebida alcoólica, que foi, de forma agressiva, rejeitada por meu organismo. Fui a um bar, tomei três cervejas, entremeadas com uma pinga. Ao perceber que o organismo agressivo necessitava de maconha, que a bebida não substituía, decidi parar. Cheguei ao lar, deparei-me com meu irmão, que, no mesmo dia, me havia feito muita raiva. Ele tocava violão e assoviava. No momento em que eu fazia alongamentos para me relaxar, os problemas se acumularam. Fui expulso da escola por falta de dinheiro para pagar a taxa de Xerox. Ao chegar a minha casa, encontrei, na sala de estar, meu irmão fumando cigarros, vício que eu deixei, fazia uns quatro anos. Na ausência de fé, surgiu uma explosão de ira, e comecei a quebrar a casa toda de meus pais, na ausência deles. O irmão trancou-se no quarto. Notei também que perdi a razão por ser humilhado no grupo de amigos. Certo dia, estávamos todos sentados na mesa de um bar, na calçada da esquina. Num diálogo, mostrei a todos o plano de empreendedorismo na área de cabeleireiro, sem saber que meu irmão estava presente. Por isso, ele me endereçou palavras ofensivas e mentirosas como “Minha mãe te odeia, nem sei o que você está fazendo lá. Você, agora, quer trabalhar no salão que minha mãe herdou de tio Sebastião?” Juntaram-se todos esses fatores e emoções num momento em que eu estava sóbrio. Entrei em transe e, usando toda a minha força, quebrei uma poltrona de madeira com chute. Eu dava gritos horrorosos e chorava. Chamava uma coisa ruim para me levar, batia em mim mesmo. Peguei um facão e tentei decepar meu próprio pescoço. Pela graça de Deus, tive uma força superior que não deixou minhas mãos levar o facão ao pescoço. O Senhor fez milagre em uma mente insana e suicida. No momento em que comecei a perder sangue devido a alguns cortes, eu me acalmei, recobrando a consciência. Por sorte, ao amanhecer no outro dia, fui fazer terapia com a psicóloga Tatiana Nassor, no Posto de Saúde Leãozinho, onde pude externar meus sentimentos. Sentei-me em frente para a psicóloga, que observou os hematomas, os olhos inchados, pulso aberto, mãos cortadas, cabeça cheia de traumatismos provenientes pelas batidas no chão e parede. Tatiana olhou e me perguntou o que acontecera. Coloquei em ordem minha respiração, que estava acelerada quando me sentei para explicar as causas de todo aquele jeito esquisito que a assustou. Muito paciente comigo, com a voz serena, explicou-me que, daquela forma, não daria conta de acompanhar o meu tratamento, sozinha. Ela precisaria de ajuda de outros profissionais da área da saúde mental. Sugeriu-me o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) ou Fazendinhas. Optei pelo CAPS, pois não precisaria dormir lá e poderia ir para casa diariamente. O mais importante eram a permanência durante o dia e o acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Fui feliz na escolha, pois, com a consequência da abstinência, sabia que surgiriam alterações comportamentais, delírios, inquietações, solidão, alterações no sono, falta de concentração, desorientação de tempo-espaço, isolamento, vazio existencial, tudo isso pelo receio de não dar conta das normas das fazendinhas e de não me conter com a medicação. Sem esta, eu poderia cometer atos suicidas. Tatiana Nassor ligou imediatamente para o CAPS e solicitou uma vaga para tratamento urgente e marcou uma consulta no mesmo dia.
Confiando no desejo e na minha força de vontade, nem precisou chamar um responsável. Guardei a data da consulta com atenção e esperança. No dia, quando deram 15 horas, fui à clínica, e o psiquiatra receitou 14 medicamentos. Um deles era Haldol injetável, para relaxar e controlar a ansiedade, delírios, abstinência e alucinações. Mesmo após ser medicado, o desejo de usar drogas continuava. No início do final de semana, uma sexta-feira, não aguentei e tomei bebida alcoólica. Segundo o ditado, é “quando o filho chora, e a mãe não vê”. Aconteceu o oposto, pois meus pais compareceram para sentir o drama. Surgiu em mim um vazio profundo. Vida sem sentido, tudo abafado, nada prestava. Abracei meus pais e chorei. Prantos e soluços. Pensava que a dor emocional não passaria. O mundo se acabou naquele momento, tudo ficou cinza, o pior que podia existir em um sentimento. Desesperados, tentavam me consolar com palavras otimistas. Gradualmente, o tempo de martírio passava. Eu saía para fazer algumas reparações, desagravos. Comecei em um salão de um amigo. Nós nos tornamos inimigos, nem sei o porquê. Outro que se tornara meu inimigo, um primo, também se encontrava no salão. Fiz dupla reparação, o que me deixou um pouco aliviado, uma evolução para a recuperação. Em um dia, fiz várias reparações, sem conhecimento do oitavo passo. Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a fazer reparações a todas elas. O tratamento diário durou mais de um ano. Todas as pessoas que conheciam o meu caráter, até mesmo entes queridos e amigos próximos, pensavam que eu jamais voltaria ao estado normal. Com fé em Deus e força de vontade, consegui parar de usar a medicação, o que não me foi fácil. No decorrer do tratamento, usei várias combinações medicamentosas. A que resgatou e estabilizou meu humor foi Carbolitium 300 mg, Rivotril e Fluoxetina. O tratamento, cujo objetivo é estabilizar os transtornos psíquicos adquiridos pelo uso indiscriminado de narcóticos, foi suspenso por mim. Notei que a Fluoxetina não me permitia ganhar peso. Tirei dúvida com pessoas que conheciam esse medicamento, as quais me informaram que o remédio não é Anfetamina, por isso não inibe o apetite. A Fluoxetina é um antidepressivo que atua diretamente na liberação da serotonina e de outras enzimas, por mútuas relações que podem auxiliar na perda de peso, devido à diminuição da ansiedade, nos casos de obsessão. No dia seguinte, em que haveria retorno à psicóloga Juliana Amorim, do CAPS, solicitei um encontro com um psiquiatra, para mudar a medicação por outra que não interferisse na ansiedade. Atendendo a meu pedido, ele trocou a combinação pelo remédio Semap 20 mg, e este me causou um efeito colateral. Aproveitando o dia da terapia, expliquei à psicóloga sobre o ocorrido. Tive de ir à UPA e tomei Akineton injetável. Na consulta com a psicóloga e o psiquiatra, pedi-lhes que explicassem os efeitos colaterais da medicação e entreguei-lhes os remédios que levava para casa. Os dois se surpreenderam com os delírios persecutórios. Atenta ao tratamento, a psicóloga Juliana Amorim me indagou sobre minha iniciativa de interromper o tratamento. Tentei dar uma justificativa convincente. Ela perseverava na ideologia das medicações de tarja preta e compreendia que o caso de esquizofrenia era hereditário, pois eu tinha tios e primos esquizofrênicos, dos lados de pai e mãe. Ela afirmou que, “visto que chegou a este quadro esquizofrênico, eternamente terá de tomar remédios que controlem seus delírios”. Eu defendi a importância de estar limpo no meio da sociedade. Aprendi que o sentido e o significado da adicção são a obsessão entre os narcóticos e tudo aquilo que nos leva a um desequilíbrio e uma dependência desenfreada de substâncias lícitas e ilícitas. Desde quando não sabemos o quanto e a hora de parar de consumir é uma característica de um adicto. Então, no exato momento em que parei de tomar os medicamentos, entrei em um estado de abstinência causada pela dependência dos (tarjas) pretas, os quais traziam um desconforto inconveniente, o efeito de impregnar. Entreguei nas mãos de Deus toda a minha vida dali para frente para sobreviver e me abster dos remédios, que também são uma droga, e é importante que haja sabedoria e controle na hora de tomá-los. Com muitas pesquisas e aceitação para chegar onde estou, encontrei o segredo da nova maneira de viver, livre e limpo só por hoje. Uma das estratégias que uso para me desintoxicar, revigorar a alma e controlar a abstinência foi uma das atividades prazerosas que dão resultados maravilhosos: o prazer de sentir uma sequência de alongamentos, exercícios de respiração, natação, a leitura de bons livros, banhos de sauna, o plantio de árvores e a feitura de projetos sociais, ou seja, lutar por uma vida salutar e cheia de sabedoria. Hoje, vivo com amor e gratidão por milhares de 24 horas com forte experiência de vida intuitiva, desejando sobriedade e sabedoria todos os adictos, para viverem bem a vida em suas 24 horas. Esse é um dos fatores que me inspiraram e me levaram a escrever este livro. A experiência de amar a vida com sobriedade e, após recuperado, eu fosse amado por mais pessoas, alterou delicadamente a intuição que eu tinha de mim mesmo e das oportunidades abertas. Eu deixara de ser um espectador do jogo da vida, um adicto ativo em recuperação. Deixei de só ficar pensando e coloquei em prática essas ideias maravilhosas. Eu não era uma pessoa particularmente sem afeto. Apesar de ser prazeroso, o amor expulsou repentinamente da prática a insanidade, ira e delírios. Foi útil apenas para projetar a recuperação e, se fosse preciso, tomar mais medicações para conter a insanidade. Não quero que ninguém julgue que a medicação seja errada, mas, sim, saber a hora de usar e de parar, substituindo-a por terapia ocupacional. Nice da Silveira foi a mulher que revolucionou o tratamento da loucura no Brasil, com um método que pode auxiliar no tratamento convencional, com novas buscas para organizar a vida. Hoje, o problema não é a impotência diante do dinheiro, mas, sim, a falta dele. Em um certo momento de minha vida, desesperado por não possuir currículo profissional, essencial para se encontrar um emprego, com pensamentos sofredores de miséria, angústia, solidão, uma vida sem sentido algum, cada segundo passava, e eu buscando, no fundo, d’alma, uma esperança para ingressar no mercado de trabalho e diminuir a sobrecarga do passado. Eu sempre me perguntava por quê, com tanta energia, não conseguia uma ocupação. Quando conseguia, entrava em conflito com o sistema. Qual seria essa sina? Será que o problema estava em mim ou no abuso de regras e de poder? Fui à Lagoa Grande, popularmente conhecida por Lagoa dos Japoneses, já citada neste texto em páginas anteriores, que fica situada em frente à casa de meus pais, considerada por mim o quintal de várias casas existentes no local, um lugar ideal para se relaxar e refletir, onde há muitas árvores, pássaros, mergulhões, martins-pescadores, joões-de-barro, bem-te-vis, etc. Pessoas indo e vindo, fazendo atividades físicas, lendo, namorando, alguns parquinhos de crianças, pessoas felizes comendo pipocas e também jogando-as para os peixes, com uma umidade relativa do ar ótima para colaborar com o bem-estar dos seres vivos ali existentes. Sentei-me no banco público daquele local e comecei a refletir sobre o que acontecia em minha vida, buscando pulso para achar a solução dos problemas, com ansiedade e anseio de construir uma família, de modo a trazer uma tranquilidade financeira para mim, para minha futura esposa e nossos filhos.
Solteiro e sem dinheiro, até que o sofrimento é menor, mas o grau financeiro estava chegando a um ponto em que me sentia perturbado, mesmo sem o uso de drogas. O carma financeiro girava em minha vida de forma tão progressiva, que mexia com meu interior, afetando a vida. O alento e minh’alma estavam apodrecidos, com as roupas que restavam desde o tempo da adicção ativa. O estado de envelhecimento e apodrecimento delas eram tão grandes, que eu firmava os dedos no pano e eles transfixavam o tecido. Em sinal de protesto, queimei as poucas roupas que tinha para chamar a atenção de minha mãe. De tanto sofrer, eu queria fazer comigo o mesmo que fiz com as roupas. Olhei bem à minha frente, perto da ponte que dá entrada para a ilha da Lagoa Grande, na esperança de encontrar alguém com quem conversar. Ao mesmo tempo, tirei proveito do contraste entre a natureza e a cidade. Avistei um advogado, velho conhecido de um ex-patrão. Ele se aproximou e, para minha surpresa, sentou-se no banco, surpreendendo-me com sua simplicidade por parar e conversar comigo. Já que mostrou isso, além de flexibilidade e compreensão, tive a liberdade de expressar-lhe o que estava sentindo. Comecei a refletir e me desabafar sobre o que acontece em minha vida, a falta de emprego e de experiência profissional. Já conhecia um pouco de minha biografia, pois sabia que trabalhei com o amigo dele, de ajudante de carregador de mudanças, e que meu patrão não assinava carteira de trabalho para ajudante geral, isto é, nada de benefício nem segurança no trabalho, sem banco de horas. Trabalhava várias horas por dia sem descanso algum, ganhava mal, comia na hora em que dava certo. Viajávamos para fazer mudanças, meus colegas e eu dormíamos, sem travesseiros e sem cobertas, no chão das casas ou apartamentos aonde levaríamos a mudança. Quando o caminhão ia vazio para buscar as mudanças, dormíamos no baú. Lá havia os cobertores sapeca-negrinho, da pior qualidade para se proteger contra o frio por pinicar muito, que eram usados para embalar os móveis frágeis que podiam estragar facilmente ou arranhar. Muitas vezes, os alimentos eram azedos, de restaurantes de beira de estrada. Atendendo a meu pedido, o patrão começou a levar comida feita pela mãe dele: arroz carreteiro, com tempero delicioso, muitas pelotas, ovo, feijão, farinha e couve. Parávamos em um posto de gasolina, fazíamos um fogareiro de lata mais álcool, aquecíamos a comida e tomávamos suco ou refrigerante. Sutilmente, o advogado Weber perguntou qual era a série que eu cursava, para sugerir e dar uns conselhos, por ser mais velho e também ter sido criado com muitas dificuldades financeiras. Com essas características, tinha uma visão e intuição já formadas e acreditava que seria a pessoa certa para aconselhar como agir e caminhar neste País de tantas diferenças de distribuição de renda, fato que trazia dificuldades a várias instituições brasileiras. Respondendo-lhe, eu disse que parei de estudar na primeira série do Ensino Médio. Contei-lhe todas as minhas passagens, revoltas e traumas. De maneira ética, o advogado colaborou para que eu me encontrasse, sabendo que gostei sempre de plantar árvores e de culturas agrícolas. Pediu-me que tivesse mais aceitação e paciência com o que ocorre nas escolas, porque o ciclo dessa sustentabilidade de falta de ética começa no momento em que entramos na escola. Se acatar todos os problemas, serei prejudicado nos estudos. Afirmou, também, que há professores e diretores bons e que não se podia generalizar. Perguntou por que eu não voltava a estudar, lembrando-me que havia uma escola agrícola que oferecia curso técnico, incluindo-se o básico. Minhas dúvidas e confusões mentais colaboravam para que eu não acatasse os conselhos daquele conhecido, mesmo que suas palavras fossem construtivas e verdadeiras. Após alguns minutos, cada um se dirigiu a sua casa. Fui à oficina de móveis de meu pai, perguntei-lhe se eu teria nova oportunidade para ajudá-lo na restauradora que ele tem ao lado de casa, pois me sobrava tempo depois das 18 horas. Meu pai aceitou a proposta com grande prazer. Fiquei lisonjeado por surgir a ideia de estudar em período integral e acatado o conselho do advogado para que eu voltasse a estudar na Escola Agrícola. Essa característica foi mais um avanço na vida, pela aceitação e compreensão. Terminando o Ensino Médio, com o curso técnico, eu poderia conseguir um excelente emprego. A escola oferece essa oportunidade, mas é difícil conciliar os horários. Para manter meu sustento, tinha que me virar e planejar o tempo de forma bem pensada, levantar-me cedo, dormir mais tarde, pois era pouco o tempo para fazer os trabalhos das 18 disciplinas oferecidas pelo curso, os trabalhos dos ensinos médio e técnico. Essa sobrecarga na agenda me causava preocupação ao extremo. Eu sabia que, com 25 anos, estudaria com adolescentes de 16 anos, e era de 8,5 km a distância de casa à escola. Eu teria de ir de bicicleta, por um percurso de várias subidas, íngremes que incrementariam a aventura. Ao mesmo tempo, saber que o tempo seria bem usado, de forma progressiva. A maravilha da sobriedade fazendo a diferença. Minha preocupação maior seria relacionar-me bem com a direção da escola e com os colegas adolescentes. Esse foi um grande desafio em minha vida, pois eu era um portador de esquizofrenia, estudando em escola que não é preparada para receber alunos com tais problemas. Eu me preocupei em saber lidar com os jovens colegas, ciente da patologia e de que os agricolinos, em sua maioria, são criados na roça, seres meio selvagens. De frente dos desafios, tudo poderia esperar. O perigo era constante. A diretora Pereirão (nome fictício), além de diretora da escola agrícola e professora universitária, era uma senhora enérgica, gananciosa, inteligente, poliglota, esposa de engenheiro-agrônomo, que era produtor rural e funcionário concursado no EMATER. Ela cobrava vinte reais para se fazer a matrícula, cesta básica de mantimentos e produtos de higiene sanitária, 500 folhas A4, tudo isso no ato de renovação da matrícula. Ela tirou o direito de levar marmita e passou a cobrar 35 reais por mês para que os alunos da rede pública pudessem almoçar no restaurante da escola. Confiante e satisfeito com a nova iniciativa, meu pai me deu uma nova oportunidade. Fomos desenvolvendo um afeto maior, ambos se ajudando mutuamente. Com as idas e vindas da Escola Agrícola de bicicleta de marcha regulada e menos revisada, tornei-me resistente e técnico para pedalar. Já tive bicicletas melhores. Eu pedalava até 200 km por dia e treinava para andar aproximadamente 1.150 km, um trajeto de Patos de Minas à Bahia. Como de costume, roubaram-me uma de cores vermelha e preta. Antes de estudar na Escola Agrícola, eu treinava diariamente numa bicicleta toda de alumínio, cujas peças, que eram excelentes, foram roubadas, e tive que optar por uma em conta, de ferro, porém boa de pedalar. Eu via nesse trajeto para a escola um passeio reforçado. Admirador dos horizontes, ia admirando as maravilhas dos cerrados com a mistura da mata atlântica, ar gostoso de respirar ao amanhecer, muitos pássaros cantarolando, à exceção dos momentos em que veículos a óleo diesel passavam e poluíam o ar com óleo queimado, prejudicando extremamente o oxigênio de que necessitamos para o ganho de energia. Havia contaminação de fumaça, que chegava a queimar a laringe, causando inflamação na garganta rapidamente. Houve dia em que tive febre de 39 graus ao ir embora. Uma caminhonete com desgastes mecânicos passou por mim, jogando fumaça, no momento em que eu subia um morro muito íngreme. Ao inspirar e expirar, um canudo de fumaça entrou em minha fossa nasal, queimando toda a mucosa. Outro fato negativo é que eu chegava à escola todo suado e não havia como tomar banho. Por sorte, quando o corpo esfriava, eu sentia menos desconforto com o suor. Quando o sinal batia às 17 horas, eu me organizava para a volta a minha casa. Os morros, que eram íngremes na ida, tornavam-se descidas na volta. Todo santo ajudava. Eu aproveitava o canteiro central da Avenida Afonso Queiroz, onde se plantam flamboaiãs, cujas raízes elevavam o leito do chão de briquetes do lado da ciclovia. Como todos os amantes de Downhill aproveitam quaisquer detalhes em um morro abaixo, eu fazia uma descida radical, pulando as raízes. Numa espécie de rampa, a bicicleta chegava a 70 km.
Há, na Escola Agrícola, aulas práticas na mandala (círculo), onde se plantam chuchu, couve, cenoura, milho, pepino, mamão, banana. No meio da mandala, há um poço que serve para irrigar a plantação. Nele, criam-se peixes, patos e frangos, e com o resto das folhas deformadas, estragadas pelo tempo, trata-se das criações. As fezes dos animais são levadas para a compostagem sendo curtidas para serem usadas como adubo orgânico, fechando, assim, o ciclo da sustentabilidade. Plantando couve, usando capina ou monda, controlando plantas daninhas nos canteiros da horta, esse manejo é um método que todos os alunos exercem no curso técnico, para reforçar e facilitar o entendimento da teoria. Num belo, porém triste dia, tive uma intuição. Acostumado a me expor ao perigo, saindo da escola numa quinta-feira, ansioso para chegar a minha casa, assim que bateu o sinal, fui à sala pegar a mochila e me preparar para ir embora. Depois de tudo pronto, peguei minha bicicleta e, de praxe, colocava as técnicas de praticar diariamente. Minha arrancada foi o início para o fôlego da adrenalina e a pressa para terminar a reforma em um guarda-louças, um guarda-roupa e uma mesa da advogada Marlene. Os móveis já estavam lixados. Faltava envernizá-los. Toda essa ansiedade por ser quinta-feira. Eu levava sete reais na carteira. Em sua maioria, os jovens solteiros aguardam os finais de semana, com alguns trocados no bolso, para se divertirem junto aos amigos, indo a uma pizzaria ou a um clube. Não poderia diferir comigo. A vontade veio atropelando a ansiedade, uma combinação para colocar a vida em risco maior. Quando uma pessoa prática um esporte radical, estes fatores são fundamentais: acelerar para adiantar o tempo, ou seja, a briga contra o relógio. O ditado popular não falha: “A pressa é inimiga da perfeição”. Eu pedalava, pedalava e, em determinado ponto da Avenida Afonso Queiroz, joguei um Advance (pulo) numa das raízes que elevam o leito da Avenida. No primeiro pulo, voei tão alto que pude enxergar o teto de um carro que transitava ao lado. Mais no final da Avenida, o garfo da bicicleta não resistiu e quebrou, jogando-me de fronte no asfalto. Com a pancada do tombo, quebraram-se dois dentes, um com raiz e tudo, tive traumatismo craniano e, em seguida, desmaiei na ciclovia. Uma senhora que passava pelo local socorreu-me, segurando minha cabeça. Perdi muito sangue, que saía pela boca e testa. Segundo testemunhas, a ambulância demorou mais de 40 minutos a chegar. Acordei do desmaio, passei as mãos no rosto e, delirando, falei da importância de ir embora. O Corpo de Bombeiros chegou e levou-me para o Hospital Regional. Lá, fiquei sedado até o dia seguinte, quando acordei, com dor de cabeça, pois nunca senti isso antes. Com o impacto, o cérebro inchou. As enfermeiras medicaram-me para diminuir a dor, fato que aconteceu alguns minutos depois. O cirurgião-dentista pediu a meu pai e a meu irmão que voltassem ao local do acidente para tentarem encontrar o dente arrancado no impacto, mas não o encontraram. Minha mãe me visitou no hospital. Com vontade de comer frutas, pedi que levassem melancia e uvas. Eu me esqueci de que não conseguia comer coisas sólidas. Para levar as frutas, minha mãe passou-as escondidas na portaria do pronto-socorro. No dia da cirurgia, deram 70 pontos em minha testa, uma plástica excelente. A única coisa ruim foi a aplicação de anestesia sobre os ferimentos. Dr. Judas pediu-me que parasse de gemer, mexer a cabeça e gritar. Havia pacientes esperando por ele na clínica particular. Ele colocou-me numa posição ruim, com o pescoço virado à direita, machucando minha coluna. Várias escoriações pelo corpo não necessitaram de pontos. Por fim, reconstituiu-se o tecido da pele. Fiquei três dias, internado no hospital, louco de vontade de ir embora. Quase na hora da alta médica, meu cunhado Hélio me fez uma visita. Mais do que depressa, ignorei a cadeira de rodas. Fui andando pelos corredores e segurando-me nas paredes. Eu me senti muito fraco e com medo de cair, mas me recuperei rapidamente. Na primeira semana seguinte, fui à escola, com a testa cheia de pontos, boca banguela, rosto inchado. Os colegas fizeram chacotas, em vez de sentirem dó de mim, mas levei tudo na esportiva. Diego e Augusto me visitaram. Este me aconselhou a guardar as notas fiscais dos remédios e dentista, pois os alunos têm seguro de vida e de acidente. O Centro Universitário paga seguro a todos da Escola Agrícola. Pela gravidade do acidente, a diretora ou um representante da escola teria a obrigação de me visitar. Pelos meus constantes conflitos com a diretora, até pensei em sabotagem com minha bicicleta, mas isso é fato que não pude comprovar. Fiquei um pouco desanimado de continuar a estudar, pois, percebi que alguns colegas eram manipulados pela direção para ficar contra mim. O tempo foi passando, e fui promovido à segunda série do Ensino Médio (na época, segundo grau). Quase diariamente, eu pegava o ônibus para ir embora; às vezes, meu pai me buscava ou eu pegava uma carona. Em vez de consertar a bicicleta, pedi que ela fosse vendida, pois, nem queria vê-la mais. Fiquei um pouco traumatizado, mas, se ficarmos sem nada a fazer devido a um acidente, vamos parar de viver. Evidentemente, voltei a andar, porém, cauteloso e atenciosamente. Quando cheguei ao meio do segundo ano, uns garotos da roça começaram a me perseguir, jurando-me de morte. Em um determinado dia na escola, decidi ir ao banheiro. Para chegar lá, tinha de passar em uma passarela que dá acesso ao banheiro. E, no meio da passarela, havia uns colegas de sala obstruindo a passagem. Pedi-lhes licença para passar, e um dos colegas disse que se eu quisesse passar, teria de ser pela lama ao lado da passarela ou pular por cima dele. Com direito de escolha, pulei as pernas dele. Nisso, ele se levantou e me empurrou, falando palavras horríveis de ouvir e me chamando para brigar. Continuei andando. Pensei que aquele mal-entendido só ficaria ali, mas me enganei. Na sala, apontou o dedo para mim e falou da intenção de me matar. Até me lembrei de uma briga que tive na Escola Santa Terezinha, em 1999, no projeto Acertando o Passo. Dois meninos da periferia da cidade não gostavam de meu jeito humilde. Irritados comigo, um deles bateu o dedo em meu nariz, sem eu dizer ou fazer nada com ele. Na hora do recreio, ignorei a agressão. Na sala de aula, continuaram me ameaçando. Levantei-me da carteira e perguntei o que eu fiz. Eles vieram para cima de mim. Do jeito que vieram, eles voltaram, ambos estourados; um, desmaiado, o outro com o rosto todo roxo e ensanguentado. Esse foi o limite colocado. A coisa era assim: batia ou apanhava. Eu preferia bater. Antes a mãe deles chorando que a minha. Agi em legítima defesa. Diz o ditado que, “quando um não quer, dois não brigam”, mas isso não funciona nas escolas públicas. Continuando o acontecimento da Escola Agrícola, ignorei os moleques. Terminadas as aulas, fui embora trabalhar. Quando deram 20h30, enxerguei uns “flashes” clareando a janela da oficina de meu pai. Pensei serem relâmpagos. Um tempo depois, mais um clarão. Fui lá fora e nada vi. Minha irmã chegou e disse que ouvira falar de uma gangue tirando fotos. Nem pus maldade. No outro dia, quando fui à escola, vi a gangue mostrando as fotos aos colegas. Eles disseram ao professor Beleza, de Educação Física, que me matariam. Esse professor presenciou algo parecido em anos passados. Ele não avisou a vítima, e esta foi assassinada pelos próprios colegas. Então, ele sentiu a necessidade de me avisar. Após a informação, fui atrás dos moleques, tomei-lhes a máquina fotográfica e mostrei à diretora, esperando ter um retorno positivo. Todavia, eu me decepcionei, pois, a diretora ficou favorável à (gangue) e me acusou de ter-lhes roubado a máquina. Em vez de fazer a reconciliação, ela concordou com a ameaça deles. Como de praxe, os dias continuam para quem está vivo e para quem quer infernizar aqueles que estão quietos.
Em uma manhã ensolarada na escola, um recreio diferente, a diretora sentiu necessidade de arrecadar 60 centavos dos alunos, para estes poderem se alimentar o dia inteiro, sendo um valor real distribuído pelo MEC, na verdade, pequeno, mas se conclui que essa quantia deu para nos alimentares com leite achocolatado. Esse leite foi comprado na fazenda da escola; a rosca, na panificadora. Já que pagamos o almoço, a diretora fez essa gentileza de nos dar o lanche depois de muito tempo. Nessa manhã, eu esperava o leite. A rosca oferecida eu doava a um colega. Esse foi o ponto de um combate na fila. Eu ouvia o grupo “Os Paralamas do Sucesso”, num fone de ouvido, e ouvi um aluno dizer assim: “Fabinha, me dá sua rosca!” Há dias em que todo ser humano acorda mal-humorado. Olhei para trás e vi um dos meninos da (gangue) com cara de bravo. Ele me disse: “Achou ruim, otário, bicha? Vou arrebentar sua cara”. Fiquei na defensiva, pois me senti ameaçado. Brotou em mim uma sensação de adrenalina, mas, mesmo assim, peguei o leite e a rosca; esta, dei para um colega, fui para o sol. Era final de novembro e fazia um pouco de frio. Comecei a conversar com um colega, e um membro da (gangue), de 18 anos, que fazia chacota e “bullying” comigo, cujo nome é Weber, apelidado de Remela, xará do conhecido advogado Weber, que me aconselhou a estudar na Escola Agrícola. Remela veio em minha direção, xingando-me de palhaço e bicha, perguntando o que eu estava olhando. Não aguentei a provocação e parti para cima dele, com “jabs” diretos de esquerda e direita, uma sequência de socos. Soltei-o, mas ele saiu depressa rumo à direção da escola. Fui atrás para me proteger. Lá chegando, ele pegou uma cadeira de ferro e a atirou em minha direção. Fui mais ligeiro, tomei-lhe a cadeira e dei-lhe mais uma sequência de “jabs” direto de esquerda e direita na fronte dele. No escritório da direção, havia mais uma sala, para os professores descansarem e fazerem reuniões. Alunos e professores trataram de separar a briga, mas não foi tarefa fácil. Rolamos muito pelo chão. Baixo e magro, mas muito ligeiro, o professor Ronaldo pulou em minhas pernas por trás e jogou-me no chão. Puxei Remela, e nós três caímos no chão juntos. Eu o segurei com a mão esquerda e o soquei com a direita. Ele tentava fazer o mesmo. Eu me defendia a todo instante. Com ou sem razão, mostrei estar vivo e não suportava as provocações. Essa foi a maneira mais precisa para colocar limite e fim nas provocações feitas por todos os perversos trans-vertidos de alunos. Apartada a briga, a vice-diretora começou a fechar a porta de vidro, que eu barrei. Pedi licença à vice, fechei a cara, amarrei a mochila nas costas e saí correndo rumo ao Instituto Estadual de Floresta — IEF — Entrei em uma trilha localizada no fundo do IEF. Na fuga, eu me senti traído mais uma vez pela escola pública. Conhecedor da trilha. Segui tranquilo. Liguei para uma garota que eu conhecera num bar e contei-lhe todo o acontecimento. No meio da conversa, a bateria do celular perdeu a carga. Continuei minha caminhada. Passei em uma borracharia do cunhado de meu ex-patrão, que fica na BR-365, às margens da rodovia. Alguns minutos depois, segui rumo à trilha do Jacó e cheguei a algumas árvores com mangas espada, coração-de-boi, comuns e coquinhas. Tendo percorrido vários km, com muita fome, por volta das 13 (h) peguei mangas verdes, comi para não me desnutrir, comecei a ficar com sede, vontade de falar com meus pais, sem comunicação e água. Após duas horas debaixo das mangueiras, dirigi-me ao Bairro Ipanema, onde encontrei um orelhão, que fica em frente a uma empresa de gesso de construção civil de meu primo. Liguei para a Karla, e ela, assustada, disse que a casa estava cercada de policiais, alguns nervosos, instigados, dizendo que tenho ficha extensa por brigas, desacato a autoridades. Fui preso pela primeira vez em Lagoa Formosa, aos 16 anos. Minha mãe, que não difere das outras, questionou o policial, dizendo que aquilo era abuso de poder. “Soldado, o Sr. acha justo seu filho ser perseguido por um bando de moleques?” O policial ficou calado, minha mãe falando. “O passado de meu filho nada tem a ver hoje com a tal prisão por desacato. Ele estava embriagado. O policial mandou que todos saíssem da praça, de forma maldosa, tirando o direito de ir e vir. Quem está bêbado, não responde por si só. O importante é que ele não faz mais uso de bebidas ou drogas. Defender-se de perseguição é legítima defesa. Agora, sim, este País está paralisado numa hipocrisia, perversidade e sagacidade. As pessoas querem ganhar em cima dos menos favorecidos”. O direito é igual para todo mundo. A diretora e a vice combinaram de ir juntas à minha casa para forçar a polícia a me prender em flagrante. Seria uma estratégia, pois ambas poderiam atuar livremente na escola. Tive de me ausentar da escola para evitar maiores transtornos. Pedi à supervisora da escola que me desse (oportunidade) de fazer as últimas provas bimestrais que faltavam. Ela sugeriu que eu as fizesse na Superintendência. Aceitei sua sugestão. Foi um acordo forçado. Fiz as provas, fiquei prejudicado, pois, a presença escolar valia pontos. Eu namorava uma historiadora. Ela conseguiu que sua colega, professora de Matemática, me desse (aulas) de reforço, mas não adiantaram, pois, fui reprovado em Química e em Matemática, ou seja, fui aprovado com dependência em duas matérias. Mesmo assim, tive o direito de fazer a terceira série, ficando devendo aquelas duas matérias. Após o ocorrido, recebi vários conselhos de uma ex-namorada para que trabalhasse em um supermercado. Desentendido com o pai, desempregado, acatei o conselho e coloquei meu currículo em um hipermercado, antes de passear no Rio de Janeiro, a viagem foi maravilhosa. A tia dela, cantora de MPB e aposentada de Furnas, nos esperou na Rodoviária Novo Rio. Gostei da cor amarela do táxi, com faixa azul. Admirei aquela linda cidade, cheia de montanhas. Desde pequenininho, assistia pela televisão à beleza indiscutível do Rio 40 graus. Ficamos alguns dias em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, na casa de familiares dela. Ficamos outros dias em Copacabana, depois voltamos a Nova Iguaçu. A mãe da namorada não aceitou nosso relacionamento. Eu me senti humilhado por Dona Elena. Ironicamente, jogou em minha cara que ex-drogado é perigoso e decidiu terminar o relacionamento à meia-noite, após o conflito. Uns dias antes, Dona Elena, mãe de Keila, tentou barrar nossa ida a Copacabana para curtirmos a passagem de ano, em 30 de dezembro de 2009. Ela se aproveitou que a chuva era forte e quis interromper nossos planos. Ligava a TV e só havia noticiário negativo de fortes chuvas. Ruas e avenidas alagadas, desmoronamentos, um acidente em Angra dos Reis, com deslizamento, etc. No dia de meu aniversário e do avô de Keila, eu já percebi que a mãe dela estava com raiva de mim. A intriga era pelo fato de eu estar desempregado, e Keila ganhava muito bem, lecionando no Centro Universitário e no Colégio Marista. Ela sustentava a mãe e, depois que nos conhecemos, parou de sustentá-la, dando a impressão de que estava me sustentando. O dinheiro com que fui para o Rio de Janeiro foi vendendo mudas de árvores que eu preparava no quintal de meu pai. Após a briga, tive de ficar mais dois dias dormindo na sala de estar da casa do tio de Keila, num apartamento abaixo do que eu estava ficando, uma família de evangélicos. A esposa traiu o marido com o pastor de outra igreja que frequentavam, mas foi perdoada. Convidaram-me a ir à igreja, e aceitei o convite. Os louvores me fizeram chorar muito, e pensei que o mundo iria desabar. Perguntei-me o que estava fazendo lá, mas foi ótimo chegar àquela situação. Acabado o culto, fomos embora dormir, a última noite na sala.
No dia seguinte, bem cedo, o tio de Keila me levou a uma panificadora em frente à linha de metrô. Lanchamos, pegamos o metrô e, em seguida, o trem para chegarmos à Rodoviária Novo Rio, onde fiquei de castigo de 8h às 17h. Peguei o ônibus e, chegando a Patos de Minas, na mesma semana me ligaram para uma entrevista no supermercado. Consegui um emprego de serviços gerais e, no decorrer dos três meses de experiência, conheci minha atual esposa. No primeiro dia em que a conheci, era só choro nos intervalos. Lanchávamos no mesmo horário. Ela se achava problemática. Morava na casa do pai, e ele só ficava fumando de fora da casa. Preocupei-me de saber que ela ocultava nossa situação e mentia sobre si mesma. Ela me propôs namoro. Eu queria conhecer o pai dela, e ela me enrolando. Decidi apresentar meus pais a ela, para lhe transmitir confiança. Ela não tinha aonde ir. Foi-se abrindo, contando um pouco de sua história. Primeiramente, disse ter uma filha; dias depois, contou ter um filho e, por último, resolveu revelar detalhes, dizendo que o homem que fumava cigarros fora de casa não era seu pai. Na verdade, ela morava na casa do pai de seus filhos e se separara há dois anos. Mostrei-me calmo com a situação, dizendo-lhe que a aceitaria do jeito que ela era e que não precisaria omitir-se, nem mentir. Afirmei-lhe que, se quisesse continuar a me namorar, teria de sair da casa do ex-marido. Ela concordou. Prometi que ajudaria a pagar metade do aluguel e das compras do dia a dia. Ao descobrir estarmos namorando, o gerente do supermercado e o encarregado começaram a pegar em meu pé. Certo dia, a amante do encarregado fez um “strip” em uma ilha de roupas íntimas, sem tirar a roupa, quando o supermercado já estava fechado. O encarregado viu tudo e fingiu nada ter visto. Ela trabalhava no setor dos enlatados, e eu fazia o abastecimento de arroz, feijão, açúcar, farinha de trigo e óleo. Havia muito trabalho no galpão onde se armazenavam os produtos do supermercado. Na promoção nervosa dos cereais, o encarregado trabalhava triplicado. Junto a ela, pediu-me que pegasse o carrinho da colega e jogasse as caixas na caçamba de lixo, lá fora. Enquanto isso, o encarregado, o gerente e clientes pegaram no meu pé para abastecer a loja do supermercado, pois os produtos cuja responsabilidade de abastecer era minha estavam em falta. Muito ligeiro, que gastou muita energia, com muita fome, não acatei a ordem imposta e respondi bem alto: “Vocês fazem as bobagens, e eu tenho de limpar”. O encarregado ficou nervoso, deu um grito: “Você não passa seu tempo de experiência, atrevido! Pode seguir seu serviço!”. Continuei empurrando uma gaiola cheia de arroz, com a mão direita, e outra, cheia de litros de óleo, com a esquerda. Assim que cheguei à loja, percebi que os clientes estavam desesperados, esperando os produtos. Deixei os produtos na loja e busquei mais. Para minha surpresa, os clientes queriam óleo, arroz e farinha de trigo. Assim foi o dia todo. Tive uma hora de intervalo para comer pão de sal e tomar café. No hortifrúti, os funcionários do setor são obrigados a jogar fora banana que despencam dos cachos. Em outros setores, jogavam-se fora iogurtes, quando faltavam dois dias para vencer. Após o problema que tive com o encarregado, comecei a vender CDs e DVDs para meus colegas de trabalho. Obtive grande sucesso, pois, no último mês, ganhei mais de um salário e meio com as vendas. Eu me senti mais seguro para ajudar em casa, cumprindo o prometido. Vencidos os três meses de experiência, eu e o encarregado do setor fomos chamados ao escritório do gerente, dos quais ganhei sermões. A intenção deles era me demitir da empresa. Terminaram a conversa falando de meus direitos trabalhistas. Bati o ponto, saí angustiado, indignado e continuei vendendo CDs e DVDs do lado de fora do supermercado. O tempo foi passando, minha mulher, dois enteados e eu morando juntos. Conseguíamos pagar o aluguel, água e luz. Concluí o antigo Segundo Grau na Escola Estadual Marcolino de Barros. Depois de 8 anos sem estudar, resolvi terminar. Com um filho maravilhoso que se chama Arthur, o final de ano foi muito turbulento para mim e a esposa. Perdemos um feto com dois meses, aborto espontâneo. Houve um acidente de moto comigo. Um vizinho não respeitou a parada obrigatória, e colidimos. Ao trombar de frente com ele, minha moto voou vários metros comigo. As testemunhas ficaram horrorizadas com a altura e a forma com que caí. Quando o infrator levantou-se do chão, eu ainda continuava no ar. Caí como um foguete no asfalto. Com o impacto, quebrei os dois cotovelos. Brincando de esconder em casa, meu filho caiu de cabeça no chão. Nós o levamos ao hospital. Lá chegando, a mãe dele explicou ao médico que a criança nasceu com um cisto aracnoide. O médico, clínico geral, pediu que se fizesse uma tomografia. Pouco tempo depois, fomos chamados para ver o resultado do exame. Meu filho tinha apenas três anos e meio. O médico fez ‘suspense’ sobre o resultado da tomografia. Pediu o exame antigo, pois, pensou que o cisto havia crescido. Caso isso tivesse realmente acontecido, a criança ficaria internada para submeter-se a uma cirurgia com um neurologista, no dia seguinte. Fiquei aguardando no pronto-socorro, conversando com parentes de pessoas internadas. Sem saber o que fazer, fui à minha casa pegar a primeira tomografia para comparar com a atual. Voltei ao hospital, mas o médico não se encontrava lá, aumentando, assim, a dor do pesadelo. Choramos muito. Ficamos lá até o dia seguinte, esperando pelo neurologista. Ele fez a comparação e disse que o cisto não havia crescido. Nós poderíamos ficar tranquilos, pois não era caso cirúrgico. Isso nos deixou aliviados. Parecia que tudo estava colaborando para que eu não terminasse os estudos. Quando estudei no projeto EJA, aconteceram várias coisas ruins, que poderiam atrapalhar minha meta de concluir os estudos. Graças a Deus! Superei tudo. Fiz dez minutos de terapia e, aproveitando o dia chuvoso, eu e uma funcionária da escola plantamos cinco mudas de árvores (quatro de acerola e uma de marmelo) na entrada do portão, no canteiro central. Realizei meu desejo de ser pai e construir uma família. Hoje, com muita gratidão, posso afirmar que sou um homem abençoado por Deus. Tenho um filho maravilhoso, o Arthur. A única coisa que nos descontrola é o ciúme da enteada com a mãe. Hoje, com poucos delírios e mania de perseguição, há momentos de fraqueza na relação, principalmente quando entram os prós e os contras. Com todas as sabedorias que o Poder Superior me ofereceu, tenho um caminho melhor para chegar aos ideais e enfrentar firmemente os problemas que surgem pela frente. Tive um envolvimento com alguns membros da igreja em que não fui batizado e nem desejo ser, pois sou católico não praticante. Tive oportunidade de conhecer narcóticos anônimos e ingressar no grupo. Consegui ver o outro lado da vida com o apoio das irmandades e enxerguei haver forma de abandonar as drogas, acompanhado por pessoas que me aceitavam do jeito que sou, ainda mais que eu abandonara as velhas maneiras de viver, com desejo próprio, e permanecer no caminho da liberdade. De forma precisa, observei alguns companheiros que se mantinham abstêmios durante longo tempo. A desonestidade, a inveja e o egocentrismo os impedem de usufruir da recuperação e ter a aprovação da sociedade. Nesse meio tempo, a melhor disposição e ordem para que um ser progrida ainda é a completa e contínua abstinência, o trabalho em terapia, bons exemplos de companheiros. Percebi que a igreja e esses grupos são as melhores ferramentas para a recuperação. Os problemas são os mesmos, só mudam os personagens. Percebemos, entre os adictos, que os riscos que os diferenciam de ficar limpos é o desejo de assim ficar, mas é provável que só se consiga essa liberdade através de uma vontade implacável e insistente de ficar limpo. Aconteça o que acontecer, logo passa a síndrome da abstinência. Basta que haja paciência e o uso de algumas estratégias aqui já citadas. Sei que os homens vivem em função de satisfazer seus desejos e costumes. A ausência dessas características nos deprime, por isso temos de colocar em prática a importância de nos policiarmos e usarmos estratégias que desviam o pensamento da compulsão e da insanidade de fazer tudo em excesso, de forma desenfreada. Por exemplo, vícios nocivos à saúde, lugares inconvenientes, pessoas da ativa. Podemos cumprimentar estes, mas nada de entrosamento com eles. Se você sentiu chegar a necessidade de partilhar tudo aquilo que o fez manter-se limpo, é de grande importância que você o faça, passando o que recebeu para os demais companheiros que ainda sofrem e têm o desejo de parar de usar as drogas. É mais que uma obrigação levar solidariedade e apoio a essas pessoas que continuam sofrendo os horrores da adicção ativa. Juntos, jamais seremos vencidos!
Uma escolha tortuosa
Nos caminhos tortos por onde andei, eu me deparei com várias exclusões, isolamentos, delírios, esquizofrenia, traição de companheiros, tristeza, suicídios, tentativas de suicídios, homicídios, prisões, overdose, perda de bens materiais, latas de cerveja vazias jogadas no chão, garrafas diversas de bebidas, mau cheiro, bitucas de cigarros, isqueiros vazios, pessoas perambulando descalças, de bermuda, pelos trilhos e becos, procurando um prazer momentâneo, isolamento em construções civis, vaivém de ambulâncias e policiais. Esses caminhos são a perda de um tempo que não tem voltas. Todavia, podemos pegar atalhos e fazer bom uso de nosso tempo e caminhar em linhas retas de puro verde, alegria, mente aberta, serenidade e pessoas com a aura brilhante.
Fábio Alves Borges