Meu outro avô.

 

 

          Minha prima Terezinha apareceu aqui em casa uma tarde dessas com um presente raro: a reprodução ampliada de uma foto antiga onde se vê meu avô com sua banda de música, formada em quase sua totalidade  por seus filhos homens. Ali estão também suas três filhas e duas crianças, uma delas, que adivinhei, meu pai menino tal sua semelhança com outra foto, a de meu irmão morto. É uma foto memorável, retrato em sépia de uma família em que todos são saudade. Quase nada é certeza, só probabilidades. Não sabemos onde foi tirada, nem quando.Só sabemos que foi recuperada por outra prima dos guardados deixados por sua mãe, a minha tia Maria Pia.A fotografia antiga emocionou-me quase até as lágrimas. Lá estão os meus antepassados, tios dos quais sei os nomes mas que não posso identificar, em suas roupas de festa, as mulheres enfeitadas, os homens de terno gravata e chapéu, cada qual empunhando o seu instrumento musical. Consegui, com ajuda, identificar vários: baixo,trombone,sax, saxofone,clarineta,bombardino, piston, instrumentos que fizeram parte de minha infância pois meu pai herdou esse talento musical e tinha alguns deles.Herdou o talento mas não deixou nenhum de herança.Ficou com ele todo mas fez pouco uso dele, perdido que ficou envolvido em fabricar o pão nosso de cada dia para o sustento dos dez filhos. Meu coração imagina como teria sido a minha vida se ele tivesse deixado o talento e levado com ele a fábrica de pão. Meu avô, o Maestro e professor de música Capitão Lybnitz é o único velho na foto. Calça clara, chapéu de lado olha com enfado para o retratista.Imagino que ele esteja atento para que o fotógrafo não roube sua alma. Parece sério, até bravo, mas o bravo não era ele, mas sim minha avó.Conta a lenda, e muitas são as lendas que envolvem as vidas dos que já não vivem, que um dia minha avó colchoeira, avisada não sei por qual passarinho,  saiu a sua procura na casa de determinado colono. Face à negativa da faceira dona da casa de que ele lá estivesse, usando as suas prerrogativas de sinhá, ela entrou porta adentro e emborcou para o quarto onde um colchão de capim, semelhante aos que ela mesma fazia, estava enrolado no chão. Arteiro que era ele havia se enrolado ali quando ouvira o som de sua voz.Só que não conseguiu encolher uma das pernas endurecidas em conseqüência de um acidente etílico.Conta a lenda também que o colchão levou uma bela surra de vassoura. Fico imaginando minha avó baixinha lanhando o colchão com toda a sua raiva de mulher traída .Na foto ele está assentado em um banco escuro, desses muito comuns em antigas casas de fazenda, junto com duas de suas filhas e mais dois rapazes. Um deles muito elegante de sapato bicolor e flor na lapela.Os outros estão de pé mas todos muito alinhados. Percebe-se claramente o chão de terra e ao fundo a paisagem indistinta pela opacidade da fotografia.Eu não conheci meu avô Capitão Lybnitz e sempre tive muita curiosidade.Gostaria que alguém pudesse me responder o porquê de seu nome tão diferente dos nomes da roça, os nomes de seus próprios filhos.Sua patente obtida por direitos latifundiários e o nome de filósofo escondiam uma alma de artista.Músico. Maestro e professor da maior competência. Perdulário, gastou duas fazendas que ganhou no dia de seu casamento com minha avó Sá Olímpia, da qual herdei parte do nome. Lá pelas bandas da Ibitipoca.Quando morreu a família continuou na mesma situação financeira que já viviam há muito tempo. Meu pai dizia que só calçou sapato pela primeira vez aos dezoito anos. E deve ser verdade. Apesar de na foto todos parecerem bem arrumados, há um menino que provavelmente é ele, porque é a cara de meu irmão, o Tarcísio. Está bem arrumadinho, mas...descalço. Cresci ouvindo muitas histórias sobre esse avô que morreu bem antes que eu nascesse. Dizem que a perna endurecida era resultado de um tombo quando atravessava bêbado um pontilhão, talvez vindo de uma noite de festa.Era um boêmio inveterado, meu avô, o tocador de clarineta.Tenho também uma tênue lembrança de ouvir meu pai contando que um dia, viajando com meu avô, a cavalo, meu avô caíra e ele teve que ir pela estrada afora sozinho, para buscar ajuda.Ensinava bandolim para as moças e eu gosto de imaginá-lo assim, ensinando bandolim para mim.Quando ainda era rico conta-se que gostava de fazer para as notas de réis envoltórios para seus cigarros. Fumou dinheiro e morreu de câncer na garganta . Morreu contrariado. Não queria sair desta vida para uma melhor, tanto que a família apavorada recorreu  a todos os meios conhecidos para forçá-lo a ficar por lá, descarnado. Perdeu tudo o que pôde e bebeu tudo o que quis.Só espero que tenha sido feliz, o meu avô, domador de sons.  (27/04/2004)

 

 

 

                              Avô Capitão

 

 

Eu não conheci meu avô

Capitão Lybnitz.

A patente obtida por direitos latifundiários

e o nome de filósofo

escondiam um artista.

Músico: Maestro e professor da maior competência.

Perdulário. Gastou duas fazendas ganhas no dia do casamento

com minha avó, Sá Olímpia.

Quando morreu a família continuou

na mesma situação financeira

que já viviam há muito tempo.

Meu pai calçou sapatos pela primeira vez,

aos dezoito anos .

Portanto devia ser feliz.

Morreu de câncer na garganta.

Morreu contrariado.

Não queria sair desta

para uma melhor.

Tanto que a família apavorada

recorreu a todos os meios conhecidos

para forçá-lo a ficar por lá

descarnado.

Perdeu tudo o que pôde.

Bebeu tudo o que quis.