ANTIBIOGRAFIA

INFÂNCIA

Marrocos é um país soberano localizado na região do Magrebe, no Norte da África. Geograficamente, Marrocos é caracterizado por um interior montanhoso acidentado, grandes extensões de deserto e um longo litoral ao longo do Oceano Atlântico e do Mar Mediterrâneo.

Marrocos tem uma população de mais de 33,8 milhões de habitantes e a sua área é de 446.550 quilômetros quadrados. Sua capital é Rabat e a maior cidade é Casablanca. Com um poder regional historicamente proeminente, Marrocos tem uma história de independência não compartilhada por seus vizinhos. Desde a fundação do primeiro Estado marroquino por Idris I em 788, o país foi governado por uma série de dinastias independentes, atingindo o seu zênite sob as dinastias Almorávida e Almóada, abrangendo partes da Península Ibérica e Noroeste da África. As dinastias Merinida e Saadiana prosseguiram a luta contra a dominação estrangeira e Marrocos continuou a ser o único país do Norte da África a evitar a ocupação pelo Império Otomano. A dinastia Alauita, a dinastia reinante atualmente, tomou o poder em 1666. Em 1912, Marrocos foi dividido em protetorados franceses e espanhóis, com uma zona internacional em Tânger, e recuperou a sua independência em 1956.

É justamente em 1956 que nasce o protagonista da nossa história. Antes de começarmos a falar nele, é necessário compreender quem eram os seus pais.

Sua mãe, Hélène, uma jovem muito charmosa, francesa nascida em Rabat na década de 1930, destacava-se pelas suas aptidões atléticas. Havia sido campeã nacional na modalidade de corrida de 60 metros rasos. Era muito alegre, sempre dando risada, sem levar a vida muito a sério.

Seu pai, André, tem uma inteligência privilegiada e uma personalidade hermética e complexa. Ele é um homem muito ambicioso, disposto a lutar para atingir os seus objetivos.

Para ele, é amor à primeira vista. Ele fica cativado e até enlouquecido pelo charme de Hélène. Ela, pelo seu lado, fica admirada com a brilhante inteligência dele. Mas, após um tempo, aquela qualidade, demasiadamente acentuada, transforma-se num defeito, chegando ao ponto de dificultar a construção de um círculo de amigos íntimos, mas ele acaba compensando isso graças ao seu sentido de humor irresistível, o que costuma acontecer com indivíduos de inteligência aguda.

Ambos haviam nascido no intervalo entre as duas grandes guerras, mas conseguiram escapar do conflito, pois o Marrocos estava situado do outro lado do Mediterrâneo, afastado daquele cenário sombrio.

A relação culmina rapidamente em casamento, celebrado por centenas de convidados das famílias mais tradicionais de Casablanca, e caracteriza-se, seguindo o modelo exclusivo em vigor naquela época, por uma dedicação exclusiva da mulher para com o seu marido.

Rapidamente, Hélène engravida, ainda muito jovem, aos 22 anos. As brigas constantes do casal atestam que a relação não é harmoniosa. Ela tenta, imediatamente, abortar. Dr. Brahmi, o maior ginecologista do Marrocos e amigo da família, lhe prescreve uma droga falsa, temendo que ela não consiga ter outros filhos.

Muitos anos mais tarde, o filho concebido perceberá, por acaso, que o nome do médico assemelha-se com o nome da divindade hinduista Brahma, que, por sua vez, provém de Abraham, o Patriarca do Antigo Testamento, como se tivesse sido concebido por Deus.

O início da vida desta criança, portanto, é caracterizado por uma ambiguidade fundamental que oscila entre as circunstâncias adversas e a mão providencial do Criador.

Aos cinco meses de gravidez, o conflito transforma-se num drama. No meio de uma discussão violenta, Hélène sai repentinamente de casa, pega seu carro e acaba se envolvendo num acidente grave, batendo contra um caminhão. Ela é encaminhada imediatamente para um pronto-socorro, pois seu estado é crítico. Seu joelho, fraturado em vários lugares, precisará de três cirurgias. Até a hora do parto, só a morfina conseguirá amenizar a dor. Para Hélène, este momento é um marco divisor de águas, pois esta jovem atleta, transbordando de vida, corre subitamente o risco de ficar paralítica. Ela levará a gravidez a termo, engessada do pé até o quadril. Como se o seu sofrimento não fosse o suficiente, o feto está na posição errada e precisa de fórceps para sair. O bebê nasce com problemas hepáticos dos quais padecerá até os 12 anos e sem as enzimas necessárias para digerir o leite. Devido ao estado de saúde da Hélène, a mãe dela assume o comando, cuidando da criança.

*

A súbita independência do Marrocos, antes uma colônia francesa, faz o pai da Hélène, Jacques, um abastado dono de uma fábrica de velas, entrar em falência, causando a sua morte, pouco tempo depois. O pai de André, que também se chama Jacques, é um comerciante de sucesso, mergulhado na mesma situação política marroquina. Ele perde toda a sua fortuna, destruindo repentinamente o sonho de André de dar continuidade ao império do pai.

Doravante, André, desprovido de qualquer recurso, se vê obrigado a estudar em Paris. A França, o berço da cultura, sempre destacou-se por suas escolas, renomadas pela sua excelência. Após o ensino médio, elas dividem-se em faculdades comuns e “Grandes Écoles”, acessíveis somente por meio de concurso, o que exige um preparo muito rigoroso e um nível superior de inteligência, que obriga o aspirante a uma verdadeira maratona, tanto física quanto intelectual.

André investe nesta tentativa todas as suas energias de jovem marido solitário, pois Hèléne ainda está hospitalizada em Casablanca. Mas acaba fracassando. Para ele, isto não é uma simples derrota, mas uma assombração que o perseguirá pelo resto da vida, pois obter um diploma de uma Grande École é a garantia de começar a vida profissional num alto cargo e a certeza de uma carreira promissora. Logo, a alternativa que ele escolhe é a formação como engenheiro eletrônico que, embora para outras pessoas pudesse representar uma conquista, para ele resulta numa ferida tanto narcísica quanto na frustração decorrente do desmoronamento de sua ambição desmedida.

Para cúmulo de males, uns amigos do Marrocos lhe comunicam que Hélène, finalmente recuperada, havia sido vista frequentando festas exuberantes ao invés de estar ao seu lado, em Paris.

A contragosto, ela acaba, finalmente, cumprindo com os seus deveres conjugais, viajando com a criança para morar com o marido num conjunto de prédios num bairro burguês, perto do Arco do Triunfo.

Apesar do glamour de Paris, para Hélène, a mudança brusca de estilo de relacionamento - a passagem do namoro para a convivência definitiva - torna-se rapidamente uma situação sufocante pois encontra-se obrigada a mergulhar imediatamente numa coabitação sem sequer ter tido a oportunidade de testar a compatibilidade íntima com o seu parceiro e sem antes ter conseguido viver plenamente a sua liberdade. O sentimento de responsabilidade para com a criança exacerba este desafio, gerando uma sensação de aprisionamento e uma situação de extrema instabilidade.

No entanto, a atmosfera ainda é cheia de alegria graças a essa criança tão bonita quanto graciosa.

André é um homem forte, dominador e autoconfiante. Ele tem certeza do seu sucesso, mas não sabe quanto tempo irá demorar para atingi-lo.

Esta criança é, portanto, simultaneamente, o filho do milagre e do desastre: o milagre de ter sobrevivido ao desastre. Esta temática constituirá a tônica fundamental de sua vida.

Devido às restrições impostas por um fígado atingido pela morfina, o paraíso das gratificações alimentares de toda criança é vedado à Jacques. Quando ele infringe as regras, se excedendo nas batatas-fritas ou nos sorvetes, a crise é inevitável: surgem dores de cabeça extremamente intensas seguidas de vômitos prolongados.

Felizmente, o pequeno ser combina vivacidade e precocidade com um físico bonito, mas frágil.

Aos dois anos de idade, ocorre o primeiro trauma consciente que ele nunca esquecerá: sua mãe, com quem o vínculo será ao longo de sua infância o de um amor louco, típico dos filhos únicos, começa a abandoná-lo sistematicamente em colônias de férias na Suíça, durante as férias, por períodos prolongados. A única vantagem desta separação: ele aprenderá a esquiar na neve a partir dos três anos com grande sucesso e prazer. Seu maior problema será o início de uma sensação de solidão que nunca o abandonará e que se tornará consciente a partir dos 12 anos de idade, após o divórcio dos seus pais e a dedicação exclusiva de sua mãe ao padrasto.

Este amor exacerbado e idealizado por estes abandonos anuais fará dele um ser totalmente dependente das suas paixões pelas mulheres, criando vínculos tão absolutamente intensos quanto impossíveis de serem mantidos.

Durante o período de 12 anos no ambiente familiar, ele precisa conviver com o amor louco por sua mãe e terror de seu pai. Aos quatro anos, ele já aprende a ler e a escrever. Sua paixão pela literatura começa muito cedo. Quando tira notas ruins, a severidade de seu pai o faz pensar em suicídio, mas o boletim é sempre entregue para a sua mãe no último minuto.

Ele gostaria de frequentar o quarto dos seus pais, particularmente nas noites de sonambulismo mas, devido ao medo do seu pai, ele sempre acaba indo para o quarto da Victoria, a velha empregada espanhola. A relação do "casal" só consegue durar por um período de 13 anos devido à criança.

Como demostra um potencial intelectual acima da média, espera-se muito dele, fazendo com que ele sinta-se destinado a grandes realizações.

Após alguns anos de convivência, ambos acabam traindo. André acorda cedo para trabalhar, mas Hélène, como perfeita dondoca parisiense, começa o seu dia no horário do almoço, que é precedido por um banho quente. Quando Jacques está em casa, ele toma banho com ela ou a massageia. Enquanto André está trabalhando duro para comprar casacos de pele ou até uma joia de vez em quando, Hélène passa as tardes na companhia de seu amante, um jovem malandro. Ela sabe que, se ela se entregar a ele, será a sua ruina. Apesar disso, a relação dura quase sete anos, pois a química entre eles é forte.

Um dia, André, desconfiado, acaba descobrindo que os amantes irão se encontrar no aeroporto. Ele se precipita e enfrenta o intruso. Com a calma do forte, o ameaça: “Sai daqui antes que eu te arrebente!”. Finalmente, ele exige o divórcio.

Hélène o sacaneia na justiça, destruindo a sua reputação e prejudicando seriamente a sua carreira. Em razão disso, André, apesar do filho em comum, nunca mais se comunicará com ela.

Uma noite, André, que nunca havia demonstrado qualquer tipo de atenção ou carinho para com o filho, chama Jacques para um passeio de carro. A empolgação é muito grande. No entanto, não é a luz no fim do túnel, mas um trem na direção contrária. Ele comunica ao filho que pretende separar-se de sua mãe. Naquela noite, Jacques chora, sozinho na sua cama, para nunca mais pensar naquilo.

O divórcio é precedido por um período muito feliz de um ano durante o qual ele pode, finalmente, dormir com sua mãe. Jacques não sente falta de seu pai. Pelo contrário, sente-se liberto quando imagina como teria sido insuportável se ele tivesse crescido oprimido por tamanha exigência. No fundo, sente-se aliviado e agradecido, apesar do fato que todos os seus sonhos são destruídos na época do divórcio.

Hélène casa-se imediatamente com Marc Roittman, um judeu romeno de 40 anos que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial quando era adolescente, para quem ela havia sido apresentada em Buenos Aires, onde suas irmãs já moravam. Este filho único havia perdido o pai nos campos de concentração aos 13 anos, tendo conseguido sobreviver milagrosamente junto com sua mãe.

Na época, Marc já é diretor de uma multinacional francesa, em Buenos Aires. Ele tem uma filha do primeiro casamento, Katia, um pouco mais velha que Jacques, que também é o produto de uma relação problemática porque a mãe dela não é judia. Os pais dela impedem Marc de ver sua filha durante os primeiros anos de vida da criança. Sua primeira esposa é atriz. Ela acabará cometendo suicídio depois de enlouquecer. Uma aura de mistério a envolve já que ninguém nunca comenta nada sobre ela.

O primeiro contato com Marc faz Jacques sentir que, apesar de tudo, ele ainda preferia seu pai, que não era tão frio e tão orgulhoso.

Mas o essencial é que toda a fase, desde seu nascimento, termina abruptamente aos 12 anos: uma grande luz interior se extingue para sempre. É o fim do bebê admirado e paparicado.

BLACKOUT - O PRIMEIRO TÚNEL (ENTRE 12 E 15 ANOS)

A descoberta do Sol radiante de Buenos Aires enche a atmosfera de vida, contrastando com a grisalha parisiense. Todavia, nuvens pretas escurecem rapidamente o seu céu interior porque o casal começa a abandoná-lo aos finais de semana, viajando frequentemente para as casas de campo de amigos, entre adultos. Jacques não tem outra alternativa a não ser ficar sozinho na frente da televisão.

Com o tempo, ele acaba desenvolvendo um pequeno círculo de amizades no Liceu. Seu primeiro amigo é Yan Larboulette, cuja mãe era, na época, Diretora da Aliança Francesa. Ela passa a encontrar-se assiduamente com Hélène e Marc. Yan tem dois irmãos um pouco mais velhos do que ele e uma irmã caçula. Por ser filho de pais divorciados, a mãe dirige a casa com simpatia e liberalidade. Jacques encontra, na família de Yan, a alegria que lhe faltava. Eles moram numa casa imensa de vários andares e um jardim com piscina. Quando os finais de semana não são preenchidos pelas festas exuberantes que o irmão maior, Hervé, organiza, ele vara as noites junto com Yan em papos intermináveis, fumando cigarro após cigarro, o que nesta idade lhes conferem um sentimento de independência e de autoestima, num contraste gritante com a formalidade da sua casa deserta. É o seu porto seguro e o seu único refúgio.

O início do ensino médio também é glorioso e inesquecível, devido à descoberta de um notável dom poético que o ajuda a se destacar num grupo sólido de amizades que durarão para o resto da vida.

As trocas incessantes de poemas com Laura Borgialli, uma grande amiga, sensível e talentosa, é um estímulo fundamental. Seus estilos diferentes enriquecem suas criatividades. O resultado final, após um ano de produção, são 60 poemas em alexandrinos (estrofes de quatro versos de doze polegadas cada).

Num minuto de perfeccionismo e descontentamento, talvez provocado pela esgotamento súbito da inspiração, Jacques acaba rasgando seu caderno, a sua razão de viver, no qual cada poema está escrito a mão com uma caligrafia cuja aparência é tão delicada quanto o conteúdo que ela encerra. O arrependimento por sua atitude insensata não demora a bater com força total. Felizmente, uns dias antes, ele havia presenteado uma tia, irmã da sua mãe, com uma cópia dos poemas. Ele a procura desesperadamente, única possuidora do tesouro tão arduamente conquistado, única lembrança das emoções tão profundas do desabrochar da adolescência. Ela está, naquela época, mudando-se da Suíça. Mas, infelizmente, devido a um estranho conjunto de circunstâncias, a cópia dos poemas nunca é encontrada. Esta perda é ressentida como se tivesse sido arrancado um pedaço de sua alma, a parte mais tenra e mais profunda. “A Perda dos Poemas” simboliza um corte profundo e mais uma expulsão do paraíso original, confirmando que, na medida que crescemos, vamos caminhando rumo a uma exterioridade cada vez mais pronunciada, perdendo neste processo o contato com a nossa interioridade mais profunda. Doravante, esta alma tão pura e tão idealista, sedenta de uma luz inextinguível terá que aprender a preencher-se de outra maneira.

Com o passar do tempo, Jacques começa a perceber que, assim como existem os dias biológicos, existem também “os dias da alma” que dividem a vida de uma maneira subjetiva, muito mais verdadeira e significativa do que os dias comuns, como se fossem temporadas da alma. A alma, certamente, tem suas primaveras, seus verões, seus outonos e seus invernos. Mas, na nossa época, cada vez mais dominada pela pressa, pelo estresse e por uma produtividade cada vez mais mecanizada, quem poderia ainda ter essa consciência e essa sensibilidade? Ela somente aflora em alguns seres que conseguem manter-se na margem da sociedade, como flores delicadas que flutuam sobre um pântano nauseabundo que ameaça submergi-las a qualquer instante. No entanto, essas são as mais belas flores e, talvez, a única razão de ser destes pântanos através dos quais o Criador parece querer nos ensinar que a vida e a beleza são tão poderosas que podem até surgir da estagnação e da miséria num mundo cheio de mistérios, como vagalumes em meio à mais profunda escuridão. Estas faíscas de luz parecem ser as nossas únicas esperanças num mundo aparentemente desprovido de qualquer divindade. Galileu, na beira da fogueira, não repetia, falando da terra, “No entanto, ela se move”, indo na contramão da humanidade inteira? O fogo não surge de uma única faísca? Tanto a natureza quanto a história dos homens nos demostram que o verdadeiro desenrolar da vida é sempre contrário às probabilidades. Nunca faltaram homens de curiosidade e coragem que, com o tempo, acabaram se impondo, assim como a noite acaba sempre cedendo, deixando o lugar para a claridade do dia numa eterna dualidade. Os amantes da noite não apreciam a beleza da Lua e das estrelas mais ainda do que o brilho ostentativo do astro solar?

Em nossa vida interior, o mal também trava a sua eterna luta contra o bem, perseguindo-o e dominando-o, assim como o sono acaba inevitavelmente vencendo a vigília. No entanto, sabemos que só existimos quando estamos acordados após aquela pequena morte. A cada despertar, a luta recomeça, mesmo sabendo que ela é fadada ao fracasso assim como o destino derradeiro da nossa existência, a morte. A nossa única esperança, a força que nos impulsiona, provém de uma luz e de uma vida eternas. Quem poderia provar que elas não passam de uma fantasia ou do produto da nossa imaginação num mundo no qual a única certeza é o nosso desaparecimento? “No entanto, ela se move!”. A brasa quase extinta não se torna chama se soprarmos suficientemente forte? A ciência confirma que nada é impossível para o homem quando ele compreende as leis da natureza. No microcosmos do mundo interior, uma pequena luz pode dissipar muitas trevas. Mais ainda, as trevas podem até ser transformadas em luz quando estamos receptivos a forças superiores, pois um homem que só conta com ele mesmo acaba acalentando o fogo abrasador de um orgulho que o devora, aprisionado na própria teia que ele tanto se esforçou em construir para aprisionar os seus semelhantes. Quão poucos são aqueles que conseguem escapar desta antropofagia! Sob mil disfarces racionais, é sempre o animal dentro de nós que acaba vencendo. Como transcender esta dualidade aparentemente insuperável?

É precisamente esta problemática que será, doravante, a motivação do nosso herói porque não são somente os poemas que se perderam para sempre. É uma temporada da alma que termina para dar lugar a lutas intrincadas, a da sobrevivência, que nos obrigam a deixar de ser dependentes para nos tornarmos autônomos conjuntamente com a luta interior da busca da nossa verdadeira identidade, saindo ao encontro das nossas faíscas em meio a mais completa escuridão. Daí a necessidade de soprar, soprar com todas as forças em meio à tempestade do mundo para poder acender a chama!

Na década de 1960, as drogas explodiam pelo planeta. Pareciam úteis, moralmente, na época da paz e do amor, para ajudar a harmonizar finalmente um mundo em convulsão. A primeira vez que Jacques experimenta a maconha, se sente enjoado, exatamente como aconteceu com o seu primeiro cigarro. Estranhamente, na segunda vez o efeito é o oposto, produzindo uma sensação de bem-estar que o liberta magicamente de todas as suas opressões. Sozinho ou na companhia de bons amigos, a viagem é sempre alegre e agradável.

Pouco tempo depois, Jean Besse, uma figura muito insólita, faz a sua aparição no Liceu. É um adolescente parisiense que não se encaixa no perfil dos outros alunos. Ele é um intelectual de rosto pálido, quase doentio, retraído e enigmático. Seu comportamento diferenciado é responsável pela única greve de alunos na história do Liceu. Por uma razão impossível de explicar, Jacques acaba estabelecendo com ele uma estranha amizade. Por ser muito solitário, Jean não costuma misturar-se com seus camaradas. Portanto, os encontros serão frequentemente a sós, no pequeno quarto que Jean ocupa na casa dos pais. Após um tempo de amizade, Jean confessa que é viciado em anfetaminas. Por outro lado, com apenas 15 anos, já está lendo Espinosa, um autor pelo qual Jacques só irá se interessar 40 anos mais tarde. Jean acabará sendo um amigo que só deixará um sentimento de profunda tristeza.

Mas estamos nos antecipando. Ainda há um longo e árduo caminho a ser percorrido para que todos os conflitos e todo o sofrimento possam se manifestar na consciência, condição imprescindível para dar o primeiro passo, o mais difícil de qualquer jornada.

O FUNDO DO POÇO

A descoberta das drogas coincide estranhamente com a sua primeira paixão: a guitarra elétrica e o Blues-Rock. A combinação de ambos é muito criativa. O pioneiro indiscutível do Rock Psicodélico é, sem dúvida, Jimi Hendrix, o Van Gogh da música, que, infelizmente, havia acabado de morrer, junto com Jim Morrison e Janis Joplin, todos aos 27 anos, três gênios cuja perda é incalculável. Esta tragédia acontece justamente um pouco antes de Jacques ir morar com o seu pai, na Califórnia, aos 16 anos.

Mas, depois da fase prolongada do prazer, o uso das drogas transforma-se em vício e Jacques acaba perdendo o interesse nas coisas deste mundo justamente quando ele deveria ter começado a preparar-se para a luta pela vida.

A sua primeira lembrança de um intenso e quase absoluto desejo de viver em outra dimensão ocorre durante a puberdade quando, no Liceu Franco-Argentino Jean Mermoz, em Buenos Aires, ele escuta por acaso alguns estudantes mencionarem o poder da repetição dos mantras que, quando são praticados corretamente, podem dar acesso a novas dimensões da consciência, tanto ou mais reais do que o nosso mundo físico. O impacto dessa informação, totalmente nova e não necessariamente verdadeira, mostra como Jacques, ainda tão jovem, sentia-se literalmente sufocado neste mundo. De qualquer maneira, não sabendo o que fazer com isso, esta possibilidade acaba permanecendo por seis ou sete anos sem nenhuma utilidade. Será somente após uma vida inteira que Jacques se tornará plenamente consciente do imenso poder da mente, podendo manifestar-se com uma precisão surpreendente. Alguns desejos materializam-se quase imediatamente enquanto outros levam anos ou décadas para concretizarem-se. Aparentemente, eles permanecem reprimidos no subconsciente esperando o momento certo para germinar até que tenhamos adquirido a oportunidade de exercer todo o nosso poder de atenção e toda a força da nossa vontade para esses fins. Quando a mente é unificada e orientada para realizações com prioridade e com foco, as oportunidades concretizam-se naturalmente.

É importante mencionar este desejo de Jacques porque ele expressa um estado muito particular da alma que poderia ser definido como o sentimento crescente da impossibilidade de ser feliz neste mundo. Mas se a vida não é felicidade, o que ela é, então?

Do lado familiar, o abandono afetivo de sua mãe torna-se cada dia mais evidente e sem esperança de melhoria, como aqueles navios que partem do porto para nunca mais voltar. Começa a crescer dentro dele um sentimento de revolta cada vez mais forte contra ela. O ponto culminante dessa raiva contida acontece quando ele decide mudar completamente a decoração que sua mãe havia feito no seu quarto. A decoração perfeitamente burguesa, cheia dos pequenos detalhes de uma delicada elegância é substituída por um ambiente totalmente psicodélico. Um colchão de água é cercado como uma tenda desde o teto até o chão por tecidos hindus multicoloridos. A lâmpada vermelha de um abajur vela a claridade para criar uma atmosfera onírica. As paredes são completamente recobertas por um papel de parede de um gibi cósmico recortado, dando a sensação de uma entrada súbita na galáxia. Latas de cerveja sabiamente amassadas e empilhadas formam estátuas decorativas. Até que um dia, de repente, Hélène, num ataque de nervos, dá um chute num pilar de latinhas. Jacques precipita-se sobre ela e eles rolam pelo chão. Finalmente ele a solta para não machucá-la.

É neste momento que toma a decisão de ir morar com o seu pai, que tinha se mudado de Paris para a Califórnia. Ele havia tomado a difícil decisão de deixar a França para participar do futuro mundial da eletrônica no Vale Do Silício. Jacques aterrissa em San José, na Califórnia, aos 16 anos.

CALIFÓRNIA

A estadia de Jacques na Califórnia será marcada por quatro grandes feitos. A admiração sem limites e o amor profundo que começa a desenvolver pelo seu pai, que passa a conhecer pela primeira vez. A descoberta do L.S.D. O encontro com Karen, uma colega muito atraente da escola. Uma depressão profunda que o obrigará a mudar de ambiente novamente.

O que desperta em Jacques tamanha admiração por seu pai? É o fato de André demostrar uma capacidade de trabalho colossal aliada a sua incomparável inteligência. Jacques sempre havia se servido de sua inteligência para estudar o mínimo possível. Ainda não aprendera que, na vida, o esforço é mais importante do que a inteligência, por maior que ela seja. Ele pagará um preço alto por esta tendência à preguiça, como poderá ser constatado mais adiante.

Naquelas oportunidades em que visita seu pai no escritório, o que fica gravado na sua mente são aqueles olhos azul-claros que brilham intensamente. Daí em diante, toda vez que Jacques sonha com o seu pai, ele está sempre sentado atrás da sua mesa de trabalho com aqueles olhos de felino que se destacam como dois faróis poderosos iluminando a escuridão.

UM DOMINGO EM FAMÍLIA

Um final de semana, Jacques considera seriamente em experimentar o L.S.D. Já faz dois anos que ele fuma maconha regularmente. A invenção do L.S.D. é relativamente recente. Sabe-se somente que é uma droga muito poderosa cujos efeitos são totalmente imprevisíveis, podendo ser até fatais. Mas enquanto a maconha proporciona simplesmente uma sensação de prazer, o L.S.D. é um verdadeiro alucinógeno. Algumas pessoas, por se sentirem capazes de voar, já haviam morrido por terem se atirado de lugares altos. Mas Jacques decide encarar o L.S.D. como um experimento científico. Afinal, o que poderia ser mais interessante do que ser o sujeito das próprias mudanças cerebrais? A curiosidade fala mais alto e ele sente-se disposto a correr o risco.

Meia hora após ter engolido uma pílula minúscula, mudanças muito significativas começam a manifestar-se. Uma expansão extraordinária de consciência faz soltar a pressão exercida sobre o corpo, enquanto novas energias despertam. É um dia radiante e no instante em que ele olha para o Sol, uma conexão se estabelece. O Sol desce até o topo da sua cabeça, despertando o seu Sol interior. Ele está quase entrando em êxtase quando escuta um barulho de chaves na porta. Seu pai havia mudado os planos, voltando para casa. Jacques fica muito ansioso. Não tem a menor ideia de qual é a sua aparência, mas não tem outra saída a não ser manter a calma e parecer normal.

Eles haviam sido convidados para um churrasco na casa de um amigo de seu pai, na beira da piscina. Mentalmente, ele é obrigado a voltar para a realidade, mas a sua consciência continua se expandido inexoravelmente. Felizmente, seu pai não percebe nada. Ele continua num estado de exaltação, porém em pleno controle dos seus movimentos. Entram no carro. O asfalto da estrada está se derretendo como os relógios dos quadros de Salvador Dali.

Quando chegam na casa do amigo de seu pai, Jacques cumprimenta tudo mundo muito educadamente. Enxerga algumas manchas brancas no rosto do dono da casa, que o fazem parecer mais velho. Quando chegam na piscina, ele entra um pouco, para não chamar a atenção, mas quase não sente a água. Finge comer um hamburger, mas está sem fome porque está sendo alimentado a cada segundo por um outro tipo de energia, muito mais sutil.

Quando vão embora, seu pai decide fazer um passeio de carro pelas montanhas. A cada curva, Jacques sente uma energia cada vez mais forte subir dentro dele, lhe dando uma sensação de poder e de prazer indescritíveis.

No final da tarde, quando o efeito da droga começa a passar, Jacques sente-se repentinamente muito faminto, como se tivesse gasto uma energia enorme. Eles vão comer alguma coisa. Depois, voltam para casa e vão organizar as coisas para começar a semana, seu pai para o trabalho e ele para a escola, após um domingo único e inesquecível, como nunca mais voltaria a experimentar em toda a sua vida.

É somente mais tarde que Jacques conscientiza-se que, para ele, o grande inconveniente do L.S.D. será ter que continuar vivendo o resto de sua vida sem L.S.D.

KAREN

A escola em San José dividia-se basicamente em “caretas” que só estudavam, e “espertos” que também sabiam aproveitar a vida. Jacques começa a trocar olhares com Karen durante os recreios, mas a primeira grande oportunidade de aproximar-se dela surge com um convite para uma festa que iria acontecer no próximo fim de semana. Ele não se contém de impaciência e de felicidade.

Quando entra na festa, tudo mundo já está chapado. Uma espessa nuvem de maconha da melhor qualidade paira no ar e latas de cervejas vazias estão espalhadas pelo chão. Ele mesmo havia aproveitado este momento especial para tomar um ácido (L.S.D.), antes de sair de casa.

Karen estava mais sensual do que nunca, com sua blusa decotada e seu shortinho. Após anos de satisfação solitária, ele vai finalmente conseguir beijar uma mulher de verdade e, talvez, até ter uma namorada. É um daqueles momentos que ficam gravados na memória para sempre.

Ele a vigia discretamente, aguardando o momento certo para dar o primeiro passo. Subitamente, ele percebe uma movimentação estranha. Ela sai e volta para a sala de estar várias vezes, meio agitada, e sempre acompanhada de um rapaz diferente. De repente, a ficha cai como um relâmpago: ela está transando com todos esses caras! Uma imensa decepção o invade, potencializada pelo efeito do ácido. Ele desce do estado de glória no qual se encontrava. O mundo em volta dele desacelera bruscamente, transformando-se numa espécie de pesadelo lento e oprimente. Ele sai imediatamente de lá, atordoado e cambaleando. Precisa respirar fundo o ar fresco da noite para conseguir chegar em casa. O sonho tão almejado de um primeiro beijo e de uma primeira namorada havia desmoronado miseravelmente.

A DEPRESSÃO

Pouco tempo depois, Jacques tem, mais uma vez, a oportunidade de beijar Karen, quando eles estão sentados no banco traseiro do carro de um amigo, mas não consegue. Durante o resto do ano, nenhuma outra garota aparece em sua vida, deixando-o sozinho com a música e a maconha, que havia se tornado o ritual solitário das tardes e das noites, pois ele só estuda de manhã. No começo, havia convencido seu pai a acompanhá-lo nos concertos de Rock, em São Francisco, nos quais bandas mundialmente famosas, que ele já conhecia bem, tocavam regularmente: Humble Pie, Edgar Winter, Rick Derringer, Steve Winwood, Jim Capaldi, John Mc Laughlin, Emerson, Lake e Palmer, entre outros. Eles haviam até fumado juntos algumas vezes, numa comovente cumplicidade. Porém, o que havia sido um passatempo fugaz para o seu pai, havia se transformado para Jacques num vício solidamente arraigado. A solidão volta a assombrá-lo com força esmagadora. Frequentemente, fica sozinho em casa comendo feijão com pimenta.

Um dia, uma tristeza imensa invade todo o seu ser. Jacques percebe que caiu num buraco do qual não consegue sair, como uma pessoa que não consegue mais enxergar a luz do dia. É a sua primeira depressão profunda.

André, não sabendo como lidar com esta situação inesperada, liga para a mãe de Jacques, explicando o que está acontecendo e ele embarca no primeiro avião de volta para Buenos Aires.

Desembarca com 100 ácidos no bolso. Naquela época, os controles alfandegários ainda não existem. Cada ácido custa a quantia irrisória de um dólar e são fáceis de transportar porque consistem num pedaço de papel de um centímetro quadrado com uma gota em cima. Jacques nunca havia conseguido entender como uma simples gota podia produzir um efeito tão cataclísmico e tão duradouro, pois a viagem dura por volta de 12 horas. Acaba compartilhando generosamente o seu tesouro com seus amigos do Liceu, que agradecem calorosamente.

Como o problema emocional com a sua mãe ainda não está completamente resolvido, pensa-se numa outra solução. Ele aceita continuar os seus estudos em Paris, morando com os seus avós paternos. Permanece lá durante seis meses, mas a sua condição não se altera, dando sempre prioridade às drogas e deixando o estudo de lado para dedicar-se a ler avidamente a extensa obra de Antonin Artaud, um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês de aspirações anarquistas que, apesar do seu inegável talento, havia sido internado reiteradamente em clínicas psiquiátricas devido à graves problemas mentais. A sua avó costuma brincar dizendo que ele está estudando para uma tese sobre Artaud.

Após seis meses sem nenhum sinal de melhoria, seus avós entram novamente em contato com a sua mãe. Desta vez, ele volta para Argentina para valer, faz as pazes com sua mãe, tomando consciência que ele havia seriamente reprimido o sentimento de amor por ela e percebendo que, no fundo, ela se preocupa por ele mais do que qualquer outra pessoa no mundo.

Consegue a duras penas terminar os seus estudos secundários, mas nem tudo é chuva e trovões durante esta fase tumultuada. No meio da tempestade, alguns grandiosos raios de Sol também iluminam fortemente a sua vida.

ADRIANA

Naquela época, Loic, um dos irmãos de Yan, um rapaz troncudo e musculoso, de quem era também amigo íntimo, está namorando uma moça, Adriana. Um dia, eles se reúnem para tomar um café. Jacques inclina-se ligeiramente para frente para cumprimentá-la. Ela é uma morena de olhos claros que estuda Filosofia. Jacques a acha bonita, inteligente e risonha, um pouco séria, como toda pessoa intelectualizada.

Uma noite, ele volta a encontrá-la na casa de Loic, que havia saído, deixando-os a sós. Ele fica quieto pois ela é a namorada do seu melhor amigo, mas ela subitamente inclina-se para cima dele com graça e delicadeza, mas também com uma firmeza irresistível. Ele já havia beijado algumas garotas nas festas dançantes do Liceu, mas nunca com tamanha intensidade e paixão. Ela revela que, quando ele havia se inclinado para cumprimentá-la aquela tarde no café, ela havia sentido que ele era um verdadeiro cavalheiro. Graças a esta percepção aguçada, própria das mulheres, ela já o havia escolhido para ser o seu futuro namorado, sem ele suspeitar de nada.

Jacques fica preocupado em estar, de repente, tendo um caso com a namorada do seu melhor amigo, mas, surpreendentemente, Loic aceita a mudança com a maior naturalidade. Ele acaba falecendo alguns anos mais tarde, com vinte e pouco anos, num acidente de moto. O seu irmão mais velho, Hervé, também morre, muito jovem, num acidente de carro. São acontecimentos devastadores para todos, principalmente para Yan e Annick, os irmãos que sobrevivem.

O primeiro grande amor de Jacques, finalmente, concretiza-se. Ele demora três semanas antes de poder ter uma ereção, pois o amor que sente por ela é avassalador. Ela reúne tudo o que ele espera de uma namorada: beleza, charme, sensualidade, refinamento, inteligência, cultura e humor. São os anos mais felizes de sua vida.

Adriana estuda Filosofia. Seu pai havia sido senador na Argentina. Ela mora com a mãe e duas irmãs, Sandra e Claudia. Jacques é muito bem recebido e passa a frequentar a casa delas. Todas elas são muito simpáticas e agradáveis. Ele passa a conhecer vários amigos delas, com alguns dos quais desenvolve fortes laços de amizade. Principalmente, Daniel Andretta, artesão que fabrica artigos de couro, um rapaz simples e intenso com cara de índio e Jorge Puppo, músico magro e vivaz. Ela não tem nenhum preconceito contra as drogas e começam a fumar juntos, sozinhos ou na companhia dos novos amigos.

Hélène também adora Adriana e passa a tratá-la como uma filha. Eles podem usar o quarto de Jacques à vontade.

A PRIMEIRA INTERNAÇÃO EM CLÍNICA

O namoro só é interrompido porque Jacques é internado, durante alguns meses, numa clínica psiquiátrica, para tentar livrar-se do problema das drogas, porém sem muito sucesso. É naquela ocasião que vem parar na mão dele o que viria a ser o livro mais importante de toda a sua vida: “Autobiografia de um Yogi”, de Paramahansa Yogananda, um grande mestre espiritual hindu que está divulgando os benefícios do Yoga no Ocidente através da fundação “Self-Realization Fellowship”, onde as técnicas do Kriya-Yoga são ensinadas em Los Angeles, na Califórnia. O livro obtém uma repercussão mundial, sendo traduzido para mais de 100 idiomas e reimpresso inúmeras vezes. Além de ser fascinante porque descreve as façanhas dos grandes yogis da Índia, como o poder da meditação, a levitação e outros fenômenos completamente desconhecidos no Ocidente, o livro também contém fotos desses personagens tão poderosos quanto enigmáticos. Tudo isto produz um impacto profundo em Jacques que começa a perceber que as suas aspirações de adolescência tinham um embasamento real.

Na clínica, Jacques conhece Nestor, um rapaz muito meigo que é viciado em morfina. Um certo dia, ao cabo de um mês de internação, tremendamente entediados, eles decidem botar fogo em um dos quartos. Quando a diretoria os identifica como sendo os culpados pelo acidente, ela lhes oferece duas opções: a camisa de força ou a expulsão da clínica. Jacques ameaça imediatamente a sua mãe que se suicidará caso o obriguem a ficar de camisa de força e deixa a clínica na mesma hora. Nestor não tem tanta sorte e acaba se jogando de cabeça do alto de um muro, morrendo instantaneamente. Quando Jacques fica sabendo daquele acidente trágico, sonha duas vezes com ele. O primeiro sonho é um dos seus piores pesadelos. O rapaz está numa cela completamente escura, quilômetros de profundidade embaixo da terra. Alguns meses depois, volta a sonhar com ele, mas desta vez Nestor encontra-se num hospital onde está sendo tratado.

Pouco tempo depois, Jacques consegue finalmente completar os seus estudos secundários, mas Adriana engravida, agravando a situação caótica na qual se encontra. Por coincidência, André entra em contato com um centro de Yoga, em San José, pois ele também possui um lado místico. Para Jacques, que está procurando desesperadamente livrar-se das drogas para conseguir começar a viver uma vida saudável, esta mudança de ambiente é a única maneira de escapar da degradação e da morte. Obtém um visto de estudante para poder começar a faculdade enquanto mora no centro de yoga. Hélène encarrega-se de ajudar Adriana a abortar, pois a falta de senso de responsabilidade de Jacques torna este nascimento impossível.

Infelizmente, com este triste episódio, termina um namoro que parecia que iria durar para sempre.

O CENTRO DE YOGA

O centro de yoga, ashram, em hindu, é uma casa espaçosa de dois andares, muito agradável, pintada de branco, tipicamente californiana, com um grande jardim na entrada, que pode albergar uma dúzia de pessoas. Este mundinho é formado pelos veteranos que moram ali há vários anos e por pessoas de passagem que só permanecem lá por algumas semanas, alguns meses ou alguns anos para aprender a técnica de meditação, para fugir da atmosfera sufocante do establishment californiano ou simplesmente por curiosidade. A eles juntam-se, também, durante a noite, os adeptos que desejam relaxar graças às aulas de yoga.

Ele é localizado perto da Silicon Valley, o centro da eletrônica mundial, lotado de engenheiros que haviam chegado para substituir os hippies, que só continuam existindo como relíquias pitorescas. A Califórnia continua rica em contrastes. São Francisco ainda é a capital dos concertos do Blues e do Rock, mas é curioso constatar como esta região, que havia sido, pouco tempo antes, o lar dos “drop-outs”, torna-se de repente a pioneira mundial da tecnologia e dos negócios, reanimando desta maneira o culto americano do crescimento econômico, como uma pessoa que trabalha duas vezes mais duro após ter tomado consciência de ter cometido um erro.

Com base nas suas incessantes leituras, que são o seu oxigênio enquanto espera poder respirar o ar verdadeiro da experiência espiritual autêntica, Jacques entendeu que haviam algumas premissas comuns presentes, tanto nos grandes místicos ascéticos ocidentais como São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila, quanto nos Yogis veneráveis da Índia, como Paramahansa Yogananda, Swami Vivekananda, Sri Ramakrishna ou nos mestres implacáveis do Budismo Zen: a experiência mística manifesta-se sempre através da visão de uma luz de um brilho transcendental, impossível de descrever, assim como a luz natural é invisível ao cego. Em segundo lugar, ela só pode manifestar-se, se for a meta prioritária da existência, o que não é uma coisa simples, considerando a massa gigantesca de condicionamentos físicos, emocionais e mentais aos quais somos submetidos desde o nosso nascimento. Para coroar esta indizível dificuldade, um esforço aparentemente sobre-humano de uma duração indeterminada é necessário, apesar de não garantir a sua realização.

Consequentemente, Jacques adota um novo estilo de vida que começa por uma dieta estritamente vegetariana, um pouco temida no início, mas rapidamente e agradavelmente assimilada, tanto graças ao seu sabor, quanto à leveza que proporciona. A ausência de tentações mundanas também contribui para facilitar a transição. Ele acorda às cinco horas e o dia começa com uma chuveirada e uma sessão de yoga e de concentração sobre a respiração, conectando-se com ela a repetição mental de um mantra cristão, um exercício espiritual chamado “A Oração do Coração”. Esse mantra havia sido inaugurado, há alguns séculos atrás, por peregrinos russos: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Tens Piedade de Mim, Um Pecador”. Esta é a razão pela qual o centro de yoga chama-se “Christananda” (A Beatitude de Cristo), uma mistura do Cristianismo com o Budismo.

O Mestre chama-se Évangelos Alexandrou, mas tudo mundo o apelida de “Baba”, um título honorífico hindu que significa “Pai”. É um grego que havia emigrado para os Estados Unidos, após uma experiência mística extremamente intensa, para divulgar os seus ensinamentos. Ele mesmo é a prova viva disso porque parece uma tocha humana. Sua personalidade vibrante e magnética, seu olhar escuro e intenso, aliados a uma poderosa energia, que nunca evidencia qualquer sinal de cansaço, cativa rapidamente aqueles que entram em contato com ele e, mais ainda, aqueles que moram com ele. Além disso, ele tem um corpo vigoroso e musculoso e uma força de vontade descomunal, pois havia sido soldado durante a juventude. Jacques sente-se imediatamente eletrizado por ele ter tido uma experiência pessoal tão intensa da divindade. Lembra-se do provérbio: “Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece!”. É evidente que Deus havia atendido o seu anelo interior, conseguindo, finalmente, tornar-se o protagonista dos inúmeros livros que havia lido sobre esse assunto, sem nunca ter tido a oportunidade de colocá-los em prática.

O mestre é casado com uma mulher doce e encantadora, mãe de dois meninos e de uma menina, pela qual Jacques apaixona-se, instantaneamente.

Baba tem um discípulo predileto, Photios, que é dedicado a ele incondicionalmente, como um cão ao seu dono. Ele administra a loja de produtos naturais, completando desta maneira o sustento do mestre com os alugueis dos residentes do ashram.

Jacques também havia ido para os Estados Unidos para dar início aos seus estudos universitários. Quando desembarca no ashram, as aulas ainda não começaram. Decide aproveitar esta oportunidade para praticar o mantra da maneira mais intensa possível. Trata-se de repeti-lo, conectando as palavras mentalmente com cada inspiração e cada expiração, sem nunca pular uma única respiração. Seu mestre, que havia conseguido a proeza de repeti-lo durante nove meses a fio sem nenhuma interrupção, alguns anos atrás, havia sido propulsado num oceano de luz durante meses, havendo perdido completamente a noção de tempo.

Jacques fica tão fascinado por esta proeza que decide investir todas as suas forças nesta tentativa, com a firme intenção de não desistir antes de haver vivenciado uma experiência extra-sensorial genuína.

Os eventos desenrolam-se da seguinte maneira. Sua tentativa, que dura, ao todo, três semanas, excluindo qualquer intercambio falado e qualquer contato sexual, culmina em uma viagem astral, num outro quarto do ashram, onde ele tem visão de 360 graus. Quando volta para o corpo, ouve centenas de pássaros piando que o aterrorizam de tal maneira que ele não tem outra saída a não ser interromper a sua prática. Porém, a meta inicial é atingida: existe, de fato, uma outra forma de percepção. As aulas na faculdade, que começarão em breve, o teriam impedido, de qualquer maneira, de prosseguir.

O sentimento de terror que o havia invadido, ao voltar para seu corpo, havia sido benéfico porque é necessário interromper a prática da técnica, que havia exigido dedicar toda a sua energia, num esforço constante de auto superação. Jacques considera que a Providência Divina o tem guiado, já que estaria sentindo-se derrotado se tivesse desistido por falta de força interior. Sente no seu íntimo que tudo desenrolou-se conforme um plano harmonioso. É a razão pela qual inicia seus estudos com um sentimento de plenitude, havendo fornecido o seu esforço máximo para chegar o mais longe possível no caminho da busca espiritual que havia decidido percorrer. É consciente, graças às suas leituras, que a sua experiência só representa o primeiro passo de um longo caminho a ser trilhado. Doravante, ele irá estabelecer um ritmo de vida que permitirá conciliar às suas obrigações universitárias, que não são tão pesadas, com o caminho que passa a considerar, desde que se tornou uma experiência vivida, a verdadeira razão de sua existência. Cumprir com suas obrigações tem se tornado secundário comparativamente com esta dimensão interior que se revelou subitamente a ele, após tantos longos anos de leituras apaixonantes, mas que nunca haviam preenchido a sua fome.

Daqui em diante, Jacques passa a considerar o seu futuro como uma tarefa por tempo indefinido, que irá consistir em manter uma disciplina regular de yoga e de meditação, dando continuidade em paralelo aos estudos. Este programa, que implica num esforço considerável, colocando a ênfase sobre a duração ao invés da intensidade, não é nada fácil de ser levado a cabo por um jovem de 19 anos que se dedica, até aos finais de semana, a intensos retiros espirituais enquanto os seus colegas de estudos só esperam o final da semana para dar renda solta às suas paixões juvenis. É uma época difícil e austera, em todas as áreas da vida. Durante os dois primeiros anos de universidade, não trava nenhuma amizade. Sua perspectiva sobre a vida é muito diferente para que qualquer tipo de afinidade possa se estabelecer.

A estadia prolongada de Jacques no ashram também não lhe permite estabelecer verdadeiras amizades com outros membros do centro porque os americanos não possuem este fundo de ternura que caracteriza os latinos. O lado cerebral predomina sobre o lado emocional. Com o tempo, ele sente-se, mesmo assim, atraído por algumas pessoas, como Georges Chipman. Apesar de nunca o ter conhecido profundamente, sucumbe ao seu encanto. Georges é um homem de 30 anos com um corpo robusto e harmonioso que parece viver a vida como se estivesse cumprindo um ritual em cada um dos seus movimentos, como um grande felino. Emana uma mistura de simplicidade e majestade. Tem cabelos longos e bem cuidados. Quando alisa a sua barba castanho claro e as pontas do seu bigode, que recobrem o seu nobre e amplo rosto, os seus olhos luminosos brilham embaixo da sua ampla testa e ele começa a falar com uma voz suave. Sua presença reina então, soberana, sobre todos os que estão presentes, se doando sem exigir nada em troca. É o suficiente para deixar-se envolver por suas energias positivas. Este é o inesquecível Georges Chipman.

Don Giacobi também o marca profundamente porque é ainda mais enigmático. Moreno, alto, magro, o crânio tosado, ele encarna a própria figura do discípulo zen. Don é um destes seres extremamente raros que fazem da busca espiritual a meta exclusiva da vida. Jacques fica particularmente impressionado ao saber que Don havia começado o seu trabalho interior pela firme determinação de controlar completamente a sexualidade. Jacques ignora como tem conseguido esta proeza que lhe parece tão maluca quanto impossível. No entanto, lembra que vários livros descreviam o controle da sexualidade como sendo o primeiro passo sem o qual é impossível elevar-se espiritualmente, assim como um foguete não pode decolar sem combustível. A renúncia não é a meta final, mas a condição necessária para qualquer progresso espiritual. Estes pré-requisitos o desencorajam e o amedrontam.

Don já atingiu este nível, sendo capaz de se concentrar sem ser perturbado pelas flutuações mentais que distraem os principiantes. Jacques sente-se profundamente desanimado porque sabe que nunca conseguirá domar sua natureza fogosa. A única vez que havia se visto livre de qualquer pensamento sexual havia sido no decorrer da sua primeira tentativa de repetir o mantra porque havia naturalmente bloqueado todos os outros pensamentos. Porém, viver uma vida inteiramente baseada num ascetismo tão rigoroso lhe parece completamente além da sua capacidade.

Don é a única pessoa, durante a estadia no ashram, que Jacques considerará como um ser totalmente atípico, tendo atingido um nível espiritual aparentemente impossível de ser realizado. Don briga com Baba e acaba abrindo seu próprio ashram, confirmando a sua intuição. Dois mestres não podem conviver por muito tempo sob o mesmo teto.

Não há somente homens no ashram. Algumas mulheres também moram lá, mas a vida do ashram é tão orientada para as práticas espirituais que são enxergadas como discípulas, antes de serem mulheres. Ninguém está lá para paquerar. Karen Pitchford, uma jovem inglesa loira, gordinha e piedosa permanece no ashram durante bastante tempo. Jacques nunca conversa com ela porque não sente nenhuma afinidade. Ela parece sem graça. No entanto, um ano mais tarde, uma noite, enquanto encontram-se sozinhos, um sentimento de amor incrivelmente intenso os invade repentinamente. Estão rodeados por uma luz sobrenatural, uma espécie de bolha de amor, incapazes de entender o que está acontecendo. Acabam furiosamente entrelaçados e devorando-se com beijos apaixonados. Esta paixão insólita, que poderia ter acabado em casamento, termina tão rapidamente quanto começou. Ela tem que voltar, pouco tempo depois, para Inglaterra e nunca mais se vem.

Aquele é o único episódio romântico durante os três anos de sua estadia no ashram, tempo que parecerá infinitamente longo, como um imenso purgatório. Contrariamente às disciplinas universitárias, que se caracterizam por metas precisas e pontuais a serem atingidas, a busca espiritual é particularmente ingrata porque só é possível sentir um progresso após um afastamento gradual do mundo, um processo de purificação tão imperceptível quanto doloroso. Jacques, com o passar do tempo, acostuma-se com a rotina do ashram que se transforma na sua vida. A necessidade inicial de experiências extra-sensoriais desaparece. Ele nem se pergunta mais o que está procurando.

É impossível descrever com palavras o que acontece uma certa noite enquanto está se recolhendo para dormir em seu quarto, após um dia como qualquer outro. É suficiente dizer que Deus revela-se finalmente em toda a sua Glória.

Este contato com a energia infinita de Deus lhe dá asas, mas voar para onde? A comunicação com o Eterno havia finalmente sido estabelecida, porém o que fazer com esta luz sobrenatural subitamente entrevista para nunca mais ser esquecida? A subida até o topo da montanha deve ser inevitavelmente o preludio de uma nova descida? Como viver como um fakir quando não se é nascido na Índia? Estas deveriam ter sido as suas preocupações, mas a embriaguez de uma realização tão imprevista quanto grandiosa só deixa lugar à certeza de ter sido escolhido por Deus. A sensação sublime de ter atingido a meta, após tanto tempo, o deixa cego ao ponto de achar que ele já cumpriu a sua missão na Terra!

Naquela época, que marcará a sua vida para sempre, Jacques acaba captando energias negativas vindas do seu mestre e, por um acaso, acaba visitando um centro de cura espiritual. Decide mudar-se para lá. Joseph Martinez, um mestre de cura espiritual filipino, dirige o lugar. Em contraste com a personalidade extrovertida e violenta de Évangelos Alexandrou, ele é um homem que não chama a atenção. De aparência comum, careca e gordinho, ele não faz nenhum tipo de alarde. Tem aproximadamente 35 ou 40 anos, mora sozinho, é solteiro, sem filhos e sempre de bom humor. Ele trabalha com entidades espirituais num pequeno quarto. Jacques fica impressionado pelo seu magnetismo, emanando uma calma que, ao longo dos meses, se manterá imutável.

Jacques faz um curso de uma semana, algumas horas à noite, durante o qual recebe duas entidades espirituais para poder curar as pessoas, mas não sabe se deve acreditar porque não sente nada. Uns meses depois, já tendo deixado o centro, ele sonha com uma visão impactante de um dos seus mestres de cura: um índio de pele clara e cabelos negros e cumpridos. Seu rosto é de uma beleza que transcende os parâmetros do nosso mundo. Emana uma força imensa e uma luz branca brilha atrás dele. Ele aparece, de repente, numa visão na sua frente, sentado na postura de lótus. Infelizmente, Jacques não chegará a aplicar o método.

Este momento coincide dramaticamente com a obrigação crucial de escolher uma profissão porque os dois primeiros anos na faculdade nos Estados Unidos consistem somente em estudos gerais. Na idade na qual o comum dos mortais começa a sonhar em realizar a sua vocação, Jacques já realizou a sua. Tê-la encontrado acaba sendo o drama de sua vida. O que é ainda humanamente possível conquistar para que a vida, que se revelou em toda a sua glória, possa continuar a ter um sentido? É impossível superar o insuperável, sobretudo quando não depende de nós. Só permanece a exaltação cuja força vai diminuindo gradativamente. Uma aterrissagem forçada impõe-se com urgência.

Jacques muda-se novamente para uma fraternidade de estudantes. Num estado de confusão e indecisão totais no qual ele é obrigado a decidir-se, opta por estudar Administração de Empresas, o que será uma escolha fatal. Ele até consegue entender a parte teórica das aulas, mas odeia contabilidade e, sobretudo, fica desnorteado com a parte matemática da Estatística que parece tornar a Economia uma ciência exata. Esta insuperável dificuldade o desestrutura completamente e, pela primeira vez em dois anos, as suas notas começam a despencar, colocando-o na perigosa eventualidade de ter que deixar os Estados Unidos, tendo desperdiçado as somas importantes de dinheiro que seu pai vinha investindo na sua educação e sem nenhum diploma. O choque psicológico é forte demais, tornando a catástrofe inevitável.

A LOUCURA

Poucas pessoas passam pela experiência da loucura. Ela corta a vida em dois, como raros acontecimentos tem o poder de fazê-lo, e somente quando tem-se a sorte de voltar para a normalidade.

Aos 22 anos, Jacques é internado, de emergência, em estado agudo de delírio paranoico.

Até o momento presente, ele havia atravessado todo tipo de sofrimentos e todo tipo de alegrias, das mais prosaicas até as mais sublimes. Porém, esta é a época mais trágica de toda a sua existência, que só pode ser descrita como o momento do sofrimento absoluto, impossível de ser compreendido por nenhum esforço da imaginação, sem se ter passado por ele. Seu sofrimento torna-se absoluto porque o tempo é abolido. Imaginemos a vida interior de um ser que já não seria mais capaz de recorrer ao tempo para poder atenuar psicologicamente seu sofrimento. No nosso estado normal, não temos uma consciência suficientemente clara de que a única maneira de suportar um sofrimento, por mais cruel que seja, é sabendo que ele passará ou se atenuará em algum momento. Um sofrimento manifesta-se simultaneamente nas dimensões espiritual, psicológica e física de um ser humano.

Algumas pessoas duvidam que seja realmente possível atingir nesta vida um nível de sofrimento que parece estranhamente com a imagem popular do inferno eterno porque um Deus que condenaria uma criatura a um sofrimento eterno deixaria de ser Deus. Todavia, quando a barreira que separa o inconsciente do consciente se rompe, o mental é subitamente invadido pelas forças tenebrosas do inconsciente, que tem o poder de escurecer completamente a percepção habitual que uma pessoa mentalmente saudável possui do mundo, cortando-a literalmente do mundo exterior, tanto na dimensão do espaço, que se torna o cenário de alucinações incontroláveis, quanto na dimensão do tempo, ainda muito mais aterrorizante, porque o sofrimento torna-se atemporal. O sofrimento espiritual, por sua vez, consiste na sensação e na certeza de encontrar-se no inferno eterno, já em vida.

Apesar de tudo, ainda existe uma sensação de continuidade neste estado de aniquilação do consciente pelas trevas do inconsciente. É o fato de que Jacques lembra-se de todos os seus sofrimentos. Caminhar descalço sobre um chão coberto por cacos de vidro, ser atacado por morcegos que querem furar seus olhos, ter certeza de que morrerá, pois suas tripas acabarão explodindo porque a dor de não poder evacuar aumenta a cada instante, como uma mulher que está prestes a dar à luz, achar que encontra-se num campo de concentração, esperando a qualquer segundo seu carrasco que não vê a hora de torturá-lo com mil requintes de crueldade.

Como Jacques consegue, de repente, ter a lucidez necessária para tomar consciência de que ainda existe uma saída, uma única saída, ao seu sofrimento infinito, nem ele é capaz de explicá-lo! É como se o inconsciente possuísse a sua própria capacidade de resiliência, além da qual desperta-se naturalmente um mecanismo misterioso. Esta saída é, evidentemente, o suicídio. A partir do segundo no qual esta ideia atravessa a sua mente, ele não para de pensar um segundo na maneira de concretizar o seu projeto. E encontra, rapidamente uma solução: o hospital é um prédio muito alto, de pelo menos 30 andares. Se ele conseguir sair do pavilhão e pegar o elevador sem ser visto, se as janelas do hospital não estiverem hermeticamente seladas, então a sua liberdade estará garantida. Sinistro golpe do destino que faz um ser que havia dedicado corpo e alma à conquista da vida eterna ser condenado a morrer através do pecado contra Deus por excelência. O relógio na parede da cozinha indica cinco horas da tarde: a hora de sua morte. Que alívio quando consegue entrar no elevador para chegar ao último andar! Que felicidade constatar que as janelas estão abertas! Sem pensar um único instante, ele está para se jogar pela primeira janela disponível quando algo totalmente imprevisto acontece. Naquele preciso momento, um médico, que ele havia consultado seis anos antes, num bairro distante do hospital, para sarar de uma gripe, sai do elevador. Doutor Harris o segura gentilmente pelo ombro, num abraço acolhedor, sem pronunciar uma única palavra. Se tivesse sido perseguido pelos enfermeiros do hospital, Jacques teria pulado no vazio, mas a afabilidade do Doutor Harris é tamanha que ele se deixa levar sem oferecer nenhuma resistência. Da mesma maneira como aquele médico apareceu, ele desaparece, sem que Jacques pudesse saber como. Ele nem se lembra como consegue voltar para o seu pavilhão. A partir deste momento, seus sintomas começam a diminuir gradativamente. Ele é transferido, pouco tempo depois, para um hospital campestre no qual os pacientes fazem trabalhos de jardinagem durante o dia e algumas sessões semanais de psicoterapia. Após a sua chegada, Jacques recebe duas mensagens. A primeira é uma ligação telefónica do seu pai que o informa, de uma maneira seca e taxativa, que ele tem um prazo de somente três meses para se recuperar. Jacques pressente duas boas razões por trás desta advertência. Uma razão objetiva, devida ao alto custo do tratamento, e um motivo mais interior, ditado pela sabedoria duramente adquirida do seu pai: só se combatem os rigores da vida sendo duro consigo mesmo e, tratando-se de sobrevivência, uma meta precisa é indispensável. Seu pai também explica a Jacques que ele passou por uma ferida mental e que milhões de pessoas já atravessaram guerras e campos de detenção, pois conhece muito bem o ponto fraco do seu filho: a indulgência diante do prazer. A seguinte mensagem também chega através de uma tia, irmã de sua mãe, que havia consultado um padre da igreja: “Jacques será salvo, se assim ele o quiser”. Exortação encorajadora, porém, também tremendamente ameaçadora por estar vindo diretamente de Deus. Encorajadora porque Deus lhe transmite que ele ainda podia ser salvo, mas terrível porque fica claro que ele só poderá, doravante, contar com os seus próprios esforços. Jacques sente nitidamente que, daqui em diante, as consequências dos seus atos não o afetarão somente neste mundo, mas também e, sobretudo, no mundo da eternidade, que estão indissoluvelmente interligados.

Nas primeiras noites, assim que adormece, sonha que se afoga e acorda terrivelmente angustiado, aterrorizado pela ideia de ter que dormir novamente. Porém, aos poucos, graças a esforços constantes, seu consciente retoma o controle da realidade. São necessários vários meses para recuperar plenamente o uso da razão e para tomar a decisão de viver, daí em diante, da única maneira possível, enfrentando a dura luta pela vida. O chamado original de Deus transforma-se, subitamente, numa ordem categórica de rejeitar qualquer misticismo.

UMA PROFISSÃO

Aos 23 anos, Jacques torna-se, finalmente, um homem. Graças aos seus esforços ininterruptos, a transição efetua-se de uma maneira harmoniosa porque a segunda irmã de sua mãe o acolhe na sua casa, em Buenos Aires. Ele inicia sua vida profissional, cercado de alguns primos com os quais havia criado vínculos afetivos durante a infância e com os quais irá conviver antes de ir morar sozinho.

É a época mágica do início da tecnologia e da informática, os anos 1980. Os primeiros computadores pessoais, rudimentares, mas eficientes, o fascinam instantaneamente. Ele entra em contato com profissionais de alto gabarito, sacerdotes da modernidade. Emana destas pessoas a luz diáfana da inteligência criativa, este poder longamente sonhado pelo homem sobre a máquina para realizar tarefas infinitamente mais rápidas e mais complexas do que aquelas que haviam sido realizadas desde o começo dos tempos. Apesar de serem somente máquinas, sente-se como um deus quando cria os seus códigos, assim como ele descobrirá, bem mais tarde, que o Eterno o havia feito no Livro que havia legado aos homens para orientá-los a caminhar em Suas vias.

Não há mais tempo para cursar uma faculdade. Felizmente, aparece um atalho através do qual ele poderá começar a trabalhar num cargo bom em uma multinacional. Naquela época, existiam os cursos IBM que exigiam seis meses de preparação em casa. Após estudar duro, ele consegue ser admitido e passa a trabalhar como Engenheiro de Sistemas. É uma proeza para quem estava, somente um ano atrás, num estado de demência absoluta!

Após um ano, deixa a casa de sua tia e convida um amigo para morar com ele. É a fase dos solteiros desimpedidos. Eles só pensam em mulheres e em preservar a sua liberdade. É um período de altos e baixos, alguns namoros duram mais, outros menos, mas a disciplina do trabalho torna-se um eixo sólido que permite equilibrar-se. Após um tempo, o seu amigo acaba casando e ele volta a morar sozinho.

Insatisfeito com este cargo técnico-comercial, Jacques, fascinado pela parte técnica da Informática, pede para ser transferido para o setor de Programação. Infelizmente, a sede da Programação fica fora de Buenos Aires e um ônibus passa todas as manhãs, na sua casa, às seis horas, para buscá-lo. Como nunca suportou acordar e nem dormir cedo, ao cabo de um ano, esgotado, acaba se demitindo. Mais tarde, ele se arrependerá de ter trocado o seu cargo inicial porque o setor técnico-comercial era o setor mais promissor financeiramente e com as maiores possibilidades de ascensão na carreira. Teria chegado ao cargo de diretor da IBM.

Todavia, ele aproveita estas viagens matinais para estudar Astrologia, a sua nova paixão. Após dominar a arte da interpretação astrológica, trabalha dois anos como astrólogo. A cada mapa astral ele fica maravilhado porque suas interpretações são sempre muito acertadas. Porém, o retorno financeiro é insuficiente e a sua hipersensibilidade o deixa vulnerável às energias negativas dos consultantes. Consegue sobreviver graças a uma ajuda do seu pai.

Aos 27 anos, ele se apaixona por Raquel, uma morena bonita de olhos claros que, apesar de ter 12 anos a mais que ele, parece ser uma eterna criança. É uma relação completamente diferente das outras porque o erotismo é expressado através de carinhos ao invés de vias carnais. Ela curte meditação e homeopatia, sendo inteligente, sem ser intelectual. Durante dois anos, tornam-se inseparáveis.

A RECAÍDA

Faz sete anos que Jacques está afastado das drogas. Ele tem plena consciência de que elas foram a causa parcial do seu terrível acidente mental. Graças ao trabalho, consegue viver uma vida saudável e tem certeza que, após tanto tempo, a perturbação decorrente de sua tumultuada adolescência está superada. Sente um orgulho merecido por ter, finalmente, vencido a batalha mais dura de sua vida.

Todavia, começa a sentir um mal-estar crescente, no começo quase imperceptível, porque sua vida, no fundo, está tomando um rumo sem perspectiva. Está namorando uma mulher que, em breve, será muito mais velha do que ele e não poderá lhe dar filhos. Ao desistir da Informática e da Astrologia, ele também se perdeu profissionalmente. Uma noite, ela o pega em flagrante com uma paquera, no seu apartamento. Este deslize, sem importância para ele, provoca a ruptura do relacionamento por parte dela.

Jacques fica muito abalado com o fim do namoro, mas, por outro lado, a banda de Blues-Rock que havia montado com alguns amigos, “Religião Líquida”, na qual ele é tecladista, é um sucesso. Criar sempre foi e sempre será a sua maior alegria.

Naquela época, a cocaína começa a circular em Buenos Aires e todos os seus amigos começam a fazer uso dela, principalmente os que são músicos. Como é uma droga que ele desconhece, acaba experimentando. A sensação de êxtase é instantânea e avassaladora.

Pouco tempo depois, Raquel o procura e o namoro decola novamente. Durante um mês, eles passam todas as noites cheirando e fazendo amor. Após um sério mal-estar, Raquel descobre um câncer no útero que conjuntamente com o estado mental de Jacques acaba provocando o corte definitivo da relação. Aquele período será o último reencontro, um tipo de despedida em grande estilo.

Assim como o vegetarianismo o havia purificado de anos de maconha e L.S.D., Jacques, para largar a cocaína, acaba virando macrobiótico, uma maneira muito mais drástica de efetuar uma limpeza rápida do organismo. Para isto, ele precisa das orientações de um profissional porque a macrobiótica é uma verdadeira ciência dietética, que visa equilibrar o Yin e o Yang, na alimentação. Os tipos de alimentos e o tamanho das porções são minuciosamente calculados. A desintoxicação exige um sacrifício, mas evita a síndrome de abstinência.

Uma noite, ele tem, num sonho, uma experiência astral na qual é propulsado para cima com a força de um foguete. Após alguns meses, lhe é recomendado a reduzir a ingestão de líquidos.

Alguns dias mais tarde, Jacques acorda no meio da noite com uma câimbra dos músculos abdominais, como se houvesse, dentro da sua barriga, uma barra de aço vertical que quase o impede de respirar.

Como o seu padrasto havia sido promovido ao cargo de Presidente da América Latina, ele e sua mãe haviam se mudado para o Brasil, alguns anos atrás. Num ataque de pânico, Jacques liga para uma prima, a única família que lhe resta em Buenos Aires, e é socorrido. Quando sua mãe fica sabendo do ocorrido, ela sente que, mais uma vez, ele está na beira do abismo. Ela embarca no primeiro avião para Buenos Aires.

Jacques é internado durante um mês numa clínica em Paris. Sentindo-se muito sozinho e desorientado, é decidido, de comum acordo, que ele irá morar no Brasil, pois é um país que oferece muito mais oportunidades de trabalho. A Argentina está em franca decadência, e, no Brasil, ele estará mais perto de sua mãe.

Aos 30 anos, Jacques desembarca em São Paulo para empreender mais uma jornada num país desconhecido, sem sequer saber o português.

BRASIL

Jacques fica, durante o primeiro ano, na casa de sua mãe. É um ambiente bem diferente daquele no qual eles conviveram, vinte anos atrás. Seu padrasto está quase se aposentando e sua mãe também amadureceu. A acolhida é muito calorosa para todos. Só agora, ele terá a oportunidade de conhecer o lado afável de seu padrasto, assim como havia acontecido com seu pai, dezesseis anos após o seu nascimento.

Após três meses de aulas diárias, consegue dominar a língua portuguesa, muito parecida com o espanhol. Obtém um visto de residente permanente no Brasil.

Dedica-se sem trégua ao trabalho, lembrando uma frase do seu pai: “O sucesso só é atingido até os 40 anos de idade!”. Jacques tem dez anos para provar que é capaz de vencer na vida.

A única saída é voltar para a Informática. Um desafio interessante apresenta-se rapidamente: desenvolver do zero um sistema completo para Novotel, uma rede de hotéis francesa. Nessa empresa, ele conhece Guilherme Sodré, um jovem de 24 anos, que lidera o projeto. Os dois, sozinhos, levam a cabo esta tarefa colossal num prazo de dois anos. Jacques sente-se imediatamente atraído por sua personalidade magnética. Tornam-se amigos rapidamente. Guilherme é um rapaz alto, simpático, bonito, inteligente e dotado de uma força de vontade excepcional, que além de estudar e trabalhar, ainda encontra tempo para dedicar-se ao esporte, que é a sua paixão.

Guilherme é o sobrinho do dono do projeto, Ernesto Haberkorn, sócio de uma empresa de Software chamada Microsiga que está começando a se desenvolver e acabará tornando-se uma das maiores empresas de Software do Brasil.

À medida que o tempo passa, os laços de amizade entre os jovens estreitam-se cada vez mais. O pai de Guilherme é um advogado bem sucedido e tem uma fazenda em Rio Claro, a duas horas de carro, de São Paulo. Jacques é convidado para passar um final de semana na fazenda.

Guilherme o apresenta a sua moto, o acomoda em cima dela, ensina como trocar as marchas e Jacques fica fascinado com este novo esporte que, para ele, só perde para o esqui na neve. O motocross torna-se, então, uma fonte inesgotável de prazer e Jacques se vê impelido a comprar a sua própria moto, uma Yamaha 250.

Um dia, Jaques, Guilherme e um outro amigo decidem tentar uma aventura única: transportando suas motos em uma carreta, eles vão até Monte Verde e saem de lá até Visconde de Mauá. Partem cedinho, param só para almoçar e chegam à noite, exaustos e gloriosos. Um dia inteiro em cima das motos. Esta perseguição ininterrupta em trio, atravessando rios e montanhas, torna-se uma lembrança eterna para os três companheiros.

Quando Jacques termina o projeto Novotel, ele tem que tomar uma decisão: continuar trabalhando na Microsiga, recebendo um salário que não está compensando, ou procurar um outro emprego. Acaba sendo admitido na mutinacional francesa, Brasil Seguros, para liderar o desenvolvimento de um sistema para Corretoras de Seguros. Ganha finalmente um salário digno e consegue terminar o projeto em dois anos. Graças à eficácia do sistema, ele é promovido para Gerente de Marketing. É um ramo no qual ele não tem nenhuma experiência. Ao cabo de um ano, um diretor puxa o seu tapete e ele acaba sendo demitido.

Mas voltemos a falar da sua vida afetiva.

Por ser um período de adaptação, o primeiro ano de Jacques no Brasil caracteriza-se por paixões intensas e efémeras. Na escola de idiomas na qual está aprendendo o português, apaixona-se por Kirsten, uma jovem alemã bonita e alegre. Porém, ela é mais sentimental do que fogosa. A relação dura somente o tempo do curso. Após algumas aventuras que não deixam nenhuma lembrança, o ano encerra-se com o namoro com Ana Maria, uma morena malhada, professora de Ginástica do Clube Paulistano do qual a sua mãe é sócia. No começo, a paixão bate forte, mas ela quer o convencer de se tornar Professor de Educação Física, igual a ela. Jacques é um intelectual que odeia a atividade física desde a sua infância, excetuando o esqui na neve, o tênis que ele aprendeu com o seu padrasto e o motocross que o cativará pouco tempo depois. Ele sabe que o seu forte é sua inteligência, sem a qual ele sente-se um incapaz. Instintivamente, afasta-se dela apesar da sua insistência em querer prolongar a relação.

Aos 31 anos, Jacques sai numa noitada com um amigo durante a qual conhece Maria de Lourdes, Lourdinha, pela qual apaixona-se. É uma loira delicada, sensível, de origem humilde. Ela tem seis anos a mais do que ele. Vem de uma família unida. Seus pais vem da roça, são casados há 50 anos, tem três filhas e um filho homem. Conhece logo o pai dela, um senhor de idade, doce e gentil porém vigoroso e lúcido com aparência de ditador Sul Americano.

A paixão dura três meses. O tesão diminui subitamente. Jacques precisa decidir-se entre partir para mais uma conquista ou ficar com ela. O sentimento de abandono prematuro o tornou particularmente sensível aos cortes. É o seu calcanhar de Aquiles. Apesar da perda súbita de atração, opta em permanecer com ela. A situação é estranhamente parecida com a relação com Raquel, outra mulher mais velha com a qual havia trocado sexo por afeto.

Lourdes tem um laço muito forte com Neli, sua irmã predileta, casada com William. Ele nasceu um dia depois do pai do Jacques que o acha, em muitos aspectos, parecido com ele: inteligente, trabalhador, honesto, transparente, sistemático e simpático. Williams não tem amigos. Vive para sua mulher. Inicia-se uma amizade sólida, íntima e duradoura.

Após um ano de namoro, Jacques e Lourdes decidem morar juntos. Ela se muda para o apartamento que os pais de Jacques haviam comprado no bairro da Santa Cecilia para lhe dar um empurrão na sua nova vida no Brasil. Lourdes trabalha há 25 anos, desde os 12 anos de idade, numa salinha alugada, como cabeleireira.

A relação, apesar da falta de estímulo sexual, traz muita paz e tranquilidade para Jacques que precisa delas para dedicar-se a um trabalho que exige um esforço mental considerável e uma atenção constante aos detalhes com o objetivo de triunfar financeiramente.

Um ano mais tarde, conhecerá Regina, uma funcionária do setor administrativo da Brasil Seguros. É uma morena de apenas 18 anos, com 20 quilos acima do peso, mas o rosto dela é fino e atraente. Transam uma vez, mas a falta de assunto põe um fim súbito a este encontro fugaz.

Quando Jacques é mandado embora da Brasil Seguros, após sua ascensão e sua queda meteóricas da Gerencia do Marketing, ele tem que optar entre continuar a trabalhar em empresas Multinacionais que oferecem estabilidade mas poucas oportunidades de progresso ou, senão, abrir sua própria firma. Ele tem 33 anos.

Junta coragem e abre uma Micro Empresa, a Prestígio Informática, que fornecerá serviços informatizados para Corretoras de Seguros. Apesar de não possuir nenhum capital, Jacques tem todo o conhecimento para viabilizar o projeto. Nada se cria, tudo se copia. Contrata um programador, o filho do motorista da sua mãe, Cristiano, que está precisando trabalhar para poder pagar a faculdade de Ciências da Computação.

Após um árduo trabalho de elaboração, o sistema está pronto para ser apresentado às corretoras de seguros de São Paulo. Jacques encarrega-se da parte comercial enquanto Cristiano cuida da programação. Agenda quatro demonstrações por dia, duas de manhã e duas à tarde. Conseguem vender um sistema por semana. Naquela época, São Paulo ainda era uma cidade viável, sem trânsito e sem multas. A Prestigio cresce rapidamente. Para não depender somente das vendas e garantir uma entrada fixa de dinheiro, é oferecido aos corretores, mediante uma taxa, a possibilidade de fazer um contra mensal de manutenção que lhes garante o acesso às versões atualizadas do sistema. Quando uma corretora precisa de uma alteração personalizada, é cobrada a hora de programação. Após alguns meses, é necessário contratar mais um programador, Nelson, um jovem japonês, e mais uma pessoa para cuidar da instalação das atualizações porque a Internet ainda não existe.

Jacques nunca trabalhou tanto em toda a sua vida, mas nunca foi tão feliz profissionalmente. A sensação de ver uma criação sua tomar vida e desenvolver-se ao longo do tempo é indescritível, apesar do retorno financeiro que somente lhe permitir sobreviver.

É nessa época que Jacques sente, pela primeira vez, o desejo de ter filhos. Após algumas tentativas frustradas, eles descobrem que Lourdes é estéril. Fazem algumas tentativas de inseminação artificial, mas elas fracassam.

Após anos de trabalho intenso, o Banco do Brasil entra em contato com ele com o propósito de instalar o S.I.S. (Sistema Informatizado para Corretoras de Seguros) em todas as suas agências. O momento tão sonhado chega, inesperadamente, através de uma simples ligação telefônica. Jacques atinge a meta tão almejada aos 37 anos.

A GRANDE VIRADA

Siméon Denis Poisson (1781-1840), brilhante matemático francês, demonstrou que os eventos acontecem em pares. Enquanto Newton, na Inglaterra, estava elaborando o cálculo integral-diferencial que permite calcular a superfície de uma área dentro de uma curva, Leibniz fazia a mesma descoberta na Alemanha.

Após uma vida de lutas, André, aos 50 anos, consegue finalmente atingir a meta que pensava atingir aos 40. Está trabalhando na Apple Computers, dirigida por Steve Jobs, e funda a Eurapple, que oferece distribuição exclusiva dos computadores da Apple para a Europa e a América do Sul. É um sucesso tardio, mas estrondoso.

Na mesma semana em que Jacques participa de uma reunião com um diretor do Banco do Brasil para discutir a instalação do S.I.S. nas corretoras de seguros, recebe uma ligação de seu pai, dos Estados-Unidos, anunciando que pretende lhe deixar uma herança em vida. Ambos, então, se encontram na Suíça para abrir uma conta na qual será depositada uma quantia de US$ 750.000, além de uma mesada mensal de US$ 10.000 que garante que o capital permanecerá intocado, rendendo juros.

Seus problemas econômicos estão definitivamente resolvidos, assim como os dos seus eventuais filhos e netos. Após uma luta acirrada de quatorze anos, esta vitória súbita age como catalisador dos seus desejos inconscientes reprimidos e sublimados devido à necessidade de sobrevivência, a falta de atração por Lourdes e a impossibilidade de ter uma descendência. Jacques, confuso pela mudança tão brusca, consulta uma vidente, leitora de mãos, que revela que uma mudança emocional está prestes a transformar a sua vida.

Tolstoï, na sua obra imortal “Guerra e Paz”, explica que Napoleão não foi a verdadeira causa do cataclismo que devastou a Europa, indo até as fronteiras da Rússia, provocando milhões de mortes. Os motivos foram os milhares de pequenos fatos que acabaram se cristalizando numa conjuntura histórica da qual Napoleão somente fazia parte. Enquanto Napoleão estava conquistando o mundo, quem podia prever que a Rússia destruiria todos seus anseios e que sua queda estava próxima. Veremos como a sequência de acontecimentos posteriores ao recebimento da herança confirmam esta misteriosa trama da vida. Acontecimentos interiores encobrem-se através de acontecimentos exteriores, assim como a roupa encobre o corpo e o corpo esconde a alma.

Jacques, para se divertir, decide ligar para Regina, seis anos após o primeiro encontro deles. Se Regina estivesse resfriada aquele dia, se estivesse namorando ou simplesmente decidisse desligar o telefone na cara dele, assim como ele a havia descartado após um fugaz momento de prazer, nada teria acontecido entre eles.

Eles marcam um encontro. Jacques fica surpreso quando vê que a menina obesa de 18 anos havia se transformado numa mulher sensual de 24 anos. A atração é instantânea e acabam rapidamente indo para um motel. Regina está trabalhando na Ericsson, uma empresa sueca de telecomunicações. Jacques começa a buscá-la regularmente de carro, na saída do trabalho, no final da tarde e vão direto para o motel. Após algumas horas de intensa paixão, costuma deixá-la na faculdade, onde ela estuda Economia. Esse horário é conveniente porque ele chega em casa na hora do jantar e Lourdes não suspeita de nada.

Ao cabo de três meses, Regina, está cansada de uma relação exclusivamente baseada em sexo. Ele, também, no fundo, preferiria curtir mais aventuras com ela, mas está com medo de perder a Lourdinha que lhe deu tanto apoio e carinho durante os tempos de luta. O conflito é grande, mas Jacques acaba cedendo. Passam o primeiro final de semana numa bela pousada. Para Regina, que também vem de uma família humilde, esse passeio improvisado é um descanso e um luxo. Mas, seu temperamento orgulhoso não a deixa transparecer nada. Afinal, ela é uma garota esforçada que fez por merecer. Este será o primeiro de uma série de viagens românticas.

Jacques não precisa se preocupar como preço da diária e nem das refeições. O dinheiro está sobrando! Sua única preocupação é inventar desculpas profissionais para não magoar Lourdes. Sente-se culpado, mas não consegue mais segurar a sua necessidade de prazer, postergada durante tanto tempo. Precisa aproveitar agora enquanto é jovem e abastado.

Jacques está, pela segunda vez, há sete anos sem usar nenhuma droga. Não sente, desta vez, a mesma sensação de orgulho que sentiu a primeira vez que conseguiu largá-las porque sabe por experiência própria que a recaída pode acontecer a qualquer momento. Sua nova situação financeira traz um alívio súbito da pressão ininterrupta de tantos anos de trabalho duro e uma necessidade de desfrutar a vida. Por não ter achado ainda uma nova atividade, há tempo de sobra para relaxar e se divertir. A cocaína está começando a circular no Brasil. Já haviam se passado quase dez anos desde o seu drama com Raquel. Como lembrava-se muito bem da situação extrema pela qual havia passado, tem plena consciência de que não é uma droga que pode ser usada todos os dias à semelhança da maconha. Começa a usá-la esporadicamente com alguns amigos de confiança. Na mesma época, reencontra Cristian, um sobrinho da Lourdes que havia conhecido quando tinha 10 anos. Cristian também cheira de vez em quando porque o custo é muito acessível. Acaba virando mais um companheiro de noitada.

Jacques consegue prolongar esta situação de infidelidade durante dois anos. Mas, com o passar do tempo, Regina exige que ele esteja presente também durante as férias. Já não é mais possível recorrer à desculpa dos compromissos de trabalho, mas Jacques está num embalo impossível de ser freado. A sua empolgação é tão grande que nem se preocupa mais em disfarçar. No último minuto, desmarca todos os compromissos de Natal e Ano Novo com Lourdinha para poder viajar com Regina. Agora, Lourdinha sabe que Jacques a está traindo, mas acredita que o carinho mútuo de tantos anos acabará trazendo-o de volta.

Após dois anos de intensa paixão, Jacques, com quase 40 anos, volta a sentir uma necessidade imperiosa de ter filhos. Sente que este filho tem que ser de Regina, pois o amor entre eles só pode culminar agora com o nascimento de uma criança, mas continua morando com Lourdinha. O certo seria primeiro separar-se dela e casar-se com Regina para finalmente terem um filho. Veremos mais adiante porque as coisas não aconteceram dessa maneira.

Regina já havia passado por dois abortos no começo da relação. Um belo dia, enquanto estão passeando de mãos dadas no horto florestal, Jacques comenta, pela primeira vez, que o seu maior desejo é ter um filho dela. Regina, então, para de tomar pílula e, um mês depois, engravida pela terceira vez. Jacques, mais uma vez, recua diante da perspectiva de ter que deixar Lourdinha. Regina fica enfurecida. Desta vez, não somente não abortará, mas explica que se ele quiser tirar esta criança, terá que depositar o valor correspondente a um carro importado em sua conta. Tudo isso em uma conversa por telefone. Jacques não consegue acreditar no que está ouvindo. Esta ameaça financeira é tão sórdida que o deixa paralisado. Nunca havia lidado com uma situação deste tipo, sente-se profundamente perdido, como se uma sombra imensa estivesse penetrando na sua alma. Aquela luz da progenitura tão longamente desejada transforma-se, num piscar de olhos, num cenário sombrio e ameaçador, misturando a inocência perfeita de uma criança com o vil metal.

Para poder refletir sobre o assunto, afasta-se durante um mês de Regina. Finalmente, ele aparece de surpresa na saída da faculdade, onde confirma, ao ver a barriga levemente inchada, que ela está realmente grávida e com a firme intenção de ir até o fim. A emoção fala mais alto, decide separar-se de Lourdes e acompanhar a gravidez junto com ela. Se alguma coisa acontecesse com esta criança por ele estar ausente, não se perdoaria nunca. Decide alugar uma casa na Serra da Cantareira. Lourdes, por sua vez, fica devastada com a notícia.

A GRAVIDEZ

Aos cinco meses de gravidez, Jacques, mais feliz do que nunca, decide presentear Regina com uma viagem para Veneza. É a primeira vez que viajam para fora do Brasil. Passam primeiro por Paris, onde ele aproveita para visitar a família do lado paterno.

Veneza é o lugar perfeito para casais apaixonados. Esta cidade flutuante, cheia de ruelas e pontes antigas, de aspecto medieval, os deixam cativados. Os restaurantes são deliciosos. O quarto do hotel, com banheira de imersão é delicadamente decorado. Jacques guardará uma lembrança eterna desta viagem mágica.

Quando voltam para São Paulo, Jacques assiste ao parto que é bem sucedido. É uma menina: Isabelle! O seu sonho!

Apesar de não ter nenhuma obrigação legal com Lourdes porque eram casados em regime de separação total de bens, Jacques sente-se na obrigação moral de compensá-la por tantos anos de companheirismo. Compra uma casa em Perdizes, onde ela poderá abrir seu próprio salão de beleza e alugar salas comerciais para ter uma renda fixa. A sua consciência está em paz, porém é o início de uma sucessão de erros: deveria ter alugado a casa, ao invés de comprar, para não mexer no seu capital.

Após o nascimento da criança, conflitos íntimos começam a aparecer. A frieza de Regina, durante a fase da paixão, costumava manifestar-se sob a forma de piadas irônicas que Jacques achava engraçadas porque fazia-o lembrar-se de André. Havia lido, um dia, que o prazer não é um estado, mas a passagem de um estado para outro. Agora que a criança havia nascido e que estavam morando juntos, como marido e mulher, a passagem para um outro estado não é mais possível porque chegaram a uma estabilidade definitiva na qual a única mudança possível é o crescimento da criança. A casa parece mais com uma empresa do que com um lar. Preocupada principalmente com o seu progresso profissional, Regina está contemplando a possibilidade de dar continuidade aos seus estudos, fazendo um M.B.A., de preferência nos Estados Unidos. Seu lado hiperativo, que havia fascinado Jacques durante a fase da paixão, está agora a serviço das suas ambições profissionais.

Jacques havia repassado a Prestigio Informática para os ex-funcionários porque o diretor do Banco do Brasil nunca mais havia entrado em contato com ele. Após tantos anos dedicados a resolver problemas complexos de informática, começa a considerar uma mudança de profissão, mas não consegue decidir para qual seria. Regina, do seu lado, sabe exatamente o que quer: preparar-se o melhor possível academicamente para conseguir “dar um chute na pobreza”. Jacques sente-se repentinamente atingido em sua masculinidade ao constatar que havia subestimado a menina indefesa que conhecera e que ela havia se tornado uma mulher com um poderoso potencial. Fica sem fôlego tentando alcançá-la numa corrida desenfreada, tornada ainda mais absurda pelo fato de já ter alcançado uma estabilidade financeira.

Quando percebe que esta situação não vai mudar, na véspera do dia em que precisa assinar os papéis do divórcio com Lourdes, vai até o apartamento dela, desaba em prantos e passa a noite com ela. No dia seguinte, volta para a casa que haviam alugado, aproveita que Regina está no trabalho para levar todas as suas coisas. Isabelle está só com dois meses de idade.

REGRESSÃO

O reencontro com Lourdes é carinhoso e Jacques não vê outra saída a não ser voltar a morar com ela. Pouco tempo depois, ele começa a sentir uma falta intensa de Regina. Estava acostumado a alternar entre as duas. Mas, desta vez, Regina permanece inflexível. O choque é tamanho que lhe dá a sensação de ter batido contra uma parede com um carro de formula I. Uma noite, sonha que cai da janela, quebrando todos os ossos. A depressão é tão severa que fica engatinhando no chão do apartamento. Demora duas semanas para poder ficar de pé.

Para Jacques, é uma fase extremamente conturbada. A exaltação provocada pelo nascimento do primeiro filho, aos 40 anos, é contrariada pelo temperamento frio de Regina, que não havia conseguido identificar enquanto estava apaixonado. Pensamentos suicidas o invadem novamente porque pressente que a luta será dura e longa.

Regina, por sua vez, o culpa por ter “acabado com a vida dela”. Aos 27 anos, ela tem que cuidar da filha recém nascida. Felizmente, sua mãe, Edileusa, se encarregará de cuidar da criança enquanto Regina trabalha. Após superar o choque inicial, uma pensão generosa é fixada pelo juiz. Em troca, Jacques adquire o direito de visitar sua filha todos os dias, à tarde. A menina é linda, carinhosa e engraçada, um verdadeiro presente de Deus que encanta tudo mundo. Quando Jacques dá a mamadeira à sua filha pela primeira vez, ela lhe lança um olhar que ele nunca esquecerá. Isabelle será a sua razão de viver durante os próximos dez anos. Encontra, finalmente, a nova profissão que estava procurando: pai.

A atração que sente por Regina ainda é forte. Demorará seis anos para desligar-se completamente dela. Hélène, emocionada em tornar-se avó, após quase ter perdido as esperanças, visita a neta uma vez por semana. Edileusa é carinhosa, de bom coração e facilita sempre o contato com a criança. Jacques não conseguiu ser um bom esposo, nem para Lourdes e nem para Regina, mas faz questão de ser um pai muito presente para a sua filha. Decide ser o pai que não teve. O grande problema são as férias. Regina demorará alguns anos para liberar o acesso à filha durante esses períodos, causando sofrimento à família inteira.

No fim, Jacques está com Lourdes que, além da traição, tem que aguentar a filha da amante. Após ter ficado neste fogo cruzado de mulheres, aprende uma lição que nunca esquecerá: namorar duas mulheres ao mesmo tempo, nunca mais!

UMA VERDADE INCONVENIENTE

Após ficar rico, André havia decidido abandonar os negócios para cursar um doutorado em Teologia porque havia se convertido ao Catolicismo. Jacques costumava viajar para visitar seu pai uma vez a cada dois anos, por alguns dias. O momento chega. Viaja para Nashville, no Tennessee, onde André está morando e exerce suas funções de Professor de Teologia, na universidade.

Jacques aproveita a visita para contar todos os seus percalços com Regina. André lhe aconselha a procurar uma outra mulher, já que nenhum dos relacionamentos anteriores havia dado certo, mas Jacques tenta explicar que não consegue ficar sozinho.

André, que havia sofrido um infarto alguns anos antes, decide pegar uma amostra de saliva do seu filho para ter certeza de que ele não sofre de fraqueza cardíaca e poder assim, evitar que passe pelo mesmo trauma que ele passou.

Quando chega ao Brasil, Lourdes aproveita a volta de Jacques, agora um homem rico, para induzi-lo a investir em imóveis. Compram um sítio perto da cidade de Itu, a uma hora de São Paulo. É uma propriedade de 30.000 metros quadrados num conjunto de chácaras com uma sede magnífica de 300 metros quadrados, cinco suítes, uma ampla cozinha, uma sala imensa com lareira, piscina e uma vista esplêndida.

Depois, decidem comprar uma casa no Parque dos Príncipes, um condomínio fechado, para poder receber André com sua segunda esposa, Suzanne, e a filha, Nathalie, que virão conhecer a neta.

O patrimônio de Jacques, na Suíça, está se esgotando rapidamente, mas ele está investido em imóveis que têm a vantagem de poderem ser aproveitados. De qualquer maneira, quem precisa de tanto dinheiro quando a mesada já é mais do que suficiente para viver confortavelmente?

Dois meses após sua viagem para os Estados Unidos, Jacques manda um e-mail para o seu pai perguntando qual havia sido o resultado daquele exame da fraqueza cardíaca. André responde que o exame acusou “Incompatibilidade Genética”. Jacques fica tão surpreso que propõe fazer um teste de DNA do sangue. O problema é que um dos pré-requisitos legais para esse exame é que os dois doadores estejam presentes para a colheita do sangue. Mas, voltar para os Estados Unidos após tão pouco tempo está fora de cogitação. Vários médicos são consultados, mas nenhum deles aceita realizar o procedimento. O último a ser consultado é o Dr. Fernando Aranha, diretor de uma unidade do laboratório Delboni, que, por coincidência, está viajando naquela semana para Nashville e concorda em fazer o exame. O médico recolhe uma amostra do sangue de André, nos Estados Unidos, enquanto, num laboratório em São Paulo, o sangue de Jacques é, também, colhido.

Nesse momento, torna-se necessário abrir um parêntese para tentarmos calcular quais são as probabilidades de um evento desta natureza acontecer. Jacques não é matemático e nem sabe se um matemático seria capaz de responder essa pergunta. De qualquer maneira, é possível estimar intuitivamente que, considerando a quantidade de cidades no mundo e o fato de Nashville não ser uma cidade propensa ao turismo, as chances de um evento desse tipo acontecer são extremamente raras. Se não é uma simples coincidência, então, o destino existe.

De qualquer maneira, o teste seria realizado quando André viesse para São Paulo ou dois anos mais tarde, quando Jacques voltasse a visitá-lo. A relação sempre havia sido a melhor possível. Jacques considera seu pai como seu melhor amigo, aquele que sempre o havia ajudado nos piores momentos, o havia sustentado e havia lhe dado os melhores conselhos, sobretudo quando sabia que não iria gostar de ouvi-los. Além do mais, sempre haviam tido uma compatibilidade física, mental e espiritual surpreendentes. Com certeza, o resultado do exame será negativo e se, por um desses azares que somente a vida consegue provocar, ele der positivo, o que isso poderia mudar? André é o único pai que conheceu. Eles se amam profundamente.

Hélène, obviamente, fica sabendo do ocorrido, mas não demonstra muita preocupação.

Dois meses depois, sai o resultado do exame. Jacques recebe uma ligação telefônica de André. Ele não o cumprimenta, sua voz é estranha. Num tom severo, pronuncia simplesmente as seguintes palavras:

“O resultado do exame deu positivo. Você não é meu filho. É um choque de uma tal magnitude que nem consigo medir a sua extensão. O meu sobrenome foi roubado! Você precisa tirar o meu sobrenome!”

Jacques fica mudo, sem saber o que dizer, desnorteado pela notícia, mas, sobretudo, pela reação de seu pai. Trocar de sobrenome? Que loucura é essa? Após o conflito recente com Regina, mais um cataclismo abate-se, subitamente, sobre ele. Mas, desta vez, ele não tem culpa de nada. Nem havia nascido quando tudo aconteceu! Quando desliga, atônito, sem pronunciar uma palavra porque, conhecendo bem o seu pai, sabe que não adianta argumentar, sente-se como se a terra tivesse se aberto embaixo dos seus pés. Em quarenta anos, esse pensamento jamais havia atravessado sua mente e nunca pensou que seu pai reagiria dessa forma!

Jacques espera que, com o tempo, André perceba que ele não tem nada a ver com uma situação que foi criada por sua mãe e alimentada pela paixão cega e pela ingenuidade dele, que fez questão de levar adiante e até oficializar uma relação que estava fadada ao fracasso desde os seus primórdios. Mesmo assim, pressente que precisará de muito esforço para fazê-lo entender isso. Mas, ele, Jacques, porque está passando por tudo isso? Após quarenta anos! A vida, mais uma vez, está batendo com força total, tentando destruí-lo! Justo agora que está passando pelo trauma da Regina! Analisa, sentindo-se como um leão enjaulado, o que fazer para não perder tudo. Não sobrou quase nada do capital na Suíça e a mesada, com certeza, será cancelada. A única incógnita continua sendo o afeto de seu pai. Quando pensa em trocar o seu nome para fazer a vontade dele, avalia o terrível transtorno burocrático que ocasionaria porque ele é cidadão francês, naturalizado argentino e residente permanente no Brasil. Implicaria numa mudança administrativa em três países! Como ficaria a sua situação daqui em diante se decidisse viajar ou vender um imóvel? Mesmo se tirasse o nome, quem lhe garante que a fúria de André se aplacaria?

Começa, então, uma longa troca de e-mails que parece mais um jogo de esgrima do que um intento de reconciliação. No início, Jacques sente a sede de vingança de André que lhe pede também para publicar o ocorrido nos jornais de São Paulo com o intuito de criar um escândalo social e, desta maneira, talvez, forçar Marc a divorciar-se de Hélène, sem perceber o absurdo dessa atitude porque, afinal, ela havia sido uma esposa sem falhas durante trinta anos. Porque haveria de repudiá-la por algo que havia acontecido antes de conhecê-la? Durante meses a fio, esse assunto torna-se uma verdadeira obsessão para Jacques. Lourdes o escuta pacientemente, tentando acalmá-lo falando baboseiras espiritualistas de karma familiar. Faria sentido se tivesse alguma culpa, mas se é o único inocente nessa história, por que é justamente ele que tem que pagar a conta, financeira e afetivamente?

Jacques está preso nesse turbilhão de pensamentos e emoções, quando Cristian reaparece. Ele, também, está passando por problemas sérios. Um traficante de drogas está ameaçando matá-lo e sua mãe está desesperada, orando por ele com todas as suas forças, pois frequenta a igreja evangélica há algum tempo. Deus escuta suas orações e, no dia seguinte, o traficante acaba sendo morto. Cristian, para agradecer esta ajuda milagrosa, decide largar as drogas e começar a frequentar a igreja. É batizado nas águas. Sua alegria e sua renovação em Cristo são tamanhas que consegue desintoxicar-se sem grandes sofrimentos. Deseja tornar-se pastor para poder dedicar sua vida à Deus.

Quando fica sabendo dos problemas pelos quais Jacques está passando, convida-o para conhecer a igreja. Jacques nunca havia ouvido falar em igreja evangélica, mas sua aflição é tamanha que está disposto a qualquer coisa para tentar restabelecer o relacionamento com seu pai. Só Deus pode realizar esse milagre! Num estado de desespero absoluto, passa a frequentar a igreja todos os dias, à noite. Quando começa o culto, ele sente a presença do Espírito Santo tocar o seu coração e começa a chorar. Após um ano, sente, finalmente, que a ferida está cicatrizada. Um pastor profetiza que seu pai ainda vai cair em si, arrepender-se e procurá-lo. A vida demonstra exatamente o contrário. Jacques nunca mais falará com o seu pai, que cortará todos os vínculos com ele.

Confirmando que os eventos acontecem em pares, na mesma época, conhece Roberto Petresco, um amigo do clube de Go. O Go é um jogo de tabuleiro chinês quadrimilenar que Jacques conheceu vinte anos antes e que se tornou mais uma das suas grandes paixões, junto com a astrologia, a poesia, a literatura, a filosofia e a música. Roberto, que também é de origem judaica, o leva para uma sinagoga. Por um misterioso conjunto de circunstâncias, a esposa da pessoa que havia lhe vendido o sítio era amiga íntima da mãe do rabino chefe daquela sinagoga. Para cúmulo de surpresas, o rabino David é a pessoa mais parecida com seu pai que jamais conheceu. Tem o mesmo rosto e os mesmos olhos azuis penetrantes. Eles são, inclusive, do mesmo signo astrológico. No começo, Jacques sente-se completamente perdido observando esses homens vestidos de preto manipulando com reverência os rolos pesados da Bíblia e lendo pergaminhos em cima dos quais ela está escrita em letras hebraicas. Seu único contato com o judaísmo havia sido o Bar-Mitzva, sua primeira comunhão judaica em Paris, aos 13 anos, quando havia quase enlouquecido para decorar e recitar de cor aqueles trechos em hebraico. É uma língua na qual até as letras são completamente diferentes do nosso alfabeto ocidental. Falaremos com mais detalhes sobre a sinagoga, que terá uma influência providencial na vida de Jacques.

Quando Lourdes fica sabendo que André abandonou seu filho e que o único patrimônio que sobrou são os três imóveis, a casa em Perdizes, o sítio e a casa no Parque dos Príncipes, ela o pressiona para casar-se com ela em regime de comunhão total de bens, para ter direto a metade de tudo. Após ter aguentado a traição de Jacques e a filha dele, é o mínimo que ela merece. Não vendo outra saída, ele aceita.

LOBOS EM PELE DE CORDEIROS

Quando Jacques sai da igreja porque sente-se emocionalmente curado, Cristian o convida para trabalhar numa empresa que, segundo ele, é um sucesso garantido. Trata-se de marketing de rede de filtros de água. Para testar a qualidade da água, só é necessário pingar uma gota de um produto. Se ela estiver com cloro, fica amarela na mesma hora. O procedimento é simples, impactante e parece uma boa oportunidade de negócios.

Jacques consegue uma rede de contatos formada por uma comunidade oriental, através de um médico japonês para quem havia alugado a casa do Parque dos Príncipes. O negócio parece decolar, mas após três meses, as vendas caem. Somente o dono da franquia para a qual trabalha sai ganhando e ele se vê obrigado a sair da empresa.

Nessa época, Lourdes está em Nova Iorque. Foi trabalhar durante um ano com uma amiga, deixando Jacques morando na casa dos pais dela. Quando reflete sobre sua situação, Jacques não acredita que, somente alguns anos atrás, era um homem próspero, aparentemente para sempre. Agora só restam alguns imóveis e pouca liquidez. Num prazo de três anos, perdeu sua fortuna e sua família. Como só havia desenvolvido sistemas para hotéis e corretoras de seguros, nunca teve oportunidade de familiarizar-se com o fluxo administrativo de uma empresa, o que o impede de voltar a trabalhar com Informática. Acaba reinventando-se como professor de idiomas, mas ganha pouco e não consegue preencher a sua agenda.

Enquanto Lourdes está viajando, ele conhece uma moça pela internet, Viviani, que cumprirá um papel importante na sua trajetória filosófico-espiritual. Após uma semana de conversas telefônicas, ela envia um e-mail: “Estou em quimioterapia para sarar de um câncer de mama. Quis ser honesta com você. Se não quiser mais conversar comigo, vou entender”. Jacques gostou de sua energia, de sua voz e de seu nível intelectual. Está disposto a dar continuidade ao relacionamento. Devido ao tratamento, a conversação se prolonga por seis meses. Quando sara, ela o convida para ir à sua casa, em Campinas. Como é a primeira vez que conversa tanto tempo com uma mulher sem conhecê-la, a expectativa é imensa. Fica fantasiando sobre como será o encontro. Após tantas trocas de ideias, não há mais necessidade de preliminares. Fica imaginando mil cenários de beijos e carícias.

Quando para o carro na frente da casa, a porta já está aberta. Ela está na sala arrumando umas coisas e, de longe, já consegue vê-la. Ela é uma morena alta de uns cem quilos. Jacques fica apavorado e pisa no acelerador, mas é tarde demais, ela já o viu e o convida para entrar, com um sorriso estampado no rosto. Não dá mais para fugir. Após uma espera de seis meses, a decepção é proporcional à expectativa. Finge um sorriso e tenta ser agradável. Já que não conseguiu escapar do encontro, só resta tentar conhecê-la melhor. Bióloga de formação, ela foi a primeira mulher a comercializar equipamentos médicos importados para o Brasil. Sua empresa havia desmoronado ao ser denunciada por um concorrente por trazer containers do exterior sem declaração. Agora sobrevivia graças a trabalhos de gravação de voz, aquela mesma voz que havia conseguido seduzir Jacques durante tanto tempo. A casa tem vários quartos, um quintal grande no fundo e vários animais de estimação perambulando. Como toda intelectual, não parece prestar muita atenção à limpeza e a casa é meio bagunçada. Mora junto com a mãe idosa, em estado vegetativo devido a um Alzheimer avançado; com uma tia velhinha, Lila, que parece um passarinho e um filho adotivo, João Enrique, de uns 13 anos. Reina um clima de liberdade, amigos entram e saem à vontade.

Após sete anos, Jacques consegue finalmente vender a casa do Parque dos Príncipes por um valor de R$ 230.000,00, recuperando uma esperança de progresso. Alguns dias depois, recebe uma ligação de seu sobrinho, Cristian, pedindo para dar um pulo no seu escritório. Jacques havia se afastado dele porque já havia saído da empresa dos filtros de água e não estava mais frequentando a igreja, mas continuava profundamente agradecido por ele ter ajudado a sarar a terrível ferida causada pelo seu pai. Mesmo assim, sente-se um pouco chateado pois não entende porque Cristian precisa dele.

Cristian vai direto ao ponto. Os negócios estão indo bem, mas existe uma maneira de aumentar rapidamente os rendimentos: vender franquias, ao invés de vender somente filtros. Mas, essa possibilidade lhe é vedada porque o seu nome está sujo. Ele mostra uma cópia de um cheque devolvido em seu nome. Precisa de R$ 3.000,00 para regularizar a sua situação. Tudo mundo sabe que Jacques acaba de vender a casa do Parque dos Príncipes. Sente-se incomodado por ter que mexer tão rapidamente num capital que demorou tanto tempo para recuperar e por tratar-se de uma despesa que nem é sua. Pelo fato de Cristian ser a pessoa que o apresentou a Cristo, tem a obrigação moral de ajudá-lo. Após refletir, assina um cheque no valor estipulado e fica feliz por ter tido a oportunidade de ajudar a pessoa que o tirou de um buraco tão fundo. Além do mais, Jacques havia emprestado o sítio para a cerimônia do casamento de Cristian que agora já tem duas filhas para sustentar. Nada mais justo do que retribuir um favor.

Dez dias depois, Cristian o chama novamente para comparecer ao escritório dele. O que está acontecendo agora? Cristian, visivelmente envergonhado, confessa que há mais um cheque sem fundos, desta vez no valor de R$ 8.000,00. Jacques fica chateado porque a ajuda já chega a R$ 11.000,00, mas Cristian garante que, assim que vender sua primeira franquia, devolverá o dinheiro. Jacques toma um tempo para refletir. Se não emprestar os R$ 8.000,00, é como se não tivesse feito nada porque Cristian ainda não poderá vender franquias. Num último ato de generosidade, concorda em saldar mais essa dívida.

Cinco dias depois, Cristian pede para ele comparecer numa concessionária de veículos. No ramo do marketing de rede, uma imagem de prosperidade é fundamental para convencer os clientes a entrar no negócio. Cristian quer comprar uma Cherokee, mas não consegue pagar a entrada de R$ 2.000,00. Jacques entende que um carro vistoso representa uma ferramenta de trabalho importante e resolve o problema da entrada.

Dois dias depois, Cristian liga novamente. Jacques está começando a perder a paciência. Sua vida está começando a girar em volta desse sobrinho que está cobrando um preço alto demais pela sua ajuda espiritual. O problema desta vez, é um cartão com três prestações atrasadas com o valor de R$ 300,00 cada um. Uma mixaria comparado com os desembolsos anteriores!

Dizem que o estelionatário nunca dá o golpe de uma só vez, mas vai roubando aos poucos. Isso somado à ingenuidade de Jacques, está se tornando perigoso. Cristian faz mais dois pedidos de dinheiro, aproveitando um momento de correria do tio. Além disso, Jacques é obrigado a pagar, ao longo do tempo, nove parcelas da Cherokee. Num prazo de seis meses, a dívida chega à quantia exorbitante de R$ 100.000,00, valor que representa metade da casa do Parque dos Príncipes, e nenhuma franquia é vendida para começar a reembolsar o dinheiro. Quando a dívida chega nesse montante, Cristian apresenta a Jacques uma terceira pessoa, Donald Alves de Freitas, um empresário que consegue empréstimos bancários e tem alguns terrenos como garantia do empréstimo. Reúnem-se para falar sobre a proposta. O laudo das terras está desatualizado. O preço de um novo laudo é de R$ 12.000,00. Jacques, a essa altura, desesperado, concorda em pagar o laudo para recuperar seu dinheiro.

Lourdes volta de sua viagem a trabalho aos Estados Unidos. Quando Jacques conta tudo o que aconteceu, ela fica muito abalada e até indignada por ele ter tido a ousadia de emprestar dinheiro para o sobrinho dela, sendo que metade do capital era dela por lei. Para acalmá-la, ele explica que está aguardando um empréstimo no banco num valor de R$ 800.000,00. Ao ouvir isso, ela fica ainda mais preocupada. Como farão para devolver o dinheiro para o banco? Precisando de esclarecimentos legais, decidem consultar o advogado que havia organizado o segundo casamento deles em regime de comunhão total de bens. Ele os aconselha, em primeiro lugar, a se separarem legalmente para que nenhum bem fique no nome de Jacques. Em segundo lugar, será necessário simular um acidente na casa de Perdizes, como uma explosão de gás, para poder ressarcir a dívida com o dinheiro do seguro.

Eles se divorciam, mas Lourdes acha muito arriscado aceitar o empréstimo e prefere perder os R$ 100.000,00. Além do mais, precisam urgentemente recuperar a Cherokee, pois novas parcelas devem ser pagas a cada mês. É impossível localizar Cristian que não atende as ligações. Sabem que a Cherokee se encontra na garagem de sua casa, mas ir até lá não resolveria nada. Contratam um advogado para recuperar o carro. Após muitos esforços, todos encontram-se na delegacia e o veículo é recuperado. É um problema a menos, mas o carro ainda precisa ser vendido.

Alguns meses se passam sem nenhuma notícia do empréstimo. Um dia, de repente, a ficha cai e Jacques liga para Cristian perguntando se o empréstimo realmente existe. Cristian fica mudo e Jacques, finalmente, percebe, que havia sido enganado desde o começo: o empréstimo nunca existiu!

É mais um tremendo choque. Além de ter perdido todas as suas economias, pois está usando o resto do dinheiro para sobreviver, aquele que pensava ser o seu amigo em Cristo era um Judas. A dor da traição, que vai até o fundo da alma, é pior do que uma punhalada nas costas.

O único bem que resta é metade da casa em Perdizes e metade do sítio. Quando tenta recuperar sua parte, Lourdes mostra as suas garras e Jacques fica sem nada! Para Jacques é o último choque, talvez o mais terrível de todos, um estreitamento de consciência que provoca intensas enxaquecas.

Aos 46 anos, acaba morando, de favor, num apartamento que Lourdes está financiando. É obrigado a assinar um termo segundo o qual será expulso se não pagar o condomínio. Lourdes continua as suas viagens anuais para os Estados Unidos, sempre garantindo que aquela será a última.

Jacques começou a sua vida profissional aos 23 anos com um apartamento doado pelos seus pais. Vinte e três anos mais tarde, só lhe resta um carro usado, exatamente o único bem que Lourdes tinha quando ele a conheceu. Os próximos anos arrastam-se dando aulas de idiomas para sobreviver e paquerando moças quando tem dinheiro sobrando para pagar um jantar.

Lourdes acabará, alguns anos mais tarde, estabelecendo-se nos Estados Unidos e se casará com um americano para obter o Green Card. A mineirinha caipira está morando no primeiro mundo, com dinheiro na conta e faturando em dólar enquanto o gringo, depenado, fica chupando dedo no Brasil.

Triste ironia do destino!

UM AMOR TARDIO

Quando Jacques fica sabendo que Lourdes pretende instalar-se, definitivamente, nos Estados Unidos, percebe que foi enganado o tempo todo, e num acesso de desespero, entra em uma sala de bate-papo na Internet. Para sua surpresa, a primeira pessoa a aparecer é uma loira tão atraente que não entende o que está fazendo na rede. Ela pede para ele ligar a sua webcam. Como é a primeira vez que entra nesse tipo de site, corre até o supermercado mais próximo para comprar uma, antes que ela desapareça. Após trocar algumas ideias, eles acabam conversando por telefone e concordam em marcar um encontro.

Patrícia é dona de casa, separada há alguns anos, quatorze anos mais jovem que ele, com três filhos pré-adolescentes do primeiro casamento. Jacques está com 51 anos. Ele a pega de carro, em sua casa, e vão comer uma pizza. Ela é uma pessoa simpática, humilde e agradável. Ficam conversando até altas horas da noite, vagando de bar em bar, para não interromper este encontro providencial. Ela conta que viajou duas vezes a Buenos Aires para conhecer pessoalmente um argentino pelo qual estava loucamente apaixonada. Jacques não se incomoda porque está costumado a ouvir histórias sobre ex-namorados. Aos poucos, eles vão se apaixonando. A química é forte, mas ela tem o lado meigo e sensível, do qual a Regina era totalmente desprovida.

A empolgação do casal apaixonado dura pouco. Da mesma maneira como havia acontecido com Regina, Patrícia engravida rapidamente, o que coloca a relação em risco, pois Jacques já não tem mais os recursos suficientes para criar um filho. Havia decidido ter um filho com Regina porque, naquela época, era um homem próspero. Quando André o havia abandonado, Hélène e Marc haviam assumido a responsabilidade de dar uma boa educação para Isabelle. Mais uma vez, Jacques precisa recorrer a um aborto para evitar a catástrofe. Seus pais o ajudam a encontrar uma clínica. Patrícia, contrariando suas convicções religiosas, é obrigada a submeter-se ao procedimento. Devido ao fato de recusa-se a usar métodos anticoncepcionais, a segunda gravidez não demora a manifestar-se, causando um pânico no casal. Dessa vez, é impossível contar com a ajuda dos pais de Jacques. A única saída é realizar um aborto caseiro com a ajuda de uma substância ilegal, Citotec, muito usada por pessoas de baixa renda em situações similares. Eles se veem obrigados a realizar este procedimento de risco no apartamento de Jacques, sem nenhuma supervisão terapêutica. Quando chega a noite tão temida, a apreensão é grande. Não é somente a saúde de Patrícia que está em risco, mas sua própria vida, caso aconteça alguma complicação. Ela passa por dores intensas, mas é uma mulher forte que já deu à luz a três filhos. Infelizmente, ela esquece de seguir as últimas instruções: ir até um hospital para fazer a curetagem e assim remover os eventuais resíduos do Citotec. O pesadelo está só começando. Ela engravida pela terceira vez consecutiva. Quando vão fazer o teste de ultrassom, a médica lhes dá uma notícia devastadora. Devido aos resíduos do Citotec, a criança que ela carrega não tem cérebro. É um caso muito raro pelo qual nenhum dos dois jamais passou. Pela lei brasileira, ela é proibida de abortar e tem que levar esta gravidez até o fim, sabendo de antemão que o filho morrerá ao nascer. É uma cruz muito pesada para carregar. O romance que havia começado na alegria da paixão transforma-se num episódio macabro. Patrícia é uma pessoa muito corajosa. Ela carrega o feto até a bolsa estourar, no sétimo mês. Jacques encarrega-se de enterrar a criança, com um sentimento de profunda tristeza. A partir deste momento, ela decide tomar pílula anticoncepcional, pois os traumas foram dramáticos demais e eles pretendem continuar juntos.

O casal está mais unido do que nunca, após ter atravessado tantas tribulações. Decidem começar a curtir a vida. Durante a semana, se veem quase todos os dias. No inverno, passam os finais de semana em Monte Verde, uma pequena cidade rústica no topo das montanhas com um astral mágico. No verão, só curtem as praias paradisíacas do Litoral Norte de São Paulo, Caraguatatuba e Ubatuba. Ambos adoram o contato com a natureza e as aventuras. Seus temperamentos são parecidos. Nada é programado, tudo é improvisado de última hora.

Para Jacques uma das grandes lições deste relacionamento é o aprendizado da fidelidade. Os ciúmes de Patrícia o obrigam a se policiar constantemente. Acabou o tempo das olhadelas furtivas, pelo menos quando estão juntos. Um dia, ele encontra uma fivela no chão do elevador e a leva para casa. Quando ela vê a fivela, entra num acesso de fúria incontrolável. Jacques é obrigado a fechar todos os quartos para que ela não quebre tudo. Ele nunca havia presenciado nada igual. Atônito e assustado, sem saber o que fazer, acaba ligando para a polícia. A situação quase se reverte contra ele. Felizmente, ela não tem nenhum machucado que possa incriminá-lo. Mesmo quando a polícia vai embora, ela continua recriminando-o aos gritos, mas ele não consegue expulsá-la do apartamento. Após algumas horas, ela se acalma subitamente e se joga no chão como uma criança birrenta, implorando por uma reconciliação. Mais confuso do que nunca perante essa dupla manifestação de loucura, Jacques tenta ficar o mais quieto possível. Após ela partir, ele decide romper o relacionamento pois sempre valorizou a liberdade e sente que não conseguirá viver sendo controlado dessa maneira.

Após um mês de separação, Patrícia liga para ele anunciando que está gravida novamente. Jacques, incrédulo, exige um exame de laboratório que acaba confirmando o fato. Como isso é possível? Pela enésima vez, a vida está contrariando todas as suas expectativas, não lhe dando um momento de respiro. Após tudo o que ela passou, abortar está fora de cogitação. Tudo isso parece mais uma cena do filme “Regina II – O Retorno”, sem a ameaça da chantagem financeira. Encontram-se para conversar e Jacques, comovido pela vinda do segundo filho, assume a criança.

O grande problema é que já não dispõe dos recursos que tinha quando Isabelle nasceu. Deve contar agora para os seus pais? Como ficarão bravos de qualquer maneira, é mais prudente avisá-los só depois que o filho nascer. A gravidez será mais calma se eles guardarem segredo. No começo da gravidez, Marc falece subitamente, deixando um pequeno patrimônio para Jacques. Ele aproveita a metade do dinheiro para reformar o apartamento de Patrícia, preparando o ninho para a criança.

Nasce mais uma menina com saúde, Ana Clara! Jacques está feliz porque sempre sonhou em ter meninas. O único problema é apresentá-la para sua mãe. Ela fica meio chocada por ficar sabendo da criança somente após o seu nascimento. Vê a criança algumas vezes, mas seu orgulho fala mais alto e acaba cortando os vínculos com Jacques. Felizmente, sabendo que ele não tem condições de se manter, decide depositar uma quantia mensal que permite que ele viva confortavelmente. Jaques perde a sua mãe em vida, assim como havia acontecido com seu pai. O mais importante é que terá condições econômicas de cuidar desta criança que, mais uma vez, está chegando no momento certo em sua vida. Se tem uma coisa positiva em sua vida, são os filhos que sempre chegam na hora certa para enchê-lo de alegria! Isabelle nasceu quando tinha 40 anos e Ana Clara agora aos 55, poupando-o de uma velhice solitária.

Ana Clara é um bebê muito lindo e amoroso. Ela é cheia de ternura. Cresce como uma criança doce, bonita e inteligente, espalhando alegria por onde passa. A família inteira de Patrícia fica encantada com ela. Jacques só fica triste que sua mãe não consiga aproveitar esta benção divina.

O INESPERADO

Durante cinco anos, o casal é coroado de felicidade com essa criança abençoada. O ciúme de Patrícia acabou. Jacques, que nunca havia conseguido permanecer por mais de três anos com nenhuma mulher, completa nove anos com ela. O casal continua se amando como nos primeiros dias. O fato de cada um morar em sua casa ajuda a evitar o desgaste da relação.

Estão numa pousada na praia quando Jacques completa 60 anos. Os banhos de mar e o calor do dia são o preparo perfeito para as noites sensuais. Subitamente, uma catástrofe completamente imprevista acontece. Jacques não consegue mais sustentar a ereção. Nos dias seguintes, o fenômeno se reproduz até ele perceber que a situação não melhora com nada.

Quando volta para São Paulo, consulta um urologista. Os seus níveis hormonais estão altos. O problema só pode ser psicológico ou fisiológico. O lado psicológico é rapidamente descartado. Jacques escolhe a melhor clínica de São Paulo para começar um tratamento para disfunção erétil. O médico confirma que ele está com os capilares, pelos quais o sangue passa para irrigar o membro, entupidos. O Viagra não adiantaria porque o fluxo adicional de sangue não consegue circular. O único tratamento é uma série de oitenta injeções de um produto importado, na lateral do membro, com a ajuda de um disparador, três vezes por semana, durante seis meses. O método é inconveniente, mas seis meses passam rápido e as chances de sucesso são de 86%.

Ao cabo de seis meses, a desobstrução é somente de 50%, continuando a inviabilizar a penetração. Continuar as injeções está fora de cogitação devido ao seu alto custo. Jacques fica devastado interiormente. Sua mente entra num turbilhão fatal de pensamentos. Como falar com Patrícia? Qual será a reação dela, quatorze anos mais jovem do que ele, que está apenas 46 anos? Já faz seis meses que estão sem relações e, ainda por cima, ele precisa anunciar que o tratamento fracassou. Supondo, no pior dos casos, que perca Patrícia, como fará para reconquistar outra mulher? Que mulher irá querer namorar um homem impotente? A situação é aterrorizadora. Com apenas 60 anos, está condenado a uma vida de solidão. É uma sentença de morte? Talvez seja melhor acabar com tudo de uma vez, ao invés de passar por esta morte em vida. Ninguém pode ajudá-lo e nem lhe dar nenhum conselho. Junta coragem para contar a verdade. Ao ouvir a notícia, ela fica tão arrasada quanto ele. Como pode ter acontecido isso justo com eles que se davam tão bem? Ela conhece homens de 80 anos que continuam mantendo uma vida sexual ativa. Tão cedo! Não é justo!

Jacques não sabe por quanto tempo ela irá aguentar essa situação. Além da sua própria dor, sente-se culpado por não poder dar mais prazer a sua mulher, ainda tão jovem. Ele não quer que ela sofra o resto de sua vida por causa dele. Sugere até um amante porque, após tanto tempo de relação, o corte emocional seria doloroso demais. E a criança? Como fica nisso tudo?Jacques, mais uma vez, fica obcecado pelo pensamento do suicídio. Já sabe como levar essa tarefa a cabo. Tomar comprimidos seria tolice. A melhor maneira é pular pela janela do seu apartamento. Felizmente, mora no sétimo andar e na sua cozinha tem uma janela que dá para um piso de asfalto, sem nenhuma árvore para atrapalhar a queda. Só não entende porque Deus o poupou quarenta anos atrás para colocá-lo novamente nessa situação sem saída. Só que desta vez, tem certeza que não será salvo por milagre.

BUDISMO, CRISTIANISMO E JUDAÍSMO

Jacques demora algumas décadas para entender que a perda de sua fortuna havia sido benéfica para sua evolução espiritual. Se a tivesse conservado, toda a sua vida teria girado em volta do dinheiro, das mulheres e das drogas, sem nenhuma transformação interior. Teria, provavelmente, morrido de overdose de cocaína, pois essa droga sempre proporcionou um prazer intenso.

A falta de recursos obriga-o a se manter sóbrio e a trabalhar para sobreviver. Encontra o que seu espírito inquieto busca no estudo de alguns filósofos prediletos. Entre os 45 e os 60 anos, relê toda a obra de Nietzsche pela terceira vez, descobre Espinosa, Miguel de Unamuno, Gabriel Marcel e, sobretudo, Soren Kierkeegard, um filósofo dinamarquês do século XIX, pai do existencialismo cristão. Escreve vários livros sobre esses autores em colaboração com Viviani que será o seu único e precioso interlocutor durante aqueles anos de aprofundamento interior. A leitura de Emmanuel Lévinas o leva a se aprofundar no estudo do Talmud*, uma sabedoria trimilenar que desconhecia completamente, apesar de estar vinculada às suas origens judaicas. A visita fortuita à sinagoga começa a fazer sentido.

* O Talmud é a Lei Oral que foi passada de mestre para discípulo desde a época de Moisés e foi compilada por escrito entre o Século I e o Século VI para que não se perdesse durante as perseguições romanas.

O Talmud o conduz para a mística, o estudo da Cabala*, a parte oculta do Antigo Testamento, revelada pelos grandes mestres de Israel, que proporciona uma nova compreensão do universo. Viviani o acompanha através de conversas diárias, durante horas, todos os dias, nessa nova sabedoria com a qual identifica-se tão completamente que acabará se convertendo ao judaísmo.

* Enquanto a Bíblia e o Talmud representam o corpo das leis do Antigo Testamento, a Cabala é a alma das Escrituras, a interioridade oculta.

Jacques sente-se profundamente dividido entre o Budismo, o Cristianismo e o Judaísmo. Sua busca espiritual havia começado, quando jovem, na estadia no centro de yoga na Califórnia, aonde teve a única experiência transcendental de sua vida, mas não havia conseguido dar continuidade a esse caminho. Após a tragédia sem precedentes de seu surto psicótico, foi salvo milagrosamente por um anjo em forma humana. Tornou-se um homem graças aos seus esforços como profissional na área de Informática e como professor de idiomas, suprindo a sua necessidade de espiritualidade com astrologia, música e filosofia.

Aos 40 anos, seu súbito enriquecimento, seguido pela rejeição do seu pai e o subsequente roubo de sua fortuna, o haviam conduzido, mais uma vez, a conhecer novas formas de espiritualidade. André, sempre considerado como um modelo, havia se convertido ao Catolicismo, deixando-o ainda mais confuso porque tinha horror desta instituição que havia escravizado e martirizado o mundo durante 1500 anos. As cruzadas, a inquisição, a imensa riqueza do Vaticano e os escândalos referentes à pedofilia são mais do que suficientes, aos seus olhos, para desacreditar esta entidade macabra. O fato dela culpar os judeus pelo “assassinato de Deus”, apesar de Jesus ser judeu, representa a mais monstruosa das incoerências. Mesmo tomando em consideração que o último Papa se retraiu perante o mundo desta acusação, não consegue entender como seu pai, um modelo de inteligência, capacidade de trabalho, honestidade e, ainda por cima, sendo judeu, possa ter aderido justamente ao Catolicismo.

Jacques, apesar dos 20 anos transcorridos, continua marcado pela revelação divina no centro de yoga. Sua experiência direta com o Cristianismo manifestou-se na cura da profunda ferida emocional causada pela rejeição de André. Aquele ano de tratamento espiritual, apesar de ter permitido continuar com sua vida, não havia sido tão impactante quanto aquele vislumbre de eternidade. Nada nos marca tanto quanto a intensidade. Jacques continua achando que o yoga é “a ciência da espiritualidade”, contrastando com o efeito quase insípido das religiões, mas uma vida inteira de ascetismo é um preço alto demais a pagar e a visão de uma divindade impessoal equivale a uma ausência de Deus.

Considera o Catolicismo como uma aberração, mas a pessoa de Cristo torna-se uma figura incontornável, porém contestável. Sem dúvida é um grande profeta, talvez o maior de todos, por haver influenciado o Ocidente durante 2000 anos. Algumas das suas características, por outro lado, são inaceitáveis. Deus encarnar na pessoa de um homem representa um pulo mental inconcebível. Mesmo a ideia de ele ser “o filho de Deus” é estranha demais porque Deus já havia criado Adão do nada. Acreditar que crer em Jesus é suficiente para merecer a vida eterna não faz sentido. Uma simples crença não pode ter o mesmo peso que as ações do homem. Jacques não acredita que seremos julgados pelas nossas crenças, mas por nosso comportamento aqui na terra. Delegar a salvação a um terceiro invalida o projeto divino da responsabilidade individual, podendo até conduzir a praticar atos repreensíveis com a consciência tranquila. Alguns pontos da doutrina são incompreensíveis. Dar a outra face em caso de agressão, equivale a abrir mão da própria vida sem lutar contra o mal. Ao invés de fortalecer o ser humano, isso o enfraquece. Finalmente, é desalentador constatar que a sua vinda no mundo não alterou em nada a condição humana. Apesar do verniz do progresso das ciências sócio-políticas e dos avanços da psicologia, o fundo da natureza essencialmente egoísta e violenta do ser humano continua o mesmo. Einstein, um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, escreveu uma carta para Freud perguntando se ele achava que o problema da destrutividade do homem poderia ter solução. Freud respondeu negativamente.

A igreja evangélica representa uma corrente mais evoluída por respeitar o Antigo Testamento, tão denegrido pela igreja católica, apesar de ser a raiz de todos os ensinamentos divinos entregues por Deus para Moises e para os Profetas. Mesmo assim, ainda prega versões superficiais e até intencionalmente distorcida da Palavra para servir os interesses econômicos de alguns grupos no comando. Os governos, os bancos e as igrejas, apesar dos benefícios espirituais, continuam controlando o mundo.

Para Jacques, Kierkeegard havia sido o último achado válido da filosofia, mas após ter devorado toda a sua obra, volta a sentir-se vazio. O Judaísmo, a última opção que Jacques descobre é a mais autêntica, por ser a mais antiga e por não ter sofrido nenhuma alteração ao longo dos 3500 anos de sua transmissão. A única distorção havia acontecido há 2000 anos atrás, ao ser traduzida do hebraico e do aramaico para os idiomas ocidentais. Tradução é traição, principalmente tratando-se da Palavra de Deus! Todos os sistemas filosóficos e todas as ideologias humanas parecem mesquinhos diante da simplicidade e da vastidão da Palavra de Deus que enriquece a alma através das infinitas interpretações que encerra. A maioria das pessoas fica eternamente presa ao seu sentido literal, por desconhecer as profundezas da Cabala, o que equivale a ficar parado frente a uma porta sem nunca a abrir para entrar no palácio do Rei. Deus só se revela aos que são humildes o suficiente para não confiar exclusivamente na sua própria inteligência, estéril se não for previamente regada pelas águas de vida das revelações divinas. Para que cegos parem de guiar cegos.

O Novo Testamento também transmite verdades eternas, mas o faz como se fossem novas enquanto todas já estão presentes no Antigo Testamento há milênios, numa jogada de “marketing” que pretende, ainda por cima, invalidar a sua origem. Essa igreja que prega a bondade, o perdão e a misericórdia de um Deus de Amor Infinito acaba produzindo na vida real as piores atrocidades. O grande inquisidor, pelo menos, estava convencido de que torturava os corpos para salvar as almas.

O CAMINHO DO MEIO

Após décadas de pesquisas filosóficas e bíblicas, Jacques está navegando na Internet quando clica, por acaso, em um vídeo de um rabino desconhecido: Rav* Dynovisz. Ao assistir o vídeo, seu preparo de vinte anos lhe permite entender que se trata de um nível superior de interpretação do Antigo Testamento. Está baseado sobre os ensinamentos do Zohar, o Livro do Esplendor, 80 volumes escritos numa linguagem totalmente hermética pelo rabino Simon Bar Yochai, fundador da Cabala. A história conta que, devido às perseguições romanas contra os judeus, Rashbi, apelidado segundo as iniciais do seu nome, havia ficado treze anos escondido numa caverna junto com o seu filho. Deus havia feito brotar, através de um milagre, uma árvore de alfarroba e uma fonte de água para eles sobreviverem. Durante todo esse tempo, Rashbi recebe, diariamente, a visita de duas almas ilustres, Moises e o profeta Elias, que lhe comunicam todos os ensinamentos da Cabala, a parte oculta da Bíblia entregue a Moises, no Monte Sinai. Este ensinamento é transmitido exclusivamente de mestre para discípulo durante um período de 1500 anos, garantindo a sua perpetuidade, mas mantendo-se inacessível ao resto da humanidade que ainda não está pronta. É somente no século XV que o rabino Isaac Luria, Arizal, recebe as revelações para decodificar os ensinamentos selados do Zohar e a ordem de “cima” de transmiti-los a uma única pessoa, seu discípulo, Haim Vital que demorará cinquenta anos para colocar por escrito os segredos desvendados por Arizal num prazo de dois anos e meio. A missão de Haim Vital é escrever o livro “A Árvore da Vida” para garantir que os conhecimentos possam ser divulgados daqui em diante ao longo dos séculos. No século XVIII, o rabino Israel Ben Eliezer, apelidado de Baal Shem Tov (o mestre do bom nome) se encarrega de trazer as massas incultas e oprimidas do povo judeu de volta às suas raízes espirituais. Funda a dinastia Chabad, acrônimo das palavras Chohma, Biná e Daat, as três Sefirots* intelectuais da árvore da vida, que culmina com a posse do sétimo líder, o Rebbe de Lubavitch, em 1951. O Rebbe não é um simples religioso. Já na sua juventude, estuda matemática em Berlim com Shrödinger, um dos papas da Física Quântica. Associa o gênio científico ao gênio religioso para liderar o povo judeu durante 40 anos, deixando uma obra imensa com interpretações originais sobre o Antigo Testamento e respondendo nas suas cartas a inúmeras perguntas vindas dos quatro cantos do mundo sobre os mais diversos assuntos. Dedica seus últimos anos de vida a orientar pessoas do mundo inteiro, desde as mais humildes até grandes empresários e chefes de estado. No seu discurso inaugural, em 1951, já havia anunciado que seria o último representante da dinastia Chabad. É a corrente que mais cresce na esfera religiosa do judaísmo, dando origem a 3500 centros pelo mundo, num crescimento estável e ininterrupto.

* Um Rav é um líder comunitário, enquanto que um Rabino é um dos seus assistentes que precisa passar por uma formação de oito anos para poder exercer as suas funções. O Rebbe é o líder mundial do judaísmo.

Jacques fica numa imersão profunda de três semanas, só assistindo os vídeos de Dynovisz. Perguntas que haviam ficado vinte anos sem resposta são finalmente explicadas com total clareza e mestria. Dynovisz é profundamente inovador. Critica energicamente a postura religiosa, inclusive a judaica. Para ele, “A religião é o ópio do povo”. Seus ensinamentos baseiam-se exclusivamente na interpretação das Escrituras. Tem uma erudição prodigiosa e uma didática ímpar. Cada aula conecta sempre os ensinamentos ocultos da Bíblia aos eventos da atualidade, elucidando, não somente, as causas espirituais da situação do mundo moderno, mas revelando também as grandes linhas do seu desenvolvimento futuro. Por todos os seus ensinamentos, Rav Dynovisz permanecerá seu único mestre até o fim.

*Sefirot: os dez centros de energia da Árvore da Vida ou os dez Atributos do Criador. As três primeiras são intelectuais (intuição, razão e compreensão emocional), as seis seguintes são emocionais (bondade, força, integração, determinação, humildade e estabilidade); a última é o reinado que representa a consciência nacional, que só se tornará mundial após o advento da Era Messiânica.

O problema do mal é o único questionamento da vida e as religiões são uma tentativa de resposta. Contrariamente às mensagens religiosas, a Terra não é um lugar comandado pelo malígno porque tanto os eventos bons quanto os ruins provêm de Deus e os ruins escondem uma benção até maior do que os bons.

Os ensinamentos da Bíblia e do Zohar não tratam das dimensões espirituais, mas do nosso mundo material. Os mandamentos de Deus são o caminho para a autotransformação do homem. A mudança interior é a única maneira de mudar o mundo. Como isso seria possível sem experiências negativas?

O propósito da libertação do povo judeu do Egito foi atravessar o deserto para entrar na terra prometida. Só permaneceram quarenta anos no deserto devido ao erro dos exploradores que, após a sua missão de reconhecimento, trouxeram um relato negativo da terra, descrevendo gigantes e cidades fortificadas que os amedrontaram porque estavam acostumados a viver de milagres. O povo teria que começar a lutar para conquistar a terra. Esse relato descreve a condição da humanidade que sempre preferiu se refugiar em bolhas espirituais do que enfrentar a dura tarefa da transformação interior sem fugir do mundo.

Será uma das causas dos quatro exílios de Israel, o último deles tendo durado 2000 anos até a reconstrução do estado de Israel em 1948. Somente três anos antes, nove milhões dentre os quinze milhões haviam sido mortos no Holocausto. Uma proeza sobrenatural nunca antes presenciada na história da humanidade!

Israel continua, atualmente, reproduzindo o modelo das nações, dividido entre religião e estado, fenômeno oriundo da Revolução Francesa. A dimensão espiritual continua desconectada da dimensão material. Israel não realizará a missão de tornar-se uma “Luz para as nações” enquanto não conseguir instaurar o reinado de Deus na Terra, a mensagem bíblica derradeira. O próprio judaísmo continua tão dividido quanto qualquer outra religião. Os ultra ortodoxos não aceitam a legitimidade do estado de Israel, colocando em risco a vida de milhões de judeus, apesar dessa espiritualidade nunca ter impedido milhões de serem massacrados, seja durante a Inquisição, os Pogroms ou o Holocausto. Devido a um exílio tão rigoroso e prolongado, os judeus perderam a sua identidade nacional e preferiram abrir mão de suas raízes, misturando-se com as outras nações. A missão de Dynovisz é a de divulgar a verdadeira mensagem bíblica, sem se filiar a nenhuma denominação porque bebe de todas as fontes sem pertencer a nenhuma. O Justo perfeito que sempre havia sido considerado, erroneamente, como o modelo a seguir, deve ser substituído pela figura do Rei perfeito cujo modelo foi o Rei David (1040 a.c. a 970 a.c.), único rei que viveu, como se deve, para o seu povo, contrariamente aos políticos de todas as épocas, principalmente os da modernidade. Trata-se de acabar com o “culto do ego” para dedicar-se à causa comum.

SENTIDO E DESTINO

Jacques acredita que só podem existir três destinos para a alma após a morte. Para a maioria dos seres humanos, cuja essência é fundamentalmente boa, que estão longe da perfeição, mas que também nunca cometeram pecados hediondos, existem dois caminhos possíveis: a reencarnação para corrigir erros e continuar se aperfeiçoando ou unir-se a Deus na vida eterna, como a gota d´água funde-se com o oceano. Para aqueles seres extremamente perversos que nem sonham em se arrepender porque fariam tudo de novo se pudessem, o castigo é a segunda morte, a morte da alma.

Dynovisz revela uma quarta possibilidade, citando uma frase do Talmud: “Os Justos não tem descanso nem nesta vida e nem na próxima”. A vida eterna não consiste em fundir-se com Deus, mas em continuar existindo como uma entidade individual progredindo infinitamente em direção a Deus. Esses 6000 anos de história da humanidade não passam de um simples estágio embrionário, como uma semente que ainda não germinou. O homem, ainda preso aos seus fantasmas gerados pelo seu ego, não consegue ter uma visão da Realidade e nem imaginar seu verdadeiro potencial. A primeira reação é um choque instintivo porque a vida aqui na terra pode ser tão difícil que, muitas vezes, só a suportamos graças à esperança de uma vida eterna. Mas o que é a vida eterna? Um descanso eterno ou uma evolução eterna?

Para nós, a única coisa que existe é o Aqui-Agora, eterno paradoxo do tempo. Um passado que não existe mais, um futuro que ainda não existe e um presente que não cessa de passar.

LÉVYSOUSAN
Enviado por LÉVYSOUSAN em 20/11/2020
Reeditado em 20/11/2020
Código do texto: T7116740
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