Operário nos tempos da Ditadura

Recordações tipo "memórias do cárcere". Em 1968, aos 21 anos, eu era operário na Volkswagen, em São Bernardo Campo-SP. Não era estudante, mas um leitor voraz e entre a peãozada me destacava pelo linguajar e saber enciclopédico. Não demorou muito para que os "sindicalistas" e os "subversivos" me assediassem, para integrar os "quadros". Naquela época a paixão pelas noitadas era maior que o patriotismo rebelde e o máximo que consenti foi escrever artigos nos tabloides clandestinos ("A Ferramenta", "Movimento Operário" e outros), assinando como Juca Peão ABC. Costa e Silva era o marechal presidente (1967 a 1969) e a Repressão comia solta. Vez ou outra "sumia" um ativista. Nossa única fonte de informações sobre os desaparecidos era um nordestino que levava nossos macacões azuis para lavar. O "sumido" não aparecia para retirar o macacão e pagar a conta e o nordestino nos perguntava: "Gente, avisa ao Fulano ou Beltrano do Setor Tal para vir pegar o macacão". No meu Setor (Usinagem, Tampa da Carcaça Motor da Kombi) nunca sumiu ninguém, mas os boatos corriam indicando nomes de operários-ativistas desaparecidos, gerando verdadeiro terror. Em agosto de 1969, Costa e Silva sofreu uma trombose cerebral e foi substituído por uma junta militar. Correu o boato que haveria um endurecimento e que um "pente fino" seria passado nas metalúrgicas do Grande ABC paulista. Uma tarde, ao sair do turno de trabalho, o pátio de estacionamento dos ônibus fretados estava totalmente tomado por militares do Exército, pelas Tropas do Choque e pela Cavalaria da PM. Nós, operários, tínhamos que passar por eles que apenas nos observavam, não estavam revistando ou detendo ninguém. Naquele dia, e pela primeira vez, em cada ônibus dois soldados embarcaram. Durante o trajeto, silêncio sepulcral, ao contrário da costumeira algazarra, piadas e risadas, cantorias, etc. Eu não resisti e antes de descer no meu ponto / meu bairro, comecei a entoar baixinho o Hino Nacional. Após as primeiras estrofes, outros colegas acompanharam e fui elevando o vozeirão. Ao chegar no meu ponto, todos cantavam à plenos pulmões, inclusive os dois soldados. Desci do ônibus sob aplausos e mal conseguia me manter em pé, as pernas bambas, as lágrimas escorrendo, o coração alvoroçado. Ao chegar em casa recolhi rapidamente todos os folhetins e material alusivo à Resistência Operária e queimei, no fundo do quintal. Dali em diante me afastei do Movimento, voltei para a escola, conclui o Ginásio e Colégio e em 1972 iniciei o curso de Ciências Sociais, pretendendo fazer futura carreira no magistério superior. Em 1975, na conclusão do curso, fomos avisados pela Direção da Faculdade que nossa turma não poderia fazer a tradicional festa de formatura, por "ordens superiores", uma vez que os Sociólogos estavam na Lista Negra. Mas os diplomas seriam expedidos normalmente. Ato contínuo, o MEC retirou a disciplina "Sociologia" da grade curricular do Ginasial e Colegial, proibindo também que sociólogos pudessem continuar lecionando História e Geografia. Com isso, a faculdade criou um Curso Complementar de "Estudos Sociais" (mais 12 meses), para que pudéssemos nos habilitar a lecionar História e Geografia. À essa altura (1976) minha esposa (e colega de classe) estava grávida e a primogênita nasceu em 20.10.1976. Obtivemos a certificação, eu lecionei no período noturno por algum tempo, mas as atividades principais me levaram para as áreas de marketing, direito e comunicação. Enfim, sobrevivi aos tempos da Repressão, sem sentir na carne as consequências de tentar afrontar o Poder estabelecido.

(Autoria: Juares de Marcos Jardim / o Sacy Pererê do Grande ABC – WebRepórter ABCD Radio Livre - Santo André / São Paulo - SP)

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Juares de Marcos Jardim
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 23/06/2020
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