Com tecido, e acontecido

Vica olhou para aquele enorme rasgão no pano que penosamente tecia no tear Coréia e não pensou duas vezes. Talvez até nenhuma. Suverteu.

Mamãe, que era sua colega de trabalho na tecelagem na fábrica do Brumado lembra-se da cena. Mais propriamente, do rolo de pano estragado, que levaria uma boa hora para ser recomposto.

A família de Vica consistia numa irmandade que morava quase vizinha à casa de Vovó Inhana, com suas quatro filhas solteiras e um solitário varão.

E deu muito pano pra manga o sumiço de Vica, moça trabalhadeira, frequentadora de igreja, e que talvez nem namorasse. De seus irmãos, Lia deixara a fábrica e achava-se encostada do Instituto, Conceição continuava na peleja, também operária, porquanto Tôca e Vicente eram praticamente incapacitados de exercer profissão, muito embora Tôca ajudava na cozinha e Vicente saia para a rua todos os dias, com a sua vara de carreiro, dotada de ferrão na ponta, e sua inseparável chapéu de palha, para tanger bois imaginários. Eram conhecidos e benquistos todos como os filhos da Neném, que tinha vindo da Onça de Pitangui para o Brumado a busca de colocação para a moçada.

Manifestações fisiológicas e comportamentais sugeriam os filhos da Neném como frutos de uma união endogâmica, mas a vida tinha que seguir. E seguiu.

Quando meses depois surgiu notícia de Vica, foi um alívio. Algum conhecido a encontrara em Belo Horizonte, com uma cesta à mão fazendo compras para uma ordem monástica a que se filiara. Ficara feliz com o encontro e mandava abraços carinhosos para todos. Havia abraçado sua vocação verdadeira. Dava duro, talvez mais do que na fábrica, com a rigidez conventual que lhe impunha trabalhos mais pesados, além das orações.

Era uma servente que aspirava à dignidade das ordens e do hábito solene. Os relatos escassos sobre a sua progressão são contraditórios, e pouco esclarecedores. Para uns, mais frequentes, não teria pontuado e, para uns outros poucos, chegou a receber as ordens.

Para nós que a vimos meninos, com seus olhos fundos, teceu o caminho pro céu.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 21/05/2020
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