Goiabada com sardinha
-- Bula! Bula! Somos nós, Lino e Juba. Joga uma pedrinha na janela Lino!
Um barulho dentro do quarto avisou os meninos que Bula havia acordado.
-- O que foi? Eu já estava dormindo – respondeu Bula abrindo a janela e coçando os olhos. Seus cabelos castanhos estavam arrepiados e a camisa de dormir estava amarrotada.
-- Não se esqueça de trazer alguma coisa de sal pra gente comer amanhã no riacho. Eu vou levar pão e o Juba vai levar alguma coisa de doce – avisou Lino – não quero que nos falte nada amanhã. Será um dia inesquecível!
-- O que?! você achou que eu ia me esquecer do dia de amanhã? Você não tem falado de outra coisa a não ser no dia de amanhã, Lino. Me deixa dormir que estou morto de sono. Vejo vocês amanhã na lagoa – Bula replicou e fechou a janela voltando em seguida a dormir.
No dia seguinte, ao invés de irem à escola, os três meninos foram para a lagoa da fazenda do pai de Juba. A água era boa e a corrente não era perigosa, e tinha profundidade suficiente para se nadar à vontade.
-- É, não seria bom mesmo ir pra aula no meu aniversário. Afinal, fazer treze anos não acontece todos os dias – diz Lino, o filho do padeiro português.
-- É claro que não, ô Portuga, aniversário que eu saiba só acontece uma vez por ano! O meu será na segunda-feira e será como um outro dia qualquer. Não serei automaticamente diferente só porque estarei com treze anos – respondeu Bula, que não sabia porque ficara chateado com o comentário do amigo. Tendo uma irmã dois anos mais velha e oito irmãos mais novos, incluindo o bebê que nascera no mês passado, nunca celebrara um aniversário excitante. Mas, para satisfazer o amigo, resolveu matar aula também e comemorar.
Nadaram, brincaram de finca e bolinhas de gude até a fome bater.
-- O que você trouxe pra gente, Bula? – perguntou Juba tirando um pedaço de goiabada cascão da sacolinha de linhagem que trouxera.
-- Eu trouxe três latas de sardinha. – disse Bula produzindo as latinhas que colocara nos bolsos do paletó.
-- Sardinha, Bula? Eu não acredito! Não tem nada que eu odeie mais neste mundo do que sardinha! Que belo presente de aniversário me deste! – reclama Lino abrindo o embrulho do pão que pegara na padaria do pai antes de sair. – Sorte que eu ainda me lembrei de pegar um pedaço de queijo.
-- O que você queria que eu trouxesse? Qualquer outra coisa minha irmã ia sentir falta na dispensa, e sardinha é a única coisa que ela não observa. Mistura com a goiabada que nem vai notar o sabor da sardinha – responde Bula já fazendo a mistura que propôs ao amigo.
-- Você é louco mesmo! Mas, como é que você inventa estas combinações assim? Pão com goiabada e sardinha? – indaga Lino já seguindo a idéia do amigo.
-- Eu tô com fome, Lino, e assim, como o que estiver na frente. – veio a resposta de Bula já de boca cheia.
Juba seguiu os dois amigos. Comeram tudo e decidiram voltar para casa, já que o sol estava alto avisando os amigos do horário da aula que estaria prestes a terminar.
Quando estavam perto da casa de Bula, que era a mais afastada da cidade e a mais próxima do caminho, viram uma grande comoção em frente à casa. Os meninos pararam no meio da rua quando viram tanta gente ali.
-- O que sera que houve? – perguntou Juba puxando o braço de Bula para que se apressassem a chegar na casa.
Bula não queria chegar perto da casa, era como se soubesse que nada seria mais o mesmo para ele assim que entrasse pela porta de sua casa. Viu sua irmã sair pela porta. Ela estava com os olhos vermelhos e trazia em torno de si um chale preto.
-- Onde estava, Bula, que fui te buscar na escola e não foi lá hoje? – ela pergunta com voz baixa e cansada como se trouxesse sobre seus ombros magros o peso do mundo.
-- Oi Julia, fui nadar na lagoa da fazenda do Juba. – respondeu Bula decidindo não mentir. Seu coração batia forte antecipando o que sua irmã mais velha teria para lhe dizer.
-- O pai morreu. Ele chegou de trem hoje cedo e foi tirar um cochilo e não acordou. – disse Julia com a voz monótona. – Você é o homem da casa agora, Bula. A mãe vai precisar de você para suportar a família agora. Você terá que ser forte e não dê ouvidos ao que outras pessoas falarem. Eu estarei aqui para te ajudar. – completa Julia alisando o cabelo espetado de Bula, e ajeitando a gravatinha do uniforme da escola que estava solta. Vários homens estavam parados sob a sombra da jaqueira
Bula olhou para trás uma vez e viu seus amigos de olhos arregalados e sérios. De mãos dadas com sua irmã ele entra pela porta e seus olhos têm que se ajustar à penumbra do ambiente. Ele podia ouvir os gritos de sua mãe que estava no quarto.
“Bastardo! Ho dovuto morire proprio ora, non lasciando nulla per me. Questo è ciò che hai fatto in tutta la tua vita. È stato solo per me farti soffrire che mi hai sposato.”(Desgraçado! Tinha que morrer justo agora, sem me deixar nada. Foi isso que você fez a vida inteira. Foi só para me fazer sofrer que você se casou comigo).
Alguém fez um comentário sarcástico de que Bula não se lembraria jamais. Sua preocupação maior estava no que a irmã lhe havia dito pouco antes. Ele notou que as mulheres dos vizinhos que estavam lá fora estavam sentadas na sala. Bula caminhou até a cozinha onde viu seus irmãozinhos sentados em volta da mesa. Os menores não sabiam direito o que se passava e choravam de ouvir a mãe gritar no quarto. Bula sentiu uma náusea incontrolável. Correu para o quintal e vomitou ao pé da laranjeira. Um suor frio lhe escorria pela face e ele se sentiu pior ainda. Correu para a latrina e lá ficou até que sua irmã Julia veio chamá-lo.
-- O que você ainda está fazendo aí, Boulanger?
Bula não gostava quando ela usava o seu nome de batismo, era sinal de que estava muito nervosa com ele, e agora a última coisa que precisava era ser o alvo da raiva de sua irmã.
-- Não sei, acho que foi algo que comi que fez mau para mim. – respondeu Bula com voz fraca.
-- O que é que você comeu hoje?
-- Pão com goiabada e sardinha.
-- O que? Onde já se viu comer estas coisas juntas. Agora, sai daí já, vou te dar uma limonada com polvilho. Vamos ver se não te entope! Quero te apresentar para um senhor que vai te colocar no caminho de ajudar nossa familia.
Bula saiu da latrina cabisbaixo e seguiu a irmã de volta à cozinha. Julia fez a tal limonada com polvilho e Bula teve que tomá-la. Ele não queria sua irmã ralhando mais com ele. O gosto era horrível, mas não podia fazer caretas perto de seus irmãos que o observavam de perto. Agora, ele era o homem da casa.
-- Vamos, ele está na sala. – diz Julia referindo-se ao homem que o ajudaria.
Na sala, um homem de terno estava na poltrona que o pai geralmente gostava de se sentar, perto do radio e da vitrola.
-- Olá, Boulanger – diz o homem alto com aperto de mão forte. Suas mãos eram macias, e o bigode não mascarava o sorriso genuino de dentes brancos e bem cuidados. Seus olhos demonstravam um certo carinho que nunca havia visto nos olhos de seu pai – Eu sou Antonio Verdi, alfaiate. Vim aqui a pedido de seu tio Júlio. Gostaria de empregar você como meu aprendiz, o que acha? Meus negócios estão se expandindo e preciso de um rapazinho esperto como você para me ajudar, gostaria?
-- Gostaria sim senhor, mas não sei fazer nada de alfaiataria.
-- Bem, é para isso que estou aqui. Te ensinarei tudo que sei, e um dia você sera um grande alfaiate também. O que acha?
-- Gostei, pois agora tenho que tomar conta dos meus irmãozinhos e tenho que aprender uma profissão. – disse um Bula muito sério e pronto para enfrentar um mundo que não seria nada gentil com ele nos próximos dez anos de sua vida, mas que o prepararia para ser realmente um grande alfaiate.
11/04/2004