Fernandois...?
A Onça de Pitangui é a terra de minha ancestralidade paterna mais imediata. Lá, Vovelu - Velusiano Justiniano de Miranda - seleiro curvelano, casou-se pela quinta e derradeira vez em 1905, com a adolescente Ana Maria de Jesus, Voinhana, e o casal gerou onze rebentos, sete dos quais vingaram e viveram uma existência bem longa até. Papai, o caçula, nascido em 21, chegou aos 94.
Os relatos orais e escritos ao nosso alcance, dão bem uma idéia da religiosidade oncense naquela primeira metade do século XX, o que seria um microcosmo dum gigante em berço esplêndido despertando para o mundo e, sobre tudo para si próprio, tentando escoimar os fantasmas de seu turbulento passado, um passado nem sempre a limpo, entre os sonhos de Olimpo aos medonhos do garimpo.
E no contexto sócio-religioso da época, figura dominante terá sido o Padre Fernando, mais tarde, Monsenhor, afável proseador e sermonista de truz, entre o púlpito e o bastidor. Ou seriam dois Fernandos, e os registros mental e escrito não me permitem fazer essa distinção...?
A verdade é que li, na obra valiosa de um memorialista oncense, o José Capanema, não por acaso irmão mais novo do celebrado Gustavo, figura pública de destaque transcendente, encomiásticas referências, mais até, reverências, ao longevo vigário Fernando, querido e respeitado pela. sociedade local. Na memória de José, a existência do Monsenhor Fernando e exaltada e louvada como um homem bom, visitante regular de sua casa - o pai de José tinha um comércio expressivo no lugarejo, além do dom da hospitalidade generosa, mais os ouvidos para a boa prosa.
Outro depoimento, ainda que bem menos circunstanciado sobre o dito Padre Fernando é de Dona Jovelina, bem entrada nos seus noventa anos, residindo há décadas em Pitangui, cidade vizinha e de mais recursos do que a diminuta Onça, e que na tenra juventude trabalhou na residência de Padre Fernando por alguns anos. Embora sem falar espontaneamente sobre esse seu primeiro patrão, Dona Jovelina, inquirida a respeito, é breve, mas segura nas respostas, resumindo todo o juízo seu, num bom homem.
Diverso, contudo, é o relato doméstico oral de que temos conhecimento, por meio de tia Vicentina, a primogênita de Velusiano e Ana, nascida em julho de 1905. Tia Vicentina via o Padre Fernando como um homem de posse, respeitado no povoado, que, habitando numa boa casa, de vasto
e frutífero quintal tinha até uma mina ali, cujo acesso franqueava a muita gente. Tia Vicentina até se recordava duma gia, moradora e guardiã dessa mina, e, mais particularmente de um pote de doce de laranja da terra que lá vira uma vez, quiçá para curtir ou a alguma alma sequiosa atrair...
E tia Vicentina, sem perder a altivez, chegava a baixar a cabeça e a corar a tez, ao se referir a uma inusitada descompostura que sua brava mãe, a ainda jovem Dona Inhana passara no Padre Fernando por estar bulindo com as suas meninas. Não consta contudo, que tenha havido excomunhão ou rogo de praga por parte do batinado. Mas a salvação veio, em 24, numa providencial mudança para o vizinho povoado do Brumado, onde havia emprego remunerado - e distância do pecado.