Testemunho: Apenas uma família

Apenas uma Família

Com minha esposa somos voluntários a mais de 14 anos em Grupos de Apoio para pessoas que saem da negação e querem se recuperar em alguma área de sofrimento na vida.

No meu caso sou uma pessoa em recuperação de TDAH- Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Estou em recuperação de distração crônica, falta de focalização, desorganização.

Me envolvi em 15 acidentes de carro. Três acidentes, quase fatais: uma vez quase fatal sozinho batendo num poste com perda total do veículo, uma segunda vez quase fatal com esposa e duas filhas pequenas numa rodovia a noite e outra terceira vez ainda com crianças pequenas, filhas e filhos de amigos em idade escolar nas caronas para a escola.

Faço acompanhamento médico regularmente: medicamentos, consultas regulares, estruturação constante Grupo de Apoio e voluntariado para me manter em crescimento.

Saí da negação com ajuda da minha esposa Lilian, com médico especialista, com literatura específica. Fomos juntos para a recuperação e crescimento através de Grupos de Apoio. Descobrimos outras áreas a serem tratadas, eu saí da negação do meu TDAH da religiosidade e feridas emocionais. Lilian saiu da negação da ansiedade, codependência e perfeccionismo.

Desde que comecei o tratamento a 14 anos não me acidentei mais. Minimizei outros prejuízos sérios e crônicos nas diversas áreas da vida, que eu não havia percebido ainda, devido a minha negação e em parte por causa do TDAH. Para se ter uma ideia, não conseguia compreender uma leitura simples e nem terminar de ler um livro completo por falta de concentração, por causa da distração crônica e falta de focalização.

Com medicação e estruturação ensinada por orientação médica e terapêutica agora consigo ler adequadamente, ser preletor e apoiar pessoas a lidar com seus complexos e dificuldades. Apoiar familiares que necessitam conviver com pessoas portadoras de TDAH.

Lilian trabalha a 27 anos na área de acessibilidade, é tradutora e intérprete de LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais. Se dispôs a ser voluntária desde que viu pela primeira vez surdos se comunicando em Libras, sentiu amor pelos surdos e desejo de se comunicar. Queria saber dizer em Libras pelo menos um "olá". Ser uma amiga ouvinte deles, queria servir em amor o próximo surdo, como servia o próximo ouvinte. Sabia que não poderia sem aceitar a língua deles e cultura dos surdos.

Lilian não só foi aprender Libras para se comunicar com os surdos, decidiu ensinar nossas filhas a amar os surdos ensinando Libras, a língua materna do surdo. Treinava e ao mesmo tempo ensinava Libras em casa, na época nossas filhas com 4 e 2 anos. Sinal de "oi", foi o primeiro a ser aprendido. Depois sinal de "olá", "quero água", "arroz", "feijão", "quero ir ao banheiro", "eu te amo queridas filhas", "eu te amo mamãe", "eu te amo papai', "como posso te ajudar?' Depois de aprendido a se comunicar com surdos começando com o sinal de "olá", nunca mais deram "tchau" para os surdos, nem para Libras e nem para sua cultura tão peculiar.

Com 7 anos minha filha já ia com crianças surdas de amigos surdos treinar Libras na padaria da esquina pedir “refrigerante” para eles. Na farmácia explicar que tipo de dor estavam sentindo, e que remédio estavam querendo comprar. Já adolescente, a pedido deles, ajudava no telefonema, ligar para parentes e avisá-los que estavam bem, passar um recado, avisar de um possível atraso de chegar em casa, avisar que iriam dormir na casa de outro amigo, avisar que encontraram o endereço que estavam procurando e tinham chegado ao destino. Coisas da vida de qualquer um.

Via minha filha ao telefone e um do surdo fazendo Libras para ela, "mandando ver', ...rs literalmente, "ver" seus sinais e ela traduzindo para pessoa do outro lado da linha. Imaginava o coração do outro ouvinte: uma mãe? Um pai? Um irmão? Uma tia? Uma avó? Um responsável? Talvez a pessoa do outro lado, pela primeira vez tinha deixado o seu querido filho surdo sair com amigos, imaginando com o coração apertado de preocupação, de ansiedade, de culpa talvez, de dúvida de ter deixado o filho ir sozinho. Já era a hora do surdo sair sozinho? ...ou mais uma vez deveria ter ido junto? ..."para não ele não se perder", afinal como o surdo voltaria para casa se não tem alguém que fale sua língua.

A voz da minha filha no telefone foi muitas vezes um bálsamo de alívio para o coração da pessoa que estava do outro lado da linha. Uma voz. Não a voz da minha filha em si, era a voz do surdo! Minha filha era só o amor no lugar certo...para pessoa certa...pela razão certa.

Na família aprendemos na prática que aprender a "linguagem do outro é aceitar o outro" se tornou um meio prático de amar o próximo surdo e ensinar os ouvintes a amar os surdos através da sua linguagem. Nossas filhas cresceram convivendo com surdos, com a cultura surda.

Conviveram com o amor e o voluntariado entre os surdos, de ajudar quem pedisse ajuda, quem de fato precisasse de ajuda. O amor pelos surdos se tornou uma missão familiar, apoiar o surdo a ter acesso a toda informação que todo ouvinte tem.

Lilian hoje em dia como profissional presta serviços em instituições, empresas, escolas, congressos, teatro, agências de publicidade. A vida entre os surdos a capacitou para sensibilizar quem quer aprender Libras a amar o surdo aprendendo sua cultura.

Nossa filha Lidiane agora tem 27 anos, hoje casada. Formada em Educação Física, por ter aprendido desde criança Libras, se comunica com surdos, pode ajudar os surdos a ter acesso a informação quando é necessário no dia-a-dia.

Nossa outra filha Naiane agora tem 29 anos, casada. Formada em Letras-Libras pela UFSC. Atua como voluntária e profissional em múltiplas áreas necessárias, interpretando e traduzindo para surdos adultos e surdos crianças, dando a eles acesso a informação em teatros, filmes, museus, faculdades, contação de histórias, música erudita, poesia, fóruns, musicais, hospitais, desfile de moda. Elaborando textos, e participando de discussão para apoiar os surdos e grupos de minoria a terem acesso ao direito de amarem e serem amados.

A partir do ano de 2013 decidimos servir mais intensamente como voluntários para recuperação de pessoas. Levantamos recursos para o nosso sustento através de doações de livros usados com amigos, conhecidos e pessoas como você que se quiser é só entrar em contato com a gente.

Estamos no 12º passo do Programa de Grupo de Apoio que diz: "tendo recebido um despertar, através do exemplo e palavras levar a mensagem a outros"

Ricardo Olah

11 984477529