Auto-Biografia em 3° pessoa*
Capítulo 1
Do passado e do presente
Nem ele sabia quem era, e provavelmente passaria toda a sua vida sem saber. Agora só sabia que se chamava Sebastião Freitas, nome comum para qualquer pessoa, mas vendo as pessoas por dentro, elas não nos parecem comuns.
Visto de fora, Sebastião – ou “Tião” como sempre fora chamado em sua vida – era um mendigo, com apenas um par de calçado, duas blusas de inverno, uma camiseta simples e bem rasgada, e uma calça com a perna direita pela metade.
Já estávamos no mês de Maio, o outono se tornava a cada dia mais rigoroso, a temperatura não subia e a esperança de Tião desaparecia aos poucos.
Encontrar a sua família, era essa a maior esperança de Tião, sua esposa e seus 5 filhos que abandonou em um momento de fúria misturado com boas doses de cachaça.
Apesar da roupa parca, do dinheiro inexistente, e da barba crescer cada vez mais dia após dia, Tião era um homem com uma instrução e conhecimento invejável.
Era um intelectual, olhava as pessoas de dentro pra fora, mas nunca antes olhou para dentro de si mesmo, tinha medo do que poderia descobrir.
Seu nome e a morte eram suas únicas certezas naquele momento, seu futuro lhe parecia incerto, mas em outros tempos, tinha certeza de que teria uma bela carreira como Cineasta.
Formado pela melhor faculdade de cinema do Brasil, Tião era sim um bom homem, só não teve sorte, esperteza e oportunidade.
Nunca soube o motivo que o fazia beber, poderia ser herança de seu pai, que ao contrário de Tião, batia em sua esposa e filhos, por menos de um “A” proferido contra ele.
Podia ser pela falta que sentia de sua família, mas sabia que esse ainda não era o motivo, pois Tião deixou sua família justamente por beber excessivamente.
Na verdade, ele bebia apenas por beber, e a bebida já não lhe causava mais aquele furor do começo, agora, a bebida lhe causava dor, saudades e lágrimas.
Ele tinha alguns “amigos” de bar, aquelas pessoas que sempre estavam dispostas a pagar uma companhia para beber.
Havia vezes em que Tião chegava tão desesperado por bebida que pedia até mesmo para desconhecidos. Já tinha conhecido todo tipo de pessoas, conhecera bandidos perigosos, chefes de família tão desesperados como ele, pedreiros tomando a “saideira” de sexta-feira. Um desses pedreiros ficou comovido com a triste história de Tião e arrumou um emprego para ele, Tião era vigia noturno de uma obra de um novo shopping center, mas foi demitido 3 dias depois por dormir durante a noite e permitindo – mesmo que sem querer – o roubo de algumas vigas de metal e fios de cobre. O que foi roubado, foi descontado do salário que Tião já não tinha, sendo assim, 0 + 0 = 0.
Quando ficou sabendo do que foi roubado, e que já não teria mais salário, Tião se desesperou, não queria perder a única coisa que ainda tinha e que já lhe parecia pouco, a sua Dignidade, ficou com vergonha de seus “colegas de trabalho” e foi embora dali, e nunca voltou.
Dormia na rua, faziam 4 anos que deixara a sua família, até conseguira algumas boas oportunidades, tinha conhecimento, mas não tinha a malícia de que necessita o mercado de trabalho.
Quando deixou sua casa Tião contava com 36 anos, seus filhos, quando os deixara a mais velha tinha 13 anos e o mais novo contava apenas com 11 meses, lembrava-se constantemente da animação de sua esposa com a pequena comemoração do primeiro ano do seu 5° filho. Quando foi embora, faltavam apenas 7 dias para a festa, deixou um bilhete na cama no lado em que dormia, explicou a sua esposa que já não poderia mais ficar, estava com um monstro dentro dele implorando por liberdade, e essa liberdade o assustava, seria melhor assustar-se sozinho.
Sentia falta dos abraços, do carinho, do cheiro do cabelo e do hálito de sua esposa, quando ela dizia carinhosamente no meio da noite que o amava, e que tudo ficaria melhor de manhã, ele lembrava das palavras dela como se ela sussurrasse ao seu ouvido:
- O escuro assusta, pois não podemos ver o que está em nossa frente, mas tudo ficará melhor de manhã.
Para Tião, sua vida agora era um escuro total. Era limitado apenas a ver os segundos passando vagarosamente no relógio da Estação da Luz, um de seus lugares favoritos para passar a noite, apesar do barulho intenso dos carros à noite, aquele relógio imenso o encantava.
É obsessivo por livros, pelas palavras, pois já não tinha mais livros e todas as suas tentativas de entrar nas bibliotecas públicas foram frustradas, algumas bibliotecárias pensaram que era assalto, tolas, o que haveria em uma biblioteca pública de interessante para um ladrão audacioso? Outras ainda, pensaram que ele queria apenas descansar, e arrumar um lugar para lavar o rosto – o que não era de tudo errado – mas a sua falta de banhos diários incomodava os leitores.
A sua única saída para manter contato com as palavras era ler pedaços de jornal do dia anterior, rasgados aos pedaços pois agora serviam apenas para embalar peixe na feira.
Com cuidado Tião recolhia pedaço por pedaço, como um quebra-cabeça, às vezes tinha sorte e conseguia uma folha inteira, que devorava em poucos minutos com tanta sede, mas não sabia se era sede de conhecimento ou medo de esquecer tudo o que aprendera até então.
Depois do jornal lido, servia para cobri-lo nas noites de frio, não era como o corpo quente de sua mulher, mas servira para não morrer de hipotermia nas noites de frio rigoroso.
Gostava do dia, e como o Sol o fazia lembrar dos longos cabelos loiro – avermelhados de sua mulher, gostava da brisa, que nos últimos anos era a única coisa que ele sentia perto do seu rosto, sem medo.
Passavam-se os dias sem que percebesse, não tinha mais noção de que dia estava, e quando se encontrava sentado no balcão do bar, olhava atentamente para o calendário preso na parede por um prego enferrujado, tentando adivinhar em que dia se encontrava.
Sabia o mês por causa da temperatura do ambiente, e sabia os dias da semana conforme a roupa das pessoas e o movimento nas ruas.
Os dias já não o importavam mais, o tempo era seu inimigo desde que nascera.
Tião emagrecera muito desde que saíra de casa, sua fisionomia era quase anoréxica, comia raramente, quando passavam por ali pessoas que sentiam pena dele, ou algo como “Exército da Salvação”, quando sentia sede bebia a água de algumas fontes que existem no centro de São Paulo, na maioria – para não dizer em todas – a água é suja e imprópria para consumo.
Lembrava-se constantemente do livro de Clarice Lispector “A hora da estrela”, e como se parecia com a personagem principal do clássico que tinha lido para trabalho do Ensino Médio.
Em algumas tardes, pela falta do que pensar, Tião encontrava – se, ridiculamente sentado olhando fundo para as pessoas, e tentando associar a personalidade com algum personagem de algum livro que lera. Encontrara “Macabéas”, “Capitus”, “Brás Cubas”, e tudo o que havia de clássico na literatura brasileira.
Outras vezes em que tinha muito o que pensar, pensava em como pedir desculpas a sua mulher, pensava para onde correr quando havia trocas de tiros de bandidos com a polícia, coisas assim que preenchiam de devassidão as suas tardes sempre ociosas.
Nas madrugadas em que não conseguia dormir, prestava atenção nas estrelas quase inexistentes no céu de São Paulo, a vontade de voltar para casa crescia, beijar a sua esposa, abraçar apertado cada um dos seus cinco filhos, às vezes acreditava tão cegamente nesse objetivo que pedia uns trocados no farol para completar o dinheiro da passagem do ônibus, a maioria das vezes aproveitava-se da boa-fé das pessoas fingindo-se de aleijado, sempre conseguia mais dinheiro assim.
Voltar para casa era apenas uma desculpa que arquitetava em sua mente para sentir-se o menos culpado possível quando olhasse nos olhos das pessoas que o ajudavam.
Desde que saíra de casa, o mais perto que ele conseguiu chegar do caminho de volta foi até o começo da rua onde morou, escondido atrás de um poste, viu a sua mulher saindo de casa com uma mala grande, pesada e com as alças quase rasgadas no ombro, a mala estava cheia de “muambas”, vindas especialmente do Paraguai, para atender a sua clientela escassa e sem dinheiro.
Tião percebeu que sua mulher já não tinha o mesmo brilho nos olhos, e estavam aparentes algumas marcas da idade, quando viu a sua mulher naquele estado,Tião desistiu momentaneamente do passado.
Às vezes chegava perto de alguns homens trajados para o fim de semana, com a sua mulher ao lado e seu filho nos ombros, Tião sentia uma estranha sensação de coisa alguma, um vazio, uma saudade do que já não sabia como era.
Para Tião os dias eram sempre iguais, as noites eram angustiantes, principalmente quando vira de perto alguns companheiros de rua sendo queimados por “playboysinhos” bêbados. Ficou com tanto medo de morrer naquele dia, mas quando os ataques cessaram, ele se perguntou o que ainda teria perder nessa vida? Quem sabe uns olhares horrorizados, com dó do seu estado, ou até mesmo pessoas que quando o via atravessavam a rua de medo, mas ele nunca soube se era medo do cheiro forte que exalava, ou de sua fisionomia.
O único motivo que tinha para dar um sorriso algumas vezes, era o apelido lhe deram no bar que procurava na maioria das vezes nas suas terríveis horas de abstinência, quando chegava era chamado de “Bin Laden” por causa da barba longa e das roupas que pareciam de um refugiado de guerra.
Quando estava bêbado Tião tinha reações diferentes, dependia das suas necessidades mentais, quando estava angustiado chorava, quando bebia para esquecer tudo, realmente esquecia, e sorria e gargalhava para qualquer um, quando sentia falta de sexo, corria atrás de qualquer uma, bonita, feia, baixa, alta, enfim, todas as mulheres que via, mesmo as que não satisfaziam o seu gosto. Por isso, Tião fora preso algumas vezes, e nas vezes em que não era preso, tomava uma boa coça da polícia, lembrava de seu avô quando era criança:
- “Tem que tomar coça de criar bicho pra ver se aprende !”
A partir da décima coça que tomara Tião aprendera bem a lição, quando estava com muita vontade de “fazer amor” lembrava-se de sua mulher, abaixava as calças até os joelhos e fazia o que tinha de fazer, ali mesmo, na rua, onde era o único lugar que ele tinha para dormir, comer e todas as suas outras necessidades, por isso Tião fora preso algumas outras milhares de vezes por atentado violento ao pudor.
Tudo já havia acontecido na vida sem sentido de Sebastião Freitas, o que ele queria era encontrar um sentido, para viver o futuro e esquecer o seu passado doloroso, seu passado cheio de vazios e abandonos, seu passado covarde, mesmo que ainda achasse que tinha razão em deixar a sua família, naquela altura, queria viver junto deles mesmo que a razão lhe faltasse.
Sebastião ainda teria que fazer muitas descobertas, mesmo que ele não suportasse o teor das descobertas, mesmo que ele não quisesse descobrir mais nada, pois as descobertas seriam cada vez mais dolorosas. E o tempo era seu inimigo desde que nascera.
Acordou uma manhã depois de um sonho lindo, como os que não tivera nesses últimos 4 anos.
Tião sonhou que era um bem-sucedido documentarista brasileiro, que havia ganhado muitos prêmios, e tinha o apoio integral de sua família em tudo o que fazia, amava a sua mulher de um modo intenso todos os dias e saia feliz e engravatado para reuniões intermináveis com sócio-investidores nos seus novos projetos.
Acordou aquela manhã esperançoso, com um sorriso largo, e sabia que não precisaria beber aquele dia, pois o seu sonho já o havia entorpecido durante 24 horas, ou quem sabe até mais.
Naquele dia não pediu dinheiro, não pediu cachaça no bar, e conversava com qualquer pessoas que parasse ao seu lado. Algumas pessoas saíram correndo, outras pararam para escutá-lo, outras como os milhões de paulistas que existem, estavam ocupados e apressados demais para escutarem a si mesmos, quanto mais a um mendigo que não fazia nada todos os dias e que o sustentavam pagando em dia todos os impostos.
- Para que parar para escutar um homem como este? Para que, se eu já pago boa parte do que ele consome e a limpeza de boa parte do que ele suja.
- Suja mesmo é a mente dessas pessoas – assim pensava Tião, quando não estava bêbado.
Naquele dia não olhava as pessoas de dentro para fora, e teve uma estranha experiência de olhar para as pessoas como elas o olhavam.
Um dia estranho com certeza, conseguiu conversar com duas velhas senhoras que esperavam o ônibus no ponto final do Largo do Paissandu, conversaram sobre como a vida era injusta, e por um momento a sua velha melancolia voltou, mas só por um momento. Seu dia estava bom e quase não se lembrava de como a sua sorte lhe tinha sido injusta.
Depois que as duas senhoras adentraram o ônibus ele as olhou com olhos de agradecimento, o que deixou - as felizes, e com os seus poucos dentes restantes, abriu o seu melhor sorriso, o que inesperadamente elas retribuíram.
Tião sentira-se assim poucas vezes desde que deixou o seu lar, dava-se para contar nos dedos.
Depois das duas senhoras nenhuma outra pessoa conversou com Tião aquele dia, inesperadamente ele não se importou.
Estava com tanta ansiedade para que chegasse logo à noite e a sua hora de pegar no sono outra vez na esperança de ter outro sonho como aquele, que era só em que pensava.
O dia passava mais devagar do que imaginava e a cada minuto desejava cada vez mais que a noite chegasse de uma vez, a cada minuto as horas iam se tornando cada vez mais angustiantes.
Quando a fome chegou e ele não sabia o que fazer para acalmar o seu estômago por provavelmente mais 4 ou 5 dias, desesperadamente bebeu água da primeira fonte que encontrou, e bebeu água, como se não bebesse a 5 dias. As pessoas olhavam como se condenassem a sede de Tião.
Tião já não se importava mais, sabia que se desse importância morreria de sede e/ou fome, pois as pessoas que o condenavam eram as mesmas que certamente lhe negariam um prato com comida se necessário.
Naquele dia, depois de tomar uma quantidade exagerada de água, Tião saiu vagando pelas ruas do Centro Velho de São Paulo, foi para o Pátio do Colégio, que o fascinava, mas desde que a sua aparência começou a se tornar horrorizante, Tião já não voltara ali, com medo dos policiais que faziam à segurança do lugar. Mas hoje, Tião não se importava com policiais, nem com o olhar das pessoas, Tião queria hoje, além de um suculento prato de arroz com feijão, era lembrar o que lhe havia acontecido de mágico em seu passado, as descobertas nas aulas de história e geografia, que relembrava olhando e contando a si mesmo a história de cada monumento da cidade, as intermináveis leis de matemática e física, que relembrava aplicando a qualquer coisa que se movesse.
O arroz com feijão não veio, e a sua ânsia por não esquecer o que aprendera, se foi.
Do que adiantaria não esquecer se não teria ninguém para ensinar?
Lembrou-se de que era essa a parte maravilhosa de ser pai, poder ensinar tudo o que sabe, e aprender o que não sabe. Logo Tião imaginou-se sentado com a sua filha mais velha ajudando-a entender os exercícios de matemática, foi uma visão que lhe deixou em estado de êxtase, uma, dentre as muitas que o deixava perturbado, apenas uma visão de futuro dentre as muitas do seu passado.
Pela primeira vez em meses sorriu em um momento de lucidez.
Seguiu caminhando e mesmo lúcido não sabia onde estava, parecia que nunca havia estado ali antes, mas aquele lugar era velho conhecido de Tião, ele só adquiriu uma visão diferente da mesma coisa.
Nesse tempo todo em que passou desamparado, havia adquirido também uma visão diferente de Deus, já não era tão crente como antes, já não sabia mais como Deus poderia lhe ajudar.
Suas crenças, suas visões de certo e errado, até mesmo sua aparência, mudaram de uma forma assustadora e desagradável ao longo desses anos.
Definitivamente, mesmo que repentina e magnificamente sua vida mudasse, ele não seria mais o mesmo homem, cheio de sonhos e idéias para fazer realidade.
Antes de parar para dormir, Tião parou em uma padaria e pediu ao atendente um pouco de água potável para beber e lavar o rosto, o atendente tomou em suas mãos uma velha garrafa PET que estava encostada no chão do balcão, encheu-a de água e deu-a para Tião, ali mesmo ele abriu a garrafa e bebeu deixando água em um pouco mais da metade, Tião deveria economizar se quisesse ter água por pelo menos mais 4 dias.
*Trecho do livro que será lançado em breve para o público.