Memórias - Parte 7
Agora eis-nos novamente, a mamãe trabalhando, eu lutando por um ideal e a minha irmã com 10 anos sem orientação paterna, sem querer obedecer, nem estudar com afinco, mas contudo freqüenta a escola, brinca muito na rua, vive como quer, pois tinha que obedecer a irmã mais velha e a isto ela não queria se submeter. Foram muitos os aborrecimentos que me causou. Eu é que tinha que comparecer aos colégios para receber as queixas das professoras e ouvir frase assim: “Duas do mesmo ventre, mas em tudo diferentes” ou esta “A irmã foi ótima aluna, mas esta faça-me o favor”... E com estas comparações a garota se tornava cada vez mais rebelde. E eu sem condições de agir, visto também ser adolescente, embora adulto! Finalmente ela consegue concluir o curso primário!
Era dezembro de 1949, eu aborrecida de um serviço que não gostava e sentindo falta das férias à beira-mar, que já havia cinco anos que acompanhava minha tia e ali na fazenda (aquela mesma em que eu havia estado com meu pai, após a morte do meu irmão e agora pertencia á minha tia) : gozávamos dias inesquecíveis em contato com a natureza tendo fartura de peixes que eram pescados às toneladas. A casa era a mais confortável da região! Como eu gostava daquilo tudo e minha tia iria de precisar de companhia visto que um dos filhos queridos iria embora de vez para o Rio de Janeiro, ela estava inconsolável e ele pediu-me para que eu fosse, abandonei o serviço, sob os protestos da mamãe e fui. Após 15 dias ali, encontrei-me com uma conhecida que me deu a notícia de que a Prefeitura de minha cidade teria aberto um Concurso para Auxiliares de Ensino. Lamentei não ter sido informada, pedi um cavalo à minha tia e voltei para cidade. Fui para a Prefeitura. Havia encerrado o prazo há algumas horas. Estavam inscritos 19 candidatos. Tive vontade de chorar. Eu que fui dezenas de vezes ali, agora fui a última a saber.
Mas que Deus que vela sempre por nós me ajudou. O prefeito resolveu prorrogar por 24 horas e eu aproveitei e completei o quadro de 20 candidatos. Estudei com afinco durante os 40 dias que precediam aos exames. Devo citar um fato interessante: era época das férias da mamãe e eu precisava de dinheiro para pagar algumas aulas particulares visto que o programa exigia preparo ginasial. Se pagássemos a escola, como iríamos nos alimentar durante aquele mês?! Então decidimos: a mamãe e minha irmã foram para a fazenda com a titia e eu fiquei sozinha em casa estudando durante noites e dias. Isso sem dar demonstração aos vizinhos pois apesar da nossa pobreza nunca pedimos nada emprestado aos outros, mesmo sabendo de parentes ricos, jamais os incomodamos! Era um princípio que trazíamos naturalmente.
Finalmente chegou o dia do exame. Felizmente fui aprovada com média 96. Era o 1º lugar. Fiquei muito alegre e dei graças a Deus. Restava aguardar a nomeação. Isso sucedeu assim. O prefeito declara o seguinte: “Estamos em março. As candidatas aprovadas com as melhores notas deverão aguardar até junho, quando criaremos novas escolas aqui na sede e elas terá a preferência. As demais candidatas terão que escolher as escolas rurais das zonas adjacentes”. Pensei, raciocinei, eu não queria deixar passar a oportunidade! Examinei o mapa ali exposto e assinei o compromisso de ir trabalhar numa escola que distava 24 quilômetros da cidade. E assim montada a cavalo ou a pé, fui sozinha por aquelas estradas durante o primeiro semestre. Sentia muita alegria em toda aquela aventura! Era perigoso, mas Deus me guardava!
Lá havia tanta carência de ensino e tanta gente sem escola que tive de matricular 90 alunos e dividir em 2 classes. Lecionava durante 8 horas diárias quando deveriam ser quatro. Mas fazia tudo aquilo com prazer. Ia para ali às segundas feiras e regressava aos sábados, carregando muitos presentes tais como: camarões, ovos, peixes, laranjas, cacau e etc. Era um povo muito grato, me estimavam muito! Deram-me uma menina para dormir comigo como companhia. A casa ficava à beira de uma estrada e nos fundos havia densa plantação de cacau. Não havia iluminação elétrica.
Mas em julho do mesmo ano fui transferida para a sede e promovida à letra mais alta, como reconhecimento pela minha humildade e esforço e assim descansei um pouco das minhas preocupações, tendo agora um emprego garantido, atingindo em parte um ideal, tendo oportunidade de conviver com a classe média, sem ser repelida. Agora tudo era mais fácil. Agora todos me davam atenção e era chamada de “professora”.
Acho que tudo isto foi uma recompensa para quem tanto lutou e não conseguia atingir o almejado. Mas voltemos à vida no lar. Tudo continua em ritmo de trabalho e Igreja. Vivíamos em paz.
Mas falemos do meu avô materno que ainda não mencionei. Este era filho de escravos, muito alegre e trabalhador. Tinha como profissão ser construtor de casas e tocava clarineta na banda musical. Sua maior vaidade era ter sido participante da Guerra de Canudos em 1897 e ter conhecido o Sul do País. Ficara viúvo quando a mamãe tinha apenas 18 meses. Esta fora criada pela mãe dele, velha caipira e ex-escrava e posteriormente ele casara-se e trouxe a filha em idade escolar para ser alfabetizada. Mas a madrasta desta era má e inculca naquela criança só complexo de inferioridade, tudo porque era de cor negra, mas não obstante, quis o destino que ela casasse com um homem branco de família com alguma tradição, o que levou o vovô a não crer nas boas intenções de meu pai e como este agia da maneira já exposta, ele também resolve em nada ajudar-nos. Foi por isso que ele apesar de ter vendido quatro casas e um pequeno barco de pesca, resolve vir para a nossa cidade. Fica conosco até construir sua nova casa, na qual a mamãe ajudou muito com algum dinheiro. Mas repentinamente ele adoece. Ele costumava enterrar o dinheiro e assim avaramente morreu. O dinheiro foi encontrado por vizinhos enterrado sob uma árvore. É mais um sentimento que sofremos, principalmente eu que estava trabalhando fora e não assisti a sua morte! Mas, contudo deixou saudades...