Memórias - Parte 2
Após a mudança, a mamãe ganha uma menina muito forte, bem mais clarinha que nós e que de tão calada recebe a alcunha de “santinha”. Era mais uma luta para mim, que não sabia dar conta de um recém-nascido, pois tinha nove anos; esta é guardada numa creche juntamente com a outra menina de dois anos. Na hora que a mamãe ia para o serviço, lá ia eu ajudá-la a carregá-las até lá e à tarde tinha que estar lá para trazê-las!
Quando a mamãe ficava muito cansada eu tinha que ir lá às onze horas a fim de levar o almoço por mim preparado. Já se vê que não sobrava tempo para pensar em bonecas ou outro brinquedo. Também as bonecas que podíamos comprar eram feitas de pano e muito feias, não animava. Mas um dia tive um brinquedo mais caro: o papai tirou numa quermesse um jogo de quarto para bonecas com penteadeira, como lá em casa não havia móveis bonitos fiquei tão empolgada que guardei o brinquedo e de tão guardado descolou. Certa feita também era Natal. Meus pais não podiam dar presentes, mas o papai foi para o mar e achou uma boneca que foi ofertada para Iemanjá. Era assim que podia adquirir brinquedos! Mas com a vida que levava, só pensava mesmo era nos livros e os adquiria sempre em segunda mão, livros usados por serem mais baratos.
Mas estávamos falando da irmãzinha caçula, que agora já com nove meses é acometida de terrível erisipela em todo o corpo. Naturalmente foi ao médico, mas a mamãe agora no 9º filho não conseguiu adquirir experiência ou sabedoria e tenta extinguir aquela doença através de benzedeira. É mais uma criança que teríamos de acompanhar ou segurar na alça do caixão até o cemitério. Fui anunciar à titia e o seu jardim muito bem cuidado por jardineiro estava bastante florido. Ela colheu uma braçada tão grande de margaridas que eu mal podia carregar! Ir lá certamente ela não iria então mudamos o trajeto e passamos em sua casa para que ela visse a sobrinha morta. E assim é mais uma que parte!
E assim decorriam os dias até que em 1943 o irmão amanhecera doente e como os sintomas eram de necessidade de lombrigueiro os pais, sem consultar um médico e sem conhecimento das conseqüências, me enviam à farmácia para buscar o vermífugo, era um 19 de novembro. Quando passei em frente à escola onde a muito custo conseguira chegar ao 3º ano lá estavam as colegas garbosas em seu uniforme para o desfile do Dia da Bandeira, mas eu não poderia tomar parte, pois meu irmão estava doente. O farmacêutico enviou a dose do remédio e é meu pai quem dá ao garoto que estava febril, e depois saía deixando o doente aos cuidados da irmãzinha. Ao meio-dia, a mamãe regressa à casa para o almoço, encontra o menino muito abatido, fica aflita, mas precisa voltar para a fábrica. Me deixa na incumbência de vigiar o doente e dar-lhe a alimentação, que era angu de farinha de mandioca e peixe salgado feito à escabeche. Obedeci tudo à risca, porém o doente quase nada comeu, pois estava cada vez pior. Às 16 horas a mamãe regressou e mandou que eu fosse ver o meu pai nos vários lugares onde costumava ficar. Fui em desabalada carreira, porém não o encontrando, eu mesma resolvi ir em busca de um médico, chamei três dos quatro médicos existentes na cidade. Porém ao citar a rua em que morava, a falta de emprego do papai, enfim a situação de total falta de recursos, só o médico do Centro de Saúde resolveu atender. Lá chegando, às 18 horas, examinou o doente, aplicou-lhe uma injeção e deu o diagnóstico: envenenamento. Talvez não haja cura. A pobreza dos pais e a falta de conhecimento junto ao desinteresse dos médicos quando trata de pobres em cidades do interior, fez com que o menino só sofresse aquela noite, pois ao raiar o dia 20, num fatídico sábado, ele dá o último suspiro! O papai quando regressou à casa e viu o filho agonizante, julgou-se culpado e caiu em estado de prostração, ficando deveras desesperado; a mamãe muito aflita chorava muito! Quem cuidaria dos preparativos para os funerais?! A menina irmã, certamente ela sabia onde buscar certidão de óbito, comprar caixão, ir ao cemitério, etc., etc. Chovia copiosamente. Felizmente um vizinho resolve ajudar-me a providenciar tudo. Aproximava-se a hora em que o corpo do infeliz deveria ir para o cemitério, mas era impossível, pois a chuva caia torrencialmente e o cemitério distava uns três quilômetros em trechos de íngremes ladeiras de barro vermelho. É adiado o sepultamento para o dia seguinte bem cedinho. Talvez que este adiamento fosse necessário para que eu pudesse contemplar o corpo inerte do meu companheiro de 10 anos que muitas vezes brincava ou brigava, mas era preciso.E foi o que eu fiz por algumas horas, até que o sono também me assaltou visto estar tão cansada das lutas daqueles dias! O papai estava tão abatido com a dor da perda do filho que nem pode acompanhar o féretro. Piorou tanto seu estado que eu tive que voltar a chamar o médico, o mesmo que dois dias antes me havia atendido, porém não houve melhora. O pai sofre terrivelmente de dor na cabeça e crises de choro; apareceram-lhe coceiras no corpo que o deixaram desesperado. Era desolador o quadro que eu assistia diariamente. Via o papai deitado numa “marquesa” sem colchão, no cômodo a que chamávamos cozinha. Esta era ampla e coberta de telhas, pois o resto da habitação era de sapé e chão batido, porém na cozinha não havia um fogão, apesar dos queixumes diários da mamãe.