Eu alucinado?

Eu alucinando?

Como comentei anteriormente, sempre tive o péssimo hábito de acreditar no que as pessoas dizem. E, pior ainda, sempre achei que as pessoas pensavam antes de falar!

Portanto, sempre que alguém pedia algo, eu fazia o que havia sido pedido.

Faço uma pequena digressão novamente. Na época em que trabalhei na Amazônia, passei por uma situação muito instrutiva. Eu havia pedido algo para meu capataz, e ele não fez como eu achava que deveria ser.

Ele respondeu: “doutor, eu fiz exatamente de acordo com as suas instruções!”.

Eu continuei: “eu não dei instrução alg..........”.

Parei a frase pela metade, pois percebi que não poderia querer que ele fizesse exatamente como eu faria, sem dar para ele as devidas instruções.

Passei a ser extremamente prudente nas interpretações. Comecei a ser extremamente dialógico na execução do que quer que fosse solicitado. Sempre fui curioso, agora parecia mais curioso ainda.

Sempre que um pedido ou solicitação parecia oferecer mais de uma execução operacional, eu buscava entender, de qual maneira o solicitante desejava. Talvez a minha arquitetura de raciocínio seja muito visual e eu precise ter um entendimento mais abrangente do que se solicita.

Mas fui percebendo que esta dialogia não era bem recebida em determinados ambientes. Minha atual companheira, sempre questionou o excesso de perguntas para se fazer algo. Eu explicava que era para garantir, ou pelo menos reduzir, as possibilidades de erro. Algumas vezes ouvi que viver era correr o risco de errar. Tudo bem, até concordo, mas tudo depende de que maneira este erro é recebido!

Sempre me considerei bastante observador, talvez isto me faça tentar antever eventuais problemas operacionais. Tenho o lado “curioso praticante” que me leva a querer saber, independentemente de eu ter necessidade daquele conhecimento. Não sou utilitarista do conhecimento, com o tempo desenvolvi a paixão por aprender e isto me motiva. Seria uma espécie de conhecimento passional. Mas a vida tem mostrado que em determinados ambientes, como o doméstico, estes procedimentos não são um sucesso.

Cito uma situação emblemática. Certa feita ouvi a seguinte solicitação: “ Minha esposa falou: “ pegue meu óculos na cozinha”.

Fui à cozinha e não achei os óculos. Procurei até na geladeira, por via das dúvidas! E nada! Quando voltei com a missão fracassada, ouvi que eu não entendia “linguagem figurada”, pois era para pegar a bolsa no quarto! Para mim, aquilo não era linguagem figurada e sim erro de informação.

Silenciosamente eu me questionava se havia ouvido corretamente. Por mais que eu tentasse acreditar no erro auditivo, mais me apercebi de que estava tentando contar uma mentira centenas e centenas de vezes, para ver se ela acabava virando verdade. E eu acreditaria nela.

Mas parei antes da milésima repetição! Felizmente!

Diversas outras vezes, passei por situação semelhante. Sempre com a garantia posterior de que quem solicitou verbalizou corretamente e quem ouviu é que ouviu errado.

Quantas vezes precisei repetir para mim mesmo, enquanto procurava algo:

“Cara, você sabe que existe, você já viu, já viu pelo menos uma vez, você acredita que existe, geralmente costuma existir!”

Parece um mantra que busca apoiar um pouco de lucidez! Quando alguém garante que sempre fala correto e você sempre entende errado, levanta-se a hipótese de alucinação recorrente. Mas quando em diversos casos existem testemunhas que garantem que o que você ouviu é o que foi dito, isto causa certo alívio. Eu não estou pirando, ao menos, ainda não.

Ainda que não seja a etimologia correta da palavra, costumo dizer que alucinação poderia indicar, a partir de uma fragmentação da palavra, o prefixo “a” como negação e lucinação, a existência da luz. Então, alucinar seria estar sem luz. Claro, não me furto a uma boa piada: “quem deixa de pagar a conta de luz fica alucinado”. Não, deixar de pagar a conta de luz e ficar no escuro não é alucinação, pois as contas são reais, elas existem.

“Eu não creio em contas, mas que elas existem, existem!” (daria um belo lema urbano contemporâneo)

No quesito alucinações, posso descrever uma miríade (sempre quis usar este palavra) de casos, mas vou descrever o que julgo ser emblemático.

São tantos casos que hesito na escolha. Vou escolher ao acaso, pois a probabilidade de eu pegar um significativo é bastante grande. Neste caso, o universo conspira a favor, o que no fundo é conspirar contra!

Recordo-me de quando comecei a lecionar para pós graduação e licenciados que buscavam a segunda graduação. Claro, quando fui me candidatar, a Coordenadora não me conhecia, e, portanto, não tinha a “obrigação” de acreditar que eu poderia ser um docente acima de uma linha de mediocridade. Ela leu o meu currículo e disse que “iria pensar”.

Algum tempo depois ela “pensou” e me ofereceu para ministrar uma aula em um polo pedagógico em um ponto distante da cidade. E põe distante nisso! Em sempre me considerei um cara bastante conhecedor das “quebradas” da cidade, e não sabia onde era. Claro, uma consulta no google maps e tudo pronto, o roteiro estava feito. Eram cerca de 50 km da minha casa. Iria faltar pouco para “ficar mais caro o molho do que o peixe”. Mas quem precisa vai atrás. E fui.

Quando cheguei no lugar, entendi por que os outros docentes (talvez mais lúcidos) não gostavam de ir dar aula lá. Levei cerca de uma hora para chegar lá, de sábado e em cima de uma motocicleta.

Ministrei a aula e ao que tudo indica, esta foi bem recebida pelos alunos. A coordenadora comentou vagamente que teria havido alguns elogios. Pouco tempo depois eu fui chamado para dar aula em outro polo, agora mais perto, distando cerca de 30 km. Encarei como um progresso. Novamente a aula teria sido bem recebida, de tal sorte que em pouco tempo fui convidado para dar aulas em um ponto bem mais perto, cerca de 10 km!

Fui convidado para dar aulas de um componente que não era o de minha formação, ainda que eu tivesse algum “conhecimento passional”. Eram aulas de história para professores da rede pública que buscavam uma segunda graduação.

Quem precisa, não escolhe trabalho! E de cara, topei. As aulas eram aos sábados e o volume de informações que deveriam ser passadas era bastante, gigantescamente, grande. Eu tinha de fazer mágicas para ministrar a aula dentro do tempo estabelecido (6 horas com um intervalo para almoço, de uma hora).

A minha estratégia foi a de focar em tópicos que permitissem o entendimento reflexivo do período histórico lecionado. Eu procurava fazer uso de recursos didáticos que tornassem a aula motivadora. E acho que funcionou!

Uma vez olhando o Facebook (sim, otários também frequentam as redes sociais), encontrei um grupo de alunas que diziam que pela primeira vez não tinham vontade de fugir da aula! Eu tomei aquilo como um elogio. Salvo ser um caso de homônimo completo, o comentário era sobre a minha aula e sobre mim. Recordo-me de um breve umedecimento facial que pareceu classificar como produtiva a minha atividade.

Cabe aqui esclarecer que eu sempre achei a atividade docente como interessante. Apesar de ter crescido ouvindo de minha mãe “com tanta coisa boa para você gostar, você vai gostar de dar aula!!!!”.

Mas esta minha experiência negativa não se restringiu à infância e adolescência. Recordo-me de uma vez ter escutado uma antiga sogra comentando com uma vizinha, que eu gostava de dar aulas. O comentário era feito de uma forma negativa, como se a docência fosse algo similar a uma doença contagiosa e incurável.

Bem, do ponto de vista da remuneração, em geral a docência fica em um estágio intermediário entre o vergonhoso e o enojante. Talvez por este motivo as pessoas vejam o docente como um otário praticante. Recordo que meu pai dizia “quem sabe faz, quem não sabe, ensina”. No que era endossado por minha irmã.

Um ponto negativo (existem tantos!) de se ser otário praticante, ou simplesmente OP, é o de que você sempre esbarra em uma dicotomia desagradável ao contar o seu dia a dia. Ou te chamam de otário ou de mentiroso. Nenhuma das alternativas é elogiosa a ponto de se colocar no currículo.

Vem-me a partir da memória de que uma vez, minha esposa comentou que eu ia “brincar de ser professor” aos sábados. Eu fiquei um pouco chocado diante da aparente seriedade da afirmação. Eu acreditava, salvo hipótese alucinatória, que estava fazendo minha atividade a contento, o seja, atingindo os objetivos educacionais, e mais que isso, sociais.

Continuei esta atividade até que ouvi que “as aulas que eu dava, não existiam”. Quando se vê (ou se faz) alguma coisa, e que tal não existe, a alternativa da alucinação é totalmente pertinente.

Nesta época, eu cheguei a ir conversar com minha irmã, perguntando primeiramente se ir dar aquelas aulas, seria algo vergonhoso. Ela disse que não, apesar de que historicamente eu me recordava que ela dizia que ensinar não dava futuro para ninguém.

Ela respondeu negativamente. Ainda bem! Prossegui comentando que havia ouvido que aquilo que eu fazia aos sábados não existia. Eu precisei explicar uma segunda vez, pois ela parecia não ter entendido o que eu havia dito. Parecia uma situação irreal, ela parecia se recusar a imaginar que eu havia dito aquilo.

Do auto de uma racionalidade quase dogmática ela perguntou: “Você está recebendo por estas aulas? Consegue pagar as suas contas com esta remuneração? O banco aceita o que você diz recebe?”

Diante de todas respostas afirmativas, ela disse que aquilo, então, existia. Eu me senti aliviado, e, claro, ridículo, por ter chegado a ir questionar tal situação. Minha irmã parecia me lançar um olhar de estranheza.

Ainda nesta atividade docente, posso registrar outro fato de difícil credibilidade. Minha esposa, que frequentemente comentava minha incapacidade educacional de lecionar história, uma vez que não era graduado na área, me perguntava se eu não “arrumava uma boquinha” para ela também dar aulas. Parecia algo estranho pois ela iria “fazer algo que não existe”!

Um dia surgiu uma oportunidade e eu previamente liguei para ela perguntando se toparia dar aula no tal lugar “tão, tão distante”. A resposta foi afirmativa. Eu já estava dando aula na sede, o que me deixava mais aliviado. Ela perguntou se eu não queria trocar com ela, de tal sorte que eu iria para “tão, tão distante” e ela daria aulas na sede.

Ainda que eventualmente eu topasse, as aulas não eram atribuídas ao acaso, e eu poderia estar arrumando problemas, trocando de turmas sem consulta prévia.

Confirmei na escola que ela topou dar aulas para aquela turma. Isto era uma quinta feira pela tarde e a aula seria no sábado. Logo que confirmei, ela me disse que eu deveria preparar o material de aula para ela. Sim, você leu certo! E eu, com certa habilidade de preparar material didático, em menos de duas horas liguei e falei “já mandei o material para a sua caixa postal”! Sim, você leu novamente certo!

Tudo correu bem nas 24 horas seguintes, até que na noite de sexta feira, ela me avisou: “se você não for lá me levar amanhã eu não vou”!

Eu tentei negar que aquilo estivesse acontecendo, mas em face da exiguidade do tempo, não teria a oportunidade de repetir a mentira por mil vezes.

Programei para acordar de madrugada, pois eu precisava ira até “tão, tão distante”, comboiando ela, e voltar para o polo sede e dar a minha aula.

Aquela velha máxima “urubu quando está de azar......” pareceu estranhamente verdadeira quando, no caminho, encontramos um acidente que fechou a estrada, impossibilitando o tráfego. Ficamos por cerca de uma hora parados na estrada. Quando liberou, consegui conduzir ela até o polo e chegar com apenas cinco minutos de atraso onde eu deveria dar aula. Sei que é difícil de acreditar nesta situação, mas é a verdade. Não, não sou mentiroso, sou otário.

Otário Praticante
Enviado por Otário Praticante em 19/04/2015
Código do texto: T5212823
Classificação de conteúdo: seguro