A VIDA E A OBRA DE EDGAR ALLAN POE - PARTE DOIS
Em 7 de dezembro de 1811, os jornais anunciaram um recital em benefício de Elizabeth Arnold Poe. Ela, porém, exalou o último suspiro no dia seguinte – vitimada possivelmente pela pneumonia ou a tuberculose –, com apenas 24 anos de idade. Edgar e Rosalie foram amparados pelos membros da companhia teatral em que trabalhava Elizabeth.
Mas o infortúnio, tal qual a Máscara da Morte Rubra, achava-se à espreita. E, poucos dias após a morte da mãe, novo terrível acontecimento atingiu os infelizes órfãos: na noite de Santo Estevão, o teatro onde alguns dias antes fora realizado o recital em favor da sra. Poe foi destruído por um pavoroso incêndio, no qual sessenta espectadores perderam a vida. Os atores viram-se forçados a ir procurar trabalho em outras paragens, confiando os filhos de Elizabeth Arnold Poe à burguesia local.
É necessário acentuar esses dias de infortúnio, para que se possa compreender em parte a existência dramática e o gênio incomum de Edgar Allan Poe, que trazia, desde o berço, o estigma de um alcoolismo que muitos de seus biógrafos dizem ser hereditário. Durante toda a sua existência, Poe travou uma luta sem fim contra dois instintos antípodas: de um lado a firme resolução de não beber; e de outro a depressão e a morbidez funesta que o intoxicavam de complexos e da irresistível compulsão de procurar na bebida um estimulante, sendo, então, protagonista das mais humilhantes e asquerosas cenas a que um ser humano pode se entregar. A todo momento quebrava as promessas que fazia para se corrigir, e os atos que comprometiam e afeiavam seu nome desanimavam todos aqueles que se esforçavam em furtá-lo àquela degradante vida.
Entretanto, sua existência, despida de sorrisos, foi favorecida... Com cerca de dois anos de idade, Edgar foi levado para a casa de um abastado negociante (de tabaco) de origem escocesa, John Allan (1780-1834).
Quanto à pequenina Rosalie, recebeu abrigo na residência do casal William e Jane Scott Mackenzie. Os Allans e os Mackenzies eram amigos íntimos e vizinhos. As crianças acabaram ficando nessas casas (na casa dos Allans, “flutuava o perfume do tabaco e do punch, e também o odor dos escravos”), o que, com o correr do tempo, tornou-se equivalente a uma adoção. E, apesar da oposição do sr. Allan, Edgar foi batizado na Igreja Presbiteriana e acrescentaram ao seu nome o sobrenome de seu pai adotivo.
Frances Keeling Valentine Allan (1784-1829), esposa de John Allan, não tinha filhos, embora estivesse casada desde 1803. Por isso, ela e a irmã, Anne Moore Valentine, cercaram a criança de um afeto sufocante, satisfazendo-lhe todos os desejos. “A minha palavra era lei em toda a casa”, revelou Edgar, em certa ocasião. “E, na idade em que poucas crianças são arrancadas às saias da mãe, eu, senhor dos meus atos, podia entregar-me aos impulsos da minha vontade.”
Em 1815, no dia posterior ao da derrota de Napoleão, John Allan, que estava com os negócios comprometidos devido ao bloqueio naval imposto pelos ingleses durante a Segunda Guerra da Independência Americana, resolveu tentar a vida na Inglaterra. Instalou-se com a mulher em Londres; e Edgar foi mandado primeiro para a casa da severa sra. Mary Allan (ela era uma das irmãs de John Allan), em Irvine, na Escócia. Depois, o menino foi matriculado numa escola para meninas, em Londres; e, mais tarde, transferido para o colégio do reverendo John Bransby, em Stoke Newington (o lugar foi assim descrito por Poe: “Uma aldeia afogada numa multidão de árvores gigantescas e nodosas e onde todas as casas parecem excessivamente velhas”).
Mas os negócios de John Allan não se desenvolveram da forma como ele esperava; e, por outro lado, o clima úmido da Inglaterra foi nocivo à saúde frágil de sua esposa. Assim, em 1820, os Allans regressaram aos Estados Unidos, ou melhor, voltaram para Richmond. Porém, se os cinco anos passados na Inglaterra não correram para John Allan da maneira que ele esperava, trouxeram algum benefício a Edgar, que teve algumas noções de Francês, Latim, História e Literatura. Não foi muita coisa, mas serviu para enriquecer sua fértil imaginação, impressionada pelos castelos misteriosos, pelas casas decrépitas, pelas cavas úmidas e pelos corredores escuros, onde ele pressentia a presença do sobrenatural. São essas experiências que nos auxiliam a compreender certos aspectos de sua obra: o gosto pelo macabro e pelo misterioso, a atmosfera medieval existente em seus contos. Isso me faz recordar das palavras do sr. Dante Regis Vita, num antigo texto: “Beleza esquisita, imagens estranhas tocadas de sombras de tragédia, histórias cheias de mistério as de Edgar Allan Poe.”
Embora John Allan tivesse de se desfazer de parte de seus bens para satisfazer os credores, a vida da família Allan continuou a ser confortável (sobretudo a partir de 1825, quando John Allan recebeu de herança uma quantia considerável). Edgar foi mandado para uma escola freqüentada pelos filhos das melhores famílias de Richmond. Ali, sobressaiu-se em línguas, oratória, representações teatrais e realizou algumas notáveis façanhas na natação. Com treze anos, começou a escrever poesias. Em 1823, tornou-se amigo íntimo de seu colega de escola, Robert Craig Stanard (1814-1857), cuja mãe, Jane Stith Stanard, “tomou de terno interesse pelo brilhante jovem, afeição que foi ardente e romanticamente retribuída”. Foi para a sra. Stanard que Poe dedicou, depois, seu poema “Para Helena” (“To Helen”,1831), que começa assim: “Tua beleza, Helena, é para mim...”
Entretanto – não demorou muito –, nova tragédia abateu-se sobre o jovem poeta: a morte da sra. Stanard (ela morreu aos 31 anos de idade, tuberculosa e louca ), em 28 de abril de 1824. O golpe atingiu Edgar de forma tão intensa que ele, à noite, passou a rondar o túmulo da mulher, no cemitério solitário. E, ao que se sabe, a lembrança de Jane Stanard jamais o abandonaria.
Após a morte da sra. Stanard e praticamente durante toda a sua vida, Poe apaixonou-se platonicamente por inúmeras mulheres. A primeira delas foi uma jovem vizinha, Sarah Elmira Royster (1810-1888), de quem chegou a ficar noivo em segredo.
Em fevereiro de 1826, John Allan inscreveu o filho na Faculdade de Línguas Mortas e Vivas da Universidade de Virgínia, fundada em Charlottesville por Thomas Jefferson (1743-1826). O jovem estudante fez brilhantes progressos nos estudos, mas foi por essa época que começou a beber. Exatamente como acontecia nos prestigiosos colleges ingleses da época, os jogos de azar, o álcool, o ópio, o láudano, as mulheres e os duelos eram as principais distrações dos estudantes na Universidade de Virgínia. Não demorou muito tempo, e Edgar esgotou os dólares que John Allan lhe dera. Mas não foi o suficiente para fazê-lo abandonar os vícios. E, assim, afundou-se mais e mais em dívidas.
Esse comportamento desagradou John Allan; e, ao tomar conhecimento desses acontecimentos, o sr. Royster mandou a filha para fora por algum tempo, a fim de afastá-la de Edgar.
No Natal desse mesmo ano, Edgar teve uma violenta discussão com o pai adotivo, que se recusou a pagar-lhe as dívidas, que ultrapassavam os dois mil dólares. Em seguida, John Allan tirou Edgar da universidade e tentou fazê-lo interessar-se pelo mundo dos negócios. Não conseguiu seu intento. As discussões entre ambos tornaram-se freqüentes. E, num ímpeto de arrogância, em 19 de março de 1827, Edgar abandonou a casa paterna, mudando-se para um sórdido hotel, a Taverna do Tribunal. Era o fim de uma vida abastada. Daquele dia em diante, Edgar teria de lutar pela própria sobrevivência. Chegou a escrever para o pai uma carta “cheia de dignidade”; porém, John Allan sequer lhe respondeu. A sra. Frances Allan, imbuída do sentimento maternal, tentou interceder em favor de Edgar. Foi em vão. Então, a fim de minimizar as agruras do filho adotivo, mandou-lhe algum dinheiro, por intermédio de um de seus escravos. De posse desse dinheiro e adotando o nome de Henri Le Rennét, Edgar abandonou Richmond com um amigo, Ebenezer Burling (1807-1832), e foi para Norfolk. Lá, separou-se de Burling e prosseguiu viagem num navio até Boston, onde chegou praticamente sem dinheiro em abril de 1827. O que aconteceu depois pode ser descrito como
A BALELA GREGA DE POE
“Algumas deploráveis dívidas de jogo originaram uma desavença entre Edgar e seu pai adotivo. E Edgar, que possuía uma dose fortíssima de romantismo em sua mente impressionável, concebeu o projeto de se imiscuir na guerra dos Helenos, alistando-se no exército grego para combater os turcos. Partiu, pois, para a Grécia. Em que se tornou ele no Oriente? Que fez? Visitou as praias clássicas do Mediterrâneo? Por que iremos encontrá-lo em São Petersburgo, sem passaporte, envolvido num negócio escuso e forçado a apelar para o embaixador americano, Henry Middleton, a fim de escapar à justiça russa e regressar à sua pátria? Mistério! Há aqui uma lacuna que só ele próprio saberia preencher.” Essas palavras foram escritas por Charles Baudelaire em sua biografia de Edgar Allan Poe.
Em 1827, Edgar cerrava definitivamente atrás de si a porta da casa de John e Frances Allan. Foi, então, para Boston, onde publicou um pequeno volume de poesias, que, em sua opinião, se destinava a revolucionar o tranqüilo mundo das letras norte-americanas. No entanto, a América não o compreendeu, não se sentiu subjugada pelo seu jovem gênio. Ei-lo, portanto, só, decepcionado, sem família e sem pátria. Só lhe restava uma única alternativa: procurar a glória em outra parte. Iria, assim, qual novo Lord Byron, combater pela independência dos gregos e retornar ao seu país coberto de louros. Que fez, então? Persuadiu um amigo, Ebenezer Burling, a partir com ele. Os dois embarcaran num navio, com destino à Europa. Na última hora, o amigo desistiu. Edgar foi sozinho e desembarcou na Grécia. Lutou. Foi ferido. E misteriosamente chegou a São Petersburgo, na Rússia, de onde escreveu dúzias de cartas a seus amigos nos Estados Unidos. No entanto, na Rússia, as coisas não foram muito bem. Viu-se implicado em obscuras histórias políticas. Envolveu-se com anarquistas e revolucionários, o que motivou uma sentença de deportação para a Sibéria. A fim de evitar essa deportação, o embaixador norte-americano teve de intervir. Entretanto, o calvário de Edgar não terminaria aí. No momento de embarcar de retorno à América (isso após viajar pela Alemanha, Itália, França e Inglaterra), encontrou meio de se meter noutro vespeiro. As informações a esse respeito são um tanto obscuras. Sabe-se apenas que foi ferido num duelo (possivelmente, teve de duelar com algum marido ultrajado). E foi somente graças ao desvelo de uma riquíssima condessa escocesa que pôde rever o solo dos Estados Unidos. E narrou essas e outras peripécias num romance, Vida de um Artista em Seu País e no Estrangeiro.
Mas tudo isso não passa de uma grande invenção. É tudo falso. Edgar não fez viagem alguma à Europa; na verdade, nem saiu da América. E a aventura que ele imaginou na Grécia aconteceu em seu próprio país: adotando o nome de Edgar A. Perry (nascido em Boston, em 1805), alistou-se no Exército dos Estados Unidos. E Edgar A. Perry logo desapareceu de circulação, eclipsando-se na guarnição do perdido Forte Moultrie, na Ilha Sullivan, na Carolina do Norte.