Moreira da Silva
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ANTÔNIO MOREIRA DA SILVA
(98 anos)
Cantor e Compositor
* Rio de Janeiro, RJ (01/04/1902) +(06/06/2000) - ARIES
 
Don Juan

Desde que a mulher morreu, em 1983, o sambista não descansou. "Se pudesse, teria um harém, nem que fosse só para olhar", disse ao Globo. "Nunca prestei. E depois que começou a carreira artística, então... Mas sempre amei a minha mulher", confessou. Moreira da Silva entrou nos anos 90 ao lado de Denise Conceição, uma morena de apenas 24 anos de idade. "Estamos casados pela lei Divina", babava ao lado da mulher com quem dizia estar tendo um caso havia cinco anos. Ou seja, ele tinha 83 anos quando conheceu Denise com 19. "Já legalizei a situação de Denise no INSS e lhe dei uma pensão de 35 mil cruzeiros, além de uma casa na Saracuruna, subúrbio do Rio, e vou colocá-la também no Iaserj para ter seus direitos garantidos", cuidava ele. Mas continuaram morando separados. "Ela me chama de meu amor olhando nos meus olhos", acreditava o velho malandro.

Não permitia que a filha e o genro interferissem na relação. Para quem imaginava que ele estava fazendo papel de tolo, o velho sambista dava o breque: "Eu encaro até hoje, pois sou protegido pelas almas benignas. Meu nome é Antônio Moreira da Silva, noventa e um anos, corpo limpo, sem varizes, afogando o ganso com cara de pavão misterioso", vangloriava-se. "Tomo chá de jurubeba com alcachofra e faço exames periódicos".

Embalado nos braços de Denise, ele fez em maio de 90 uma série de shows naCasa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro. Em junho, estreou temporada curta no Jazzmania. No mês seguinte deu um depoimento ao Museu do Carnaval, no módulo Velha Guarda, entrevistado por Ricardo Cravo AlbinOsmar Frazão,Aidran GalvãoVani Bayon e Tárik de Souza. O jornal O Globo de 30/07/1990, registrou algumas frases do depoimento: "Tem um tal de Cabral que aparecia todos os domingos de carnaval lá em casa para comer feijoada. Hoje, ele só me escreve para pedir voto".

Em 1991, Moreira da Silva foi escolhido pela prefeitura do Rio de Janeiro, para inaugurar com um show a reurbanização da Lapa, o velho reduto da malandragem, dos bares e cabarés. O então prefeito, Marcello Alencar, fez questão, já que o artista representaria o verdadeiro espírito do bairro. O rei do breque atendeu com naturalidade à convocação: "Sou um símbolo carioca". Mas ele diria mais tarde que nunca foi de frequentar a Lapa.

 
"Eu frequentava o mangue. Parava o táxi e namorava as prostitutas. A Lapa era um refúgio de artistas que moravam longe e iam dormir com as prostitutas."
Mesmo assim, ao ser convocado, falou com hilaridade dos bons tempos do bairro:

 
"Os táxis faziam ponto perto do lampadário. Havia os botecos, a leiteria da Rua Visconde de Maranguape, os cabarés. A rapaziada corria atrás das mariposas da Rua Joaquim Silva. Uma vez, quando eu era motorista de táxi, peguei um freguês que me disse precisar de uma mulher. Fui à Joaquim Silva e botei uma mulher no carro. Seguimos para a Vista Chinesa, mas quando chegamos lá o cara tinha dormido. Eu, então, executei a lebre".
Nos anos seguintes comemorou seus 90 anos com um show na Boate People, e os 91 anos no Jazz mania, no Rio de Janeiro. Estava em plena atividade e em 1993 lançou "Moreira da Silva Fotografando a Cidade", o primeiro CD, em que reuniu os sucessos do período 1958-1960, pela EMI/Odeon. Novamente gravou "Na Subida do Morro" e "Olha o Padilha". Regravou também "Conversa de Botequim", de Noel Rosa e "Pistom de Gafieira", de Billy Blanco.

Em outubro, abriu a série de shows do Projeto Cultural da Caixa, no Teatro Nelson Rodrigues. Em 1995, comemorou seus 93 anos na Ritmo, no Rio de Janeiro, com um show em que cantou vinte de seus sambas mais conhecidos. Durante o espetáculo, foi entrevistado pelo jornalista Sérgio Cabral. O afilhado Jards Macalé subiu ao palco mais uma vez com seu professor, para dele receber o bastão, o chapéu panamá, pois o mestre estava oficialmente abandonando os palcos.

"As pernas estão ficando bambas e, se não dá para sambar, não tem mais graça", lamentava-se.

"É uma honra ser herdeiro de uma crônica viva do Rio", declarou Jards Macalé. Fazia vinte anos que os dois haviam dividido pela primeira vez um palco, no show do Teatro João Caetano. A triste despedida de Moreira da Silva não foi triste nem despedida pois no ano seguinte ele cantou no pequeno palco do bar Vou Vivendo, de São Paulo, um reduto do melhor samba encravado numa esquina da Avenida Pedroso de Moraes, no bairro de Pinheiros. Embalado pelo sucesso do CD "Os Três Malandros", que dividiu com os sambistas Bezerra da Silva e Dicró, seu último disco, lançado no ano anterior, Moreira da Silva não perdeu a irreverência e aproveitou para dar um chega-pra-lá no neo-samba da terra da garoa: "Só vale o balanço".

Em 1996, finalmente, sai a primeira biografia de Moreira da Silva"O Último dos Malandros", do jornalista baiano Alexandre Augusto Gonçalves, pela Editora Record, baseada em depoimentos do sambista. O jornalista João Máximo chamou a obra de livro de fã. Para ele faltou a análise da música de Moreira da Silva.

João Máximo divide a obra de Moreira da Silva em duas fases. A dos grandes sambas com grandes parceiros - "Amigo Urso""Acertei no Milhar" - e a da saturação, com a repetição de falas já manjadas no momento do breque. Nesta segunda fase a temática empobrece. "O Moreira do 007, do filme americano, do último dos moicanos, já não tinha o mesmo apelo", disse na resenha do livro. 
"Nos seus últimos tempos em forma, era preferível ouvi-lo reviver Cigano, de Lupicínio, a emparceirar-se com Macalés, Dicrós e Bezerras", escreveu o jornalista. Mais conhecido das novas gerações exatamente pela sua fase Miguel Gustavo, não há como negar que o melhor do Moreira é exatamente o que foi gravado na chamada época de ouro da música brasileira, os anos 30/40.

Seus 96 anos foram comemorados em grande estilo. Pela manhã, tomou café com crianças carentes assistidas pela Legião da Boa Vontade. Queria se lembrar dos tempos difíceis da infância. Depois, Jards Macalé e Ellen de Lima cantaram para ele seus antigos sucessos, no Teatro João Caetano. De lá, caminhou acompanhado por uma banda para um almoço no tradicional Bar Luiz, na Rua da Carioca. Moreira da Silva ainda ganhou um par de sapatos brancos de uma loja do centro e uma homenagem da Sociedade Amigos da Rua da Carioca.

Dois anos antes de sua morte, o velho Morengueira sonhava figurar no Guiness Book of Records, como o cantor mais velho em atividade. E vivia a expectativa do lançamento na Austrália e em Portugal de alguns dos 26 álbuns que gravou ao longo da vida. Ainda ativo, tinha na gaveta o samba-de-breque "Pra Fazer 97", em parceria com Reginaldo Bessa e "Ecologia", com Aidran do Grajaú. É com Reginaldo Bessa que ele se apresentou numa temporada no Vinícius Bar, no início de 1997.

Moreira da Silva nunca foi de fazer média. Deitou falação sem travas na língua. Para ele "a batida da Bossa Nova é quase a de rumba".
 
"Caetano Veloso queria mesmo 
é rebolar, um atrevido. Imagine que outro dia ele criticou a Aquarela do Brasil por causa da palavra inzoneiro. Ora, quem é Caetano Veloso para falar de Ary Barroso?.Tião Motorista é que é o bom da Bahia!"
 

"Edu Lobo e Tom Jobim são razoáveis, gosto mesmo é de serestas e das baladas do Agnaldo Timóteo."
(Revista O Cruzeiro, 12/1968)
 
"Gosto do Roberto Carlos, mas não gosto do seu Jesus Cristo, uma jogada com o nosso Pai para ganhar dinheiroarrow-10x10.png."
 
"O Chico Buarque é o Noel Rosa muito devagar. Paulinho da Viola? É ainda água-com-açúcar. É sofrível."
 
"Outro dia eu vi aquela menina, a Gal Costa, uma porcaria, ela é neutra".
 
"Martinho da Vila é
 sempre aquilo que você tá vendo aí. Inclusive o 'Batuque na Cozinha' não é dele não. Isso é mais antigo que Dom Pedro II".
 

"Eu sou melhor do que ela (Elis Regina) em qualquer parte do mundo que a gente bater."
 
"Donga foi um cara bom. Grande compositor e tocando violão muito bem".
Mas ele também levou troco. Rigoroso com os outros, sofreu o rigor do também longevo Carlos Cachaça, o grande mangueirense.
 

"Os sambas dele eram mais comerciais, mais rentáveis. Nem as minhas parcerias com Cartola renderam muito dinheiroarrow-10x10.png."
(Carlos Cachaça)

Moreira da Silva também deitou falação contra os meios de comunicação.
 

"No rádio é que é o jabaculê. O disc-jóquei leva o dinheiroarrow-10x10.png e diz que está em primeiro lugar. Tudo grupo, entende?"
(Moreira da Silva disse ao Pasquim)
 
"Na TV a coisa funcionava diferente. A Tupi combinava 700 cruzeiros (de cachê). Quando chegava lá, um cara dizia: Escuta, o rapaz que te telefonou e disse que era 700, mas só pode ser 500"
Desse tempo para cá a coisa piorou bem. O cachê minguado cedeu lugar ao pagamento feito pelo artista ou pela gravadora para divulgar a música. No começo dos anos 70, Moreira da Silva soltou as cobras contra o apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha:
 
"Há 40 anos mandei fazer dois ternos pra ele, cantei com amigos de graça para arranjar-lhe uma nota, que ele estava duro. Hoje, o malandro não paga e até quer que a gente pague para se apresentar no seu programa."
Incisivo com os colegas, ele pegava leve com o poder. Gravou um samba em homenagem a Getúlio Vargas, quando o Brasil declarou guerra ao eixo: "Minha bandeira foi ultrajada, temos um homem de fibra, Getúlio Vargas, posso empunhar um fuzil pela honra do meu Brasil", babou no chapéu panamá. Gostou do velhinho até o fim: "Foi o único político que eu vi apertar a mão de um lixeiro", justificava.

Para Juscelino Kubitschek gravou "Cutuca, Nonô", de Miguel Gustavo. Não gostava de agitação: "passeata não resolve". E chegou a se candidatar a vereador pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) do antigo Distrito Federal, levando apenas 400 votos: "A moçada parece que não acreditou em mim".

Se o povo o tratou mal, o Estado o tratou bem. Aposentou-se em 1959 como encarregado de garagem, mas desde que se tornara um artista consagrado não desempenhava a função. "Os colegas tiravam meu plantão", declarou ao Pasquim.

Moreira da Silva não era político, não militava, mas suas músicas revelavam em crônica as desigualdades e a injustiça social, sem panfleto. Insurgiu-se de leve contra a invasão da música estrangeira. Ao jornal Opinião exibiu, em 1976, seu nacionalismo corporativo:
 
"Uma estação de rádio não é uma propriedade definitiva, aquilo é um veículo de propaganda (sic) que pode levar até a envenenar a nossa pátria!"
Em 1984 gravou "Moreira Já', de William Prado, um samba pelas eleições diretas, lançado com 1.500 compactos, durante show no Mistura Fina, em Ipanema. Do outro lado do disco, o samba com que espicaçou a Academia Brasileira de Letras."Afinal de contas, sou pelas eleições diretas", justificou. Moreira da Silva confessou ter votado em Lula para presidente: "O FHC eu não gosto, parece que vai descontar dos aposentados."

Cruel crítico dos colegas, louvador de presidentes e amante das eleições livres,Moreira da Silva era coluna do meio na questão do direito autoral. Perguntado no Pasquim pelo produtor e crítico Mariozinho Rocha se tinha queixas do órgão arrecadador, foi pelo caminho suave: "Não, não, não. Aí eu sou neutro". Mas insinuava lá seus motivos: "Sabe como é que é...", desconversava. Seu comportamento tinha outra explicação: era conselheiro da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM), órgão responsável pelo recolhimento de direitos autorais.

A autoria da obra de Moreira da Silva como compositor era questionada por ele próprio: "A necessidade faz o sapo pular. Já vendi e comprei muito samba. No começo da carreira, não. Naquele tempo eu não era muito esperto para pedir parceria, hoje eu peço", confessou em 1973.

Moreira da Silva falava com tranqüilidade sobre o comércio de sambas: "O esquema de entrar é o seguinte... o sujeito chega perto e diz: Moreira, eu tenho este samba aqui, pode ter esquema de entrar... Quem me vendeu muita música foi o Zé Com Fome (Zé da Zilda)", declarou ao Pasquim.  Ele conta que pagou 150 mil-réis pelo samba "Dormi no Molhado", do Zé da Zilda
"O Francisco Alves comprava", entregou na mesma entrevista.

Ao jornal Opinião confessou ter recebido de presente a parceria do samba "A Carne", de Nelson Cavaquinho. "Ele andava na pior, sem amparo. Ele vendia por qualquer preço a música dele. Ele vendeu para um rapaz, o Roxo", disse. Foi das mãos de Roxo que Moreira da Silva ganhou a parceria em troca de gravar o samba. Em depoimento ao Museu do Carnaval, em 1990, ele seria franco e direto: 
"Paguei um conto e trezentos mil-réis ao Geraldo Pereira por uma música. Era um bom dinheiroarrow-10x10.png. Mas quando ele estava sem nenhum para pagar o quarto, me vendia por 150 mil-réis. Comprar música é subjetivo. Desde o começo da música os compositores vendem suas canções", justificava.

Moreira da Silva dizia não ser saudosista, mas viveu se queixando das novidades que surgiram no meio musical, às quais atribuía o fim de seu reinado: 
"Um Ary Barroso, um Noel Rosa, a gente tem que respeitar. Esses meninos de hoje são muito água-com- açucar". No mais, se conformava. Só estranhava a explosão demográfica: "Tá nascendo gente pra danar".

Recebeu o ano 2000 sem cerimônias. "Velhice para mim não existe. Parece que cheguei ontem ao planeta", dizia. Aos 97 anos, sua visão da virada do milênio era trivial: "O que vier eu traço. Enquanto São Pedro não manda a ordem de captura, eu vou vivendo com habeas-corpus preventivo", costumava dizer. 

Da janela do apartamento no Catumbi, onde vivia sozinho desde que Mariazinha morreu, em 1983, ele mirava o cemitério, onde o jazigo número 6 o esperava."Meus futuros guardiães, que trabalham ali embaixo, me saúdam: não tem aparecido, seu Moreira. Eu fico meio cabreiro e vou saindo de banda. Sai pra lá, mamão", esconjurava. Mas não temia e até desdenhava da perpétua: "O futuro é uma caveira". E cantarolava:
 
Para fazer 97
Tem que ser malandro
Quem não pode, não se mete
Que o bicho tá pegando

Atribuía sua vitalidade a uma mistura bem brasileira, mas com nome gringo:"Black And White". Não o whisky, que como já se viu não era seu forte. "Minha mãe era black e meu pai era white".

Moreira da Silva viveu seus últimos dias com o que recebia de pensão como chefe de garagem do antigo Estado da Guanabara, cargo em que se aposentou, e de uma pensão de compositor e cantor pelo INSS. Algo como R$ 1.200,00. "Dá pro gasto", conformava-se. Além, é claro, dos cachês de shows que fez até o fim.

No apartamento do bairro do Catumbi, ele via o tempo passar pela janela sem maior afetação, na manha do gato, mamando e miando: "Passo a maior parte do tempo deitado, só levanto para ver novela e futebol". Não tinha condições de andar pelas ruas do Rio de Janeiro, como gostava. As pernas não se sustentavam mais. Tempos atrás ele se levantava, tomava o café-com-leite e saía para jogararrow-10x10.png no bicho, conversar com os vizinhos e passear pela região central da cidade. Ia à Cinelândia, tomava uma mineral no Amarelinho, comia um ensopado de quiabo batizado com seu nome no Paisano, como registrou a revista de Domingo doJornal do Brasil em março de 1992.

Agora, quando saía, era de táxi. "Estou com um pouco de dificuldade para andar por causa de uma cucaracha (barata) que matei na banheira e acabei caindo", queixava-se. Apesar disso, Reginaldo Bessa estava produzindo o que seria seu último disco. E a saúde parecia estável. "Há pouco tempo fiz um check-up e estava tudo certo: triglicerídeos, colesterol... Minha pressão é 12 por 8", dizia, atribuindo sua forma ao ginseng para o corpo e ao Advil para a dor-de-cabeça.
Morte

Moreira da Silva morreu vítima de Falência Múltipla dos Órgãos, no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, onde estava internado desde meados de maio de 2000. Com sua morte, aos 98 anos de idade, foi-se embora o último malandro. Malandro daqueles cantados por Jorge Ben Jor, que sabem que é bom ser honesto e são honestos só por malandragem. No idioma de Morengueira"Se um vigarista soubesse quanto é gostoso estar do lado da lei, se tornaria honesto só por vigarismo". Este era o retrato fiel do Moreira da Silva"A malandragem nunca existiu para mim. Sou um bípede mamífero que sempre trabalhou", pontificava. "Hoje estou humildemente, modestamente, na história do samba".

Moreira da Silva não teve filhos. "Fiz uma vasectomia natural por causa de tanta farra", mas adotou Marli, que lhe deu dois netos.

Paulinho da ViolaBeth CarvalhoJards MacaléElza Soares, Bezerra da Silva,Sandra de Sá, entre outros artistas, prestaram-lhe homenagem póstuma num grande show no Canecão.